sábado, 17 de janeiro de 2015

Fernando Pessoa

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto, e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginação, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do «Marinheiro» ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena — cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar. Pode ser que se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no «Livro do Desassossego». Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.

Fernando Pessoa, in 'Carta a Mário de Sá-Carneiro (1915) '

Fonte: Citador

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Sensibilidades

“Dicotomias eloquentes: o corpo físico é um mundo cego, um receptáculo, enquanto os territórios íntimos da alma são a presa da emoção, do movimento” 

 LOTTERIE, Florence. Littérature et sensibilité. Paris: Ellipses, 1998, p 15.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Sobre o amor


Cartão de felicitações de Francisco para Maria. Documento de 03 de novembro de 1924.
Por menos acadêmico que seja, fato é que o amor ― esse amor apaixonado que rege os enamoramentos ― determina um sem número de produções do espírito humano. É constante nas artes, na prosa e na poesia. Exclusivista, particulariza-se pela unicidade de seu objeto. Nem espíritos religiosos ousaram ignorar a importância desse sentimento que se impõe com tanta força, em especial na sensação da imprescindibilidade da presença do outro, como Vieira,  inclusive, em seu Sermão do Mandato de 1643, soube reconhecer:

Assim como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito; assim no mesmo coração não podem caber dois amores, porque o amor que não é intenso, não é amor. Ora grande coisa deve ser o amor, pois sendo assim, que não bastam a encher o coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores (VIEIRA, 1939, p. 237).


VIEIRA, Antônio. Sermões e Lugares Selectos. Bosquejos histórico-literários, selecção, notas e índices remissivos, por Mário Gonçalves Viana. Porto: Ed. Educação Nacional, 1939.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Informação

Seguramente, um envelope que passou pelos correios nos fornece um indício seguro de sua origem. Torna-se verossímil, confiável e - por que não? - histórico.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Percursos Devocionais


Será possível desvendar os caminhos concretos fixados no mundo sensível por obra da fé, que ora apazígua, ora atormenta as almas?  Haveria um método que, bem empregado, nos propiciasse um retrato de como a devoção participa ativamente na formação de grupos sociais, de como ela aproxima pessoas, de como se torna um fator de socialização, fomentando a construção de templos que, uma vez erigidos, dão lugar a uma rotina de cultos a que se somam escolas e comércio de bens e serviços? Como fazer para descobrir esses caminhos, quem os percorre e por que e como o faz. Qual o significado de tantas capelas muitas vezes escondidas, não raro abandonadas, quase esquecidas ao longo de estradas e ruas de tantas pequenas cidades? E o que elas nos contam sobre essa arte que é sacra, que uma estética simplória, sofrida e torturada construiu, e cujos vestígios podemos documentar?

São Paulo