Uma
reflexão sobre os perigos do ecletismo metodológico na pesquisa acadêmica
Em 1843,
a prestigiosa Revue des Deux Mondes publicou um artigo sobre o filósofo
italiano Lucilio Vanini, executado em Toulouse em 1619. O autor era Victor
Cousin, um dos mais respeitados intelectuais franceses da época, fundador da
Escola Eclética e futuro Ministro da Instrução Pública. O artigo era eloquente,
erudito, bem estruturado, porém, problemático do ponto de vista metodológico. Cousin
baseou suas conclusões em documentos de autenticidade duvidosa, incluindo o
suposto manuscrito de um escrivão chamado Malenfant. Cousin também admitiu usar
cópias de documentos sem questionar suas condições de produção, origem ou
intencionalidade política.
Como um
intelectual de tamanha envergadura cometeu erros tão elementares? O exemplo de
Cousin ilustra uma prática que transcende sua época, qual seja, o do exercício
de uma competência fora de lugar. Ele era, sem dúvida, um homem notável de formação
eclética, que combinava idealismo alemão, racionalismo cartesiano e empirismo
escocês. Excelente para uma síntese filosófica, mas desastroso para pesquisa histórica.
O ecletismo filosófico busca harmonizar correntes diversas, encontrar sínteses
conciliadoras, construir sistemas abrangentes. Já a pesquisa histórica exige o
exercício de uma desconfiança sistemática, não despensa análise das condições
de produção dos documentos, além de rigorosa verificação de autenticidade, em
falar em sua contextualização. Portanto, está-se diante de áreas do saber que
têm pressupostos teóricos e metodológicos completamente distintos.
Não há
nada de errado com o ecletismo, desde que se mantenham claros os pressupostos
teóricos e metodológicos de cada área. Um behaviorista e um fenomenólogo, por
exemplo, não obstante ligados à psicologia, podem enriquecer mutuamente a
compreensão do comportamento humano, mas não poderiam misturar suas abordagens
sem critério, visto que cada um parte de pressupostos distintos que exigem
metodologias específicas. O mesmo vale para outras áreas. Um economista pode se
beneficiar da sociologia, mas não pode aplicar modelos matemáticos a fenômenos
que exigem análise qualitativa.Um antropólogo pode dialogar com a neurociência,
mas não pode reduzir cultura a sinapses. Portanto, um historiador pode se
inspirar na literatura, mas não pode tratar ficção como documento.
Cousin se
deixou seduzir pela eloquência dos documentos que analisou. O suposto
manuscrito de Malenfant era dramaticamente perfeito: tinha vilões, heróis,
reviravoltas, uma moral edificante. Encaixava-se perfeitamente na narrativa que
Cousin queria contar sobre o conflito entre razão e fé. Mas pesquisa não é
literatura, e eloquência retórica não substitui rigor argumentativo. Por mais
belo que seja um texto, por mais que impressione pela eloquência, suas
informações só podem ser utilizadas após determinarmos:
- Tempo: quando foi produzido?
- Circunstância: quem o produziu, com que
interesse, em que contexto?
- Método: que procedimentos foram
seguidos?
- Pressuposto: que visão de mundo orienta
o texto?
Sem isso,
como dizia minha professora, fazemos "buracos na água" e "damos
pontos sem nó". O caso Cousin nos alerta para um problema muito atual: a
era da informação multiplicou as possibilidades de ecletismo, mas também os
riscos de confusão metodológica. Vivemos tempos em que dados quantitativos são
tratados como verdades absolutas, independente da metodologia de coleta. Vemos
correlações estatísticas apresentadas como relações causais, sem falar em opiniões
pessoais equiparadas a análises técnicas.
A solução
não é abandonar o diálogo entre áreas. Pelo contrário, ele é essencial ao
avanço do conhecimento. Mas toda pesquisa, toda análise, toda afirmação que
pretenda atingir status de validação acadêmica deve deixar claros dois pontos
fundamentais, quais sejam, o pressuposto teórico que orientou a investigação e
a metodologia que determinou as conclusões obtidas. Só assim evitamos que
nossas competências sejam aplicadas fora de lugar.
Porque,
no final das contas, não basta ser eloquente. É preciso ser rigoroso.
Instituto de Humanidades. (s.d.). Cousin, Victor.
Instituto de Humanidades. http://www.institutodehumanidades.com.br/index.php/c/208-cousin-victor
Cousin, V. (1843) Vanini,
ses écrits, sa vie et sa mort, pp. 674-728, in «Revue des Deux Mondes», 2 e
pér., année XIII, nouvelle série, t. IV.Paris, Au Bureau de la Revue des Deux
Mondes, 1843, 1038