sexta-feira, 4 de julho de 2025

A Magia dos Almanaques

Eu amo almanaques! Se forem antigos, então, amo mais ainda. Especialmente quando examino a redação e o estilo dos textos publicitários ­— os reclames de antigamente — que me parecem encantadores em sua simplicidade. Almanaques são fontes preciosas, porque eles traduzem um modo de vida. Direcionados à sociedade em geral, neles se expressa a credulidade comum a vidas prosaicas, o apego às tradições e à sinceridade de intenções.

Mas, afinal, o que é um almanaque? Em termos literários, almanaque é um gênero textual que combina informações práticas, como calendários, palavras cruzadas, previsões, anedotas, astrologia, conselhos de saúde etc. Enfim, curiosidades frequentemente apresentadas de forma acessível e atraente. Historicamente, esses compêndios serviram como guias para a vida cotidiana, oferecendo desde dicas de jardinagem até previsões meteorológicas, passando por receitas, ditados populares e outras coisas.

O estilo é marcado por uma linguagem clara e direta, que busca estabelecer certa intimidade com o leitor, não apenas por uma escolha estética, mas também — e principalmente — porque se trata de algo que traduz o presente, que traduz a própria época, retratando hábitos e costumes. Por tudo isso, almanaques também desempenham um papel importante na memória coletiva. Eles dão testemunhos das respectivas épocas, preservando informações e também a forma como as pessoas pensavam e se relacionavam com o mundo. À medida que a sociedade evolui, a maneira como nos lembramos e registramos nossas experiências também muda. Os almanaques, com seu formato tão peculiar, abrem janelas para o passado.

Portanto, ao folhear um almanaque antigo, não estamos apenas revisitando informações; estamos diante de um fragmento real da história, de uma forma de arte literária que, apesar de sua simplicidade, carrega consigo a complexidade da experiência humana. Por isso é tão importante valorizar esses relicários do passado e aprender com as lições que eles nos oferecem.

Na foto, alguns exemplares da minha biblioteca: o muito popular “Almanaque d’A Saúde da Mulher”, 1938. Almanach Bertrand, 1917 e 1927, e Almanach Hachette, 1933.

domingo, 29 de junho de 2025

Competências Fora de Lugar: Victor Cousin e o julgamento de Lucilio Vanini

Uma reflexão sobre os perigos do ecletismo metodológico na pesquisa acadêmica

Em 1843, a prestigiosa Revue des Deux Mondes publicou um artigo sobre o filósofo italiano Lucilio Vanini, executado em Toulouse em 1619. O autor era Victor Cousin, um dos mais respeitados intelectuais franceses da época, fundador da Escola Eclética e futuro Ministro da Instrução Pública. O artigo era eloquente, erudito, bem estruturado, porém, problemático do ponto de vista metodológico. Cousin baseou suas conclusões em documentos de autenticidade duvidosa, incluindo o suposto manuscrito de um escrivão chamado Malenfant. Cousin também admitiu usar cópias de documentos sem questionar suas condições de produção, origem ou intencionalidade política.

Como um intelectual de tamanha envergadura cometeu erros tão elementares? O exemplo de Cousin ilustra uma prática que transcende sua época, qual seja, o do exercício de uma competência fora de lugar. Ele era, sem dúvida, um homem notável de formação eclética, que combinava idealismo alemão, racionalismo cartesiano e empirismo escocês. Excelente para uma síntese filosófica, mas desastroso para pesquisa histórica. O ecletismo filosófico busca harmonizar correntes diversas, encontrar sínteses conciliadoras, construir sistemas abrangentes. Já a pesquisa histórica exige o exercício de uma desconfiança sistemática, não despensa análise das condições de produção dos documentos, além de rigorosa verificação de autenticidade, em falar em sua contextualização. Portanto, está-se diante de áreas do saber que têm pressupostos teóricos e metodológicos completamente distintos.

Não há nada de errado com o ecletismo, desde que se mantenham claros os pressupostos teóricos e metodológicos de cada área. Um behaviorista e um fenomenólogo, por exemplo, não obstante ligados à psicologia, podem enriquecer mutuamente a compreensão do comportamento humano, mas não poderiam misturar suas abordagens sem critério, visto que cada um parte de pressupostos distintos que exigem metodologias específicas. O mesmo vale para outras áreas. Um economista pode se beneficiar da sociologia, mas não pode aplicar modelos matemáticos a fenômenos que exigem análise qualitativa.Um antropólogo pode dialogar com a neurociência, mas não pode reduzir cultura a sinapses. Portanto, um historiador pode se inspirar na literatura, mas não pode tratar ficção como documento.

Cousin se deixou seduzir pela eloquência dos documentos que analisou. O suposto manuscrito de Malenfant era dramaticamente perfeito: tinha vilões, heróis, reviravoltas, uma moral edificante. Encaixava-se perfeitamente na narrativa que Cousin queria contar sobre o conflito entre razão e fé. Mas pesquisa não é literatura, e eloquência retórica não substitui rigor argumentativo. Por mais belo que seja um texto, por mais que impressione pela eloquência, suas informações só podem ser utilizadas após determinarmos:

  • Tempo: quando foi produzido?
  • Circunstância: quem o produziu, com que interesse, em que contexto?
  • Método: que procedimentos foram seguidos?
  • Pressuposto: que visão de mundo orienta o texto?

Sem isso, como dizia minha professora, fazemos "buracos na água" e "damos pontos sem nó". O caso Cousin nos alerta para um problema muito atual: a era da informação multiplicou as possibilidades de ecletismo, mas também os riscos de confusão metodológica. Vivemos tempos em que dados quantitativos são tratados como verdades absolutas, independente da metodologia de coleta. Vemos correlações estatísticas apresentadas como relações causais, sem falar em opiniões pessoais equiparadas a análises técnicas.

A solução não é abandonar o diálogo entre áreas. Pelo contrário, ele é essencial ao avanço do conhecimento. Mas toda pesquisa, toda análise, toda afirmação que pretenda atingir status de validação acadêmica deve deixar claros dois pontos fundamentais, quais sejam, o pressuposto teórico que orientou a investigação e a metodologia que determinou as conclusões obtidas. Só assim evitamos que nossas competências sejam aplicadas fora de lugar.

Porque, no final das contas, não basta ser eloquente. É preciso ser rigoroso.

Instituto de Humanidades. (s.d.). Cousin, Victor. Instituto de Humanidades. http://www.institutodehumanidades.com.br/index.php/c/208-cousin-victor

Cousin, V. (1843) Vanini, ses écrits, sa vie et sa mort, pp. 674-728, in «Revue des Deux Mondes», 2 e pér., année XIII, nouvelle série, t. IV.Paris, Au Bureau de la Revue des Deux Mondes, 1843, 1038

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Anatomia dos Sentimentos do Eu, segundo Wilhelm Stekel

Você conhece Wilhelm Stekel (1868-1940)? Esse psicanalista austríaco faz parte da história da psiquiatria. Inicialmente próximo de Freud, ele foi membro fundador da Sociedade Psicanalítica de Viena. Depois desenvolveu sua própria abordagem e rompeu com o círculo freudiano em 1912. Sua abordagem clínica em psicanálise era direta e intuitiva. Foi pioneiro no estudo dos sonhos, da linguagem simbólica e, especialmente, das neuroses e dos conflitos emocionais do cotidiano.

Stekel captava a essência dos sentimentos humanos, expondo-os de modo preciso. Uma de suas contribuições mais fascinantes diz respeito à sua compreensão da personalidade e dos mecanismos que governam nosso senso de identidade, e é isso que vamos expor aqui.

Para Stekel, "o homem é como ele se sente". Nessa frase simples, ele condensa toda uma teoria sobre a natureza da experiência humana. O que ele chama de "sentimento do eu" é nossa própria personalidade em ação. É a maneira como nos percebemos e nos posicionamos no mundo. Este sentimento, por sua vez, repousa sobre quatro pilares fundamentais: o amor próprio, o respeito, a confiança e a consciência de si. Contudo, há nisso algo de paradoxal: esse sentimento do eu, por mais íntimo e pessoal que pareça, não possui fontes autônomas, porque depende, fundamentalmente, do amor, do respeito, da confiança e do reconhecimento dos outros. Nossa autoestima é, portanto, uma construção social que se alimenta e que se confirma através do olhar alheio: tribunal invisível que nos avalia, valida ou invalida em termos pessoais. De tal dependência resulta nossa vulnerabilidade. Ataques que atingem os sentimentos do eu, mesmo indiretos, geram desprazer. Eles ameaçam a frágil e delicada estrutura de reconhecimento mútuo que sustenta nossa identidade. Stekel observa que há múltiplas maneiras pelas quais o eu se relaciona com o ambiente, e cada uma delas pode se tornar uma porta de entrada para feridas narcísicas.

O mais frequente desses sentimentos desagradáveis, segundo Stekel, é a inveja: a dolorosa convicção de que o patrimônio material ou espiritual do outro supera o nosso. A inveja, esse sentimento primordial, revela a nossa natural tendência à comparação e nossa dificuldade em aceitar a desigualdade inerente à condição humana.

Os ciúmes, por sua vez, representam uma modalidade específica de inveja: a "inveja erótica", o desprazer que nasce da convicção de que o outro é mais amado do que nós. Stekel vê no ciúme um sentimento egoísta que emerge quando a personalidade se sente ferida e não consegue mais sustentar o amor-próprio. É um sentimento primitivo que se opõe a nossas aspirações estéticas e culturais, revelando aspectos arcaicos de nossa psique.

O amor-próprio — que Stekel equipara ao narcisismo — exige do meio uma função especular. Precisamos do mundo como espelho que nos envie uma imagem satisfatória de nós mesmos. O amor, nessa perspectiva, revela sua natureza essencialmente egoísta: "te quero, porque me queres". É uma equação que supõe reciprocidade e que se justifica por meio do desejo mútuo. Uma lógica, porém, que contém em si o germe de sua destruição. Se o amor se baseia na correspondência, ele está sempre à beira de se transformar em ódio quando essa correspondência falha. A fórmula se inverte com facilidade desconcertante: "te odeio, porque não me queres". É por isso que o amor está sempre pronto a se transformar em ódio, visto o compartilhamento que ambos fazem de uma mesma estrutura narcísica básica.

Os ciúmes são a resultante do sentimento da personalidade ferida. Misturando malícia com desconfiança, o ciúme hipertrofia o amor-próprio e, paradoxalmente, soma a isso um sentimento de inferioridade de igual magnitude. É como se o ciumento vivesse simultaneamente uma inflação e uma deflação do ego, ao sentir-se simultaneamente superior na arrogância e inferior na insegurança. Stekel nos oferece sobre isso uma observação psicológica profunda: "Quem crê em si não é ciumento. Quem confia em si, confia nos outros." O ciúme revela, portanto, uma falha na autoconfiança que se projeta sobre o mundo externo. É a projeção das próprias deficiências sobre os demais que alimenta esse amor-próprio brutal e primitivo, tão característico da vida instintiva. Não é à toa que as crianças sejam naturalmente ciumentas. Elas ainda não desenvolveram os mecanismos de autorregulação emocional e de confiança em si mesmas que permitiriam uma forma mais madura de amor-próprio. O ciúme infantil nos lembra que carregamos, mesmo na vida adulta, essas camadas primitivas de funcionamento psíquico.

As observações de Stekel sobre os sentimentos do eu continuam relevantes mesmo depois de décadas. Elas são pertinentes a aspectos fundamentais da experiência humana que transcendem épocas e culturas. Vivemos numa sociedade cada vez mais conectada, onde as comparações sociais se multiplicam e se intensificam através das redes sociais e dos meios digitais. Talvez nunca tenha sido tão atual refletir sobre como nosso senso de identidade depende do reconhecimento alheio e como isso nos torna vulneráveis a sentimentos como inveja e ciúme. A genialidade de Stekel está em nos mostrar que esses sentimentos, por mais desconfortáveis que sejam, fazem parte da própria estrutura de nossa personalidade. Compreendê-los não significa eliminá-los, mas reconhecer sua função na economia psíquica e, talvez, encontrar formas mais maduras e construtivas de lidar com eles.

domingo, 15 de junho de 2025

Ovelhas Pensantes

"O homem é uma ovelha pensante. Crédulo e impulsivo, ele se precipita em direção a coisas que não vê e que não conhece. À mercê das ordens que recebe, ele se rebaixa ou se levanta, mergulha corpo e alma na multidão e deixe-se recobrir por ela até tornar-se irreconhecível."

Serge Moscovici, L'âge des foules

Esta passagem de Moscovici nos confronta com um paradoxo: somos seres que pensam, mas que, simultaneamente, se deixam conduzir como rebanhos. A metáfora da "ovelha pensante" é precisa. Raciocinamos, questionamos, criamos, mas frequentemente seguimos correntes, modas e opiniões sem nos perguntarmos o porquê? Arrastados por entusiasmos coletivos, abraçamos causas ou ideias não porque as compreendemos verdadeiramente, mas porque estão "no ar", porque todos ao redor parecem convergir para elas.

Moscovici fala dessa tendência humana de se "precipitar em direção a coisas que não vê e que não conhece". É fascinante como a curiosidade pode também ser nossa perdição quando não temperada pela cautela e pela reflexão. Há algo quase melancólico na ideia de se tornar "irreconhecível" no meio da multidão.

Talvez seja por isso que os momentos de solidão podem ser preciosos. É no silêncio que podemos nos reencontrar. Reconhecer nossa tendência gregária não implica em menosprezo de si. Ao contrário, talvez seja o primeiro passo para uma autonomia mais consciente.

sábado, 14 de junho de 2025

O Lipograma

O que acontece quando uma letra desaparece? Imagine um escritor que se impõe a tarefa de escrever sem usar uma das letras mais comuns de sua língua? Assim surge o lipograma: uma forma de literatura experimental onde determinadas letras são deliberadamente excluídas do texto. O termo vem do grego leipográmma, que significa literalmente "letra que falta". É um exercício radical de criatividade.

Um exemplo ambicioso e bem-sucedido dessa técnica? "O Sumiço" (La Disparition, 1969), do escritor francês Georges Perec, é um romance de mais de 250 páginas onde não aparece a letra “E”, aliás, a mais frequente da língua francesa. Mas não pense que se trata de uma proeza técnica que tenha em vista uma citação no Guinness Book. Longe disso, Perec faz do desaparecimento da letra o tema central do livro: misteriosos sumiços e desaparecimentos.

No Brasil, o livro foi publicado. Traduzi-lo, todavia, foi uma tarefa hercúlea que coube a José Roberto Andrade Féres ― que se assina Zéfere ― e que recria essa obra em português, transformando as palavras, mas sempre respeitando a fundamental ausência do “E”. O resultado é um texto que, nas palavras da própria editora, constitui "um verdadeiro (e divertido!) desafio para quem escreve, quem traduz e, claro, para quem lê."

O livro se abre com um poema de Jacques Roubaud (1932-2024), matemático, poeta e colega de Perec na OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial). O poema, também escrito sem a letra "E", funciona como uma espécie de portal para o universo linguístico que o leitor está prestes a adentrar:

"Obscura gralha bica um bricolado alado

ruindo um ruído no solo (um outrora trilado

por outra pluma (a som só lícito) ao ar livro

a ar riscar) a arrastar um rastro carvão vivo."

A linguagem rebuscada e aparentemente hermética revela sua lógica quando compreendemos a restrição: cada palavra foi escolhida não apenas por seu significado, mas por sua capacidade de existir sem a letra proibida.

O prólogo de “O Sumiço” nos insere no labirinto linguístico de Perec e, já nas primeiras linhas, somos confrontados com uma complexa descrição: "No Palais-Bourbon, a oposição ladrava safados insultos, calúnias sacanas, injúrias canalhas, mas a força afrontada, conquanto abalada, assombrada, mantinha sua obstinação por acalmar os ânimos..."

A linguagem é artificial, propositadamente. É quase barroca, graças aos esforços necessários para superar a ausência da letra suprimida. Onde normalmente encontraríamos construções simples e diretas, Perec nos oferece perífrases elaboradas, criando um estilo único que transforma a limitação em recurso. Porque a ausência da letra faz dela a protagonista que espelha e provoca sumiços e desaparecimentos que estruturam uma narrativa onde a forma é o próprio tema.

Uma vez assimilada a lógica do lipograma, somos surpreendidos pela engenhosidade dessa verdadeira obra de arte linguística. Perec nos mostra como a literatura pode ser um laboratório. Ele nos ensina que limitações podem ser libertárias e que mesmo a ausência pode fazer frente à própria ausência.

"O Sumiço" foi publicado no Brasil pela Editora Autêntica em 2016, com tradução de Zéfere (José Roberto Andrade Féres).

segunda-feira, 9 de junho de 2025

RATIO ET AUCTORITAS

 Ratio et Auctoritas nasce como espaço dedicado à reflexão crítica sobre temas ligados ao Direito em suas dimensões normativas, políticas, sociais, históricas e simbólicas. O nome do blog expressa a tensão entre a ratio, entendida como a capacidade de pensar criticamente, de interrogar os fundamentos do Direito, e a auctoritas, tomada aqui como a força normativa, o peso institucional e simbólico que estrutura o ordenamento jurídico. Essa tensão é constitutiva do próprio Direito, sempre entre o ideal racional de justiça e os mecanismos concretos de poder que instituem normas, impõem condutas e, não raramente, estabelecem exclusões. A proposta do blog é compreender a episteme subjacente a essa tensão, promovendo uma análise reflexiva do Direito não apenas como técnica normativa, mas como fenômeno histórico, político e simbólico.

O Ratio et Auctoritas não se propõe apenas a divulgar conhecimentos jurídicos. Busca, antes, promover o pensamento, com textos acessíveis voltados à compreensão crítica de temas que nos tocam de forma direta e cotidiana. Trata-se de pensar o Direito onde ele acontece: nas decisões judiciais, nos conflitos sociais, nas políticas públicas, nos discursos da autoridade, nas prisões, na lei e na ausência dela.

A autoridade (auctoritas) no campo jurídico não se resume à imposição vertical de normas. Ela também é legitimada por construções simbólicas, por tradições interpretativas, por práticas institucionais aparentemente neutras, mas, por vezes, carregadas de disputas políticas e morais. Questionar a autoridade, nesse sentido, não é negá-la, mas problematizar seus fundamentos e seus efeitos, especialmente quando ela se torna instrumento de exclusão, silenciamento e dominação. Um dos espaços onde essa tensão entre razão e autoridade se manifesta mais claramente é, por exemplo, no campo das políticas criminais. É lá que o Direito Penal revela seu duplo rosto: ora como garantidor de direitos e promotor da justiça, ora como poderoso mecanismo de controle social seletivo. Ratio et Auctoritas é, portanto, um convite para se pensar o Direito como uma construção humana, histórica, sujeita a revisões, disputas e transformações, apresentando textos pertinentes a diversas áreas jurídicas, discutindo temas práticos e atuais, assim como temas históricos.

Por fim, este blog nasce também de uma travessia pessoal. Habito a blogosfera há décadas, mas nunca havia escrito sobre Direito — talvez por ser, justamente, aquilo com que lido diariamente desde 1978. Ao longo dessas décadas, vivi e acompanhei transformações profundas: do AI-5 à Constituição de 1988, da vigência do Código Civil de 1916 ao advento do Código de 2002, da estrutura do antigo Código de Processo Civil à lógica principiológica que orienta o CPC de 2015, passando por sucessivas reformas penais que tensionaram o sistema sem, no entanto, romper com sua seletividade. Acompanhei, também, a infiltração de uma nova racionalidade jurídica, que exigiu de todos nós não apenas atualização técnica, mas um reposicionamento ético diante do Direito. Tornei-me, com o tempo, uma espécie de arquivo vivo dessas mudanças — nem sempre confortável, mas sempre presente. Talvez por isso, e só por isso, sinta que ainda tenho algo a dizer. Este espaço é, então, também um gesto de presença: um esforço de pensar criticamente o Direito, porque nele vivemos, resistimos e, quem sabe, transformamos.

Visite: RATIO ET AUCTORITAS

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Literatura: o lugar do segredo

Uma confidência para terminar.
Talvez eu tenha apenas querido confiar — ou confirmar — meu gosto (provavelmente incondicional) pela literatura, mais precisamente pela escrita literária. Não que eu ame a literatura em geral, nem que a prefira a qualquer outra coisa — por exemplo, como pensam frequentemente aqueles que, no fim das contas, não discernem nem uma coisa nem outra — à filosofia. Não que eu queira reduzir tudo a ela, e sobretudo não à filosofia. A literatura, eu posso me passar dela, no fundo — e, de fato, com bastante facilidade. Se eu tivesse de me retirar para uma ilha, seriam, no fundo, livros de história, memórias, que eu levaria comigo, sem dúvida, e que leria à minha maneira — talvez para fazer disso literatura, a menos que fosse o contrário. E isso valeria para outros livros também (em arte, filosofia, religião, ciências humanas ou naturais, direito, etc.). Mas se, sem amar a literatura em geral e por ela mesma, eu amo algo nela que sobretudo não se reduz a alguma qualidade estética, a alguma fonte de prazer formal, seria o lugar do segredo. O lugar de um segredo absoluto. Aí estaria a paixão. Não há paixão sem segredo — este segredo aqui —, mas também não há segredo sem esta paixão. O lugar do segredo: onde, no entanto, tudo é dito e onde o que resta não é nada — senão o resto, nem mesmo literatura.

Derrida, J. (1993). Passions (pp. 63–64). Paris: Éditions Galilée.

Nesse fragmento comovente de Passions, Jacques Derrida revela o que pode ser considerado o cerne mais íntimo da literatura: o lugar do segredo. Não é o belo que o atrai, nem o prazer estético ou o deleite formal. O que lhe move é aquilo que na literatura escapa à definição, à captura, à explicitação — esse "segredo absoluto" que não se deixa domesticar.

Ao declarar que “aí estaria a paixão”, Derrida sugere que a verdadeira força da literatura não reside no que ela diz, mas naquilo que ela resguarda, no não-dito que pulsa por trás das palavras. É essa ausência densa, esse silêncio cheio, que confere à literatura um valor existencial e cultural insubstituível — como um bem simbólico que atravessa gerações, justamente por não se deixar esgotar nunca.

Derrida começa com uma confidência: talvez tenha querido apenas confessar seu amor pela escrita literária. Mas faz isso por meio de uma negativa, ou melhor, de uma série de afastamentos — ele não ama “a literatura em geral”, nem a prefere à filosofia, nem deseja reduzi-la a nenhuma estética. Ao contrário, afirma que poderia viver sem ela. E, no entanto, é justamente esse “em torno”, esse quase desamor, que revela sua paixão mais autêntica: ele ama o que na literatura não se revela, o que permanece guardado, secreto, talvez inalcançável — mas sempre presente.

Esse gesto de Derrida — nomear o que não se diz — é profundamente literário, mas também cultural. No campo da memória social, a literatura opera como um dos lugares onde se depositam não apenas os fatos ou os discursos, mas também os vazios, os silêncios e os enigmas da experiência humana. Ela carrega consigo uma memória que não se deixa traduzir em arquivos ou documentos. É, por isso, um bem cultural singular: ao mesmo tempo presença e ausência, linguagem e intervalo, confidência e silêncio.

Derrida nos lembra que não há paixão sem segredo — mas tampouco há segredo sem essa paixão silenciosa que é a própria escrita. O que a literatura nos oferece, no fim, não é apenas um espelho do mundo, mas o reflexo de um desejo: o desejo de tocar o que não se toca, de dizer o que não se diz.