sábado, 14 de junho de 2025

O Lipograma

O que acontece quando uma letra desaparece? Imagine um escritor que se impõe a tarefa de escrever sem usar uma das letras mais comuns de sua língua? Assim surge o lipograma: uma forma de literatura experimental onde determinadas letras são deliberadamente excluídas do texto. O termo vem do grego leipográmma, que significa literalmente "letra que falta". É um exercício radical de criatividade.

Um exemplo ambicioso e bem-sucedido dessa técnica? "O Sumiço" (La Disparition, 1969), do escritor francês Georges Perec, é um romance de mais de 250 páginas onde não aparece a letra “E”, aliás, a mais frequente da língua francesa. Mas não pense que se trata de uma proeza técnica que tenha em vista uma citação no Guinness Book. Longe disso, Perec faz do desaparecimento da letra o tema central do livro: misteriosos sumiços e desaparecimentos.

No Brasil, o livro foi publicado. Traduzi-lo, todavia, foi uma tarefa hercúlea que coube a José Roberto Andrade Féres ― que se assina Zéfere ― e que recria essa obra em português, transformando as palavras, mas sempre respeitando a fundamental ausência do “E”. O resultado é um texto que, nas palavras da própria editora, constitui "um verdadeiro (e divertido!) desafio para quem escreve, quem traduz e, claro, para quem lê."

O livro se abre com um poema de Jacques Roubaud (1932-2024), matemático, poeta e colega de Perec na OuLiPo (Oficina de Literatura Potencial). O poema, também escrito sem a letra "E", funciona como uma espécie de portal para o universo linguístico que o leitor está prestes a adentrar:

"Obscura gralha bica um bricolado alado

ruindo um ruído no solo (um outrora trilado

por outra pluma (a som só lícito) ao ar livro

a ar riscar) a arrastar um rastro carvão vivo."

A linguagem rebuscada e aparentemente hermética revela sua lógica quando compreendemos a restrição: cada palavra foi escolhida não apenas por seu significado, mas por sua capacidade de existir sem a letra proibida.

O prólogo de “O Sumiço” nos insere no labirinto linguístico de Perec e, já nas primeiras linhas, somos confrontados com uma complexa descrição: "No Palais-Bourbon, a oposição ladrava safados insultos, calúnias sacanas, injúrias canalhas, mas a força afrontada, conquanto abalada, assombrada, mantinha sua obstinação por acalmar os ânimos..."

A linguagem é artificial, propositadamente. É quase barroca, graças aos esforços necessários para superar a ausência da letra suprimida. Onde normalmente encontraríamos construções simples e diretas, Perec nos oferece perífrases elaboradas, criando um estilo único que transforma a limitação em recurso. Porque a ausência da letra faz dela a protagonista que espelha e provoca sumiços e desaparecimentos que estruturam uma narrativa onde a forma é o próprio tema.

Uma vez assimilada a lógica do lipograma, somos surpreendidos pela engenhosidade dessa verdadeira obra de arte linguística. Perec nos mostra como a literatura pode ser um laboratório. Ele nos ensina que limitações podem ser libertárias e que mesmo a ausência pode fazer frente à própria ausência.

"O Sumiço" foi publicado no Brasil pela Editora Autêntica em 2016, com tradução de Zéfere (José Roberto Andrade Féres).

Nenhum comentário:

Postar um comentário