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sexta-feira, 20 de abril de 2018

Testemunhos e método crítico

1. Esboço de uma história do método crítico
Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, os mais ingênuos dos policiais sabem bem. Livres, de resto, para nem sempre tirar desse conhecimento teórico o partido que seria preciso. Do mesmo modo, há muito tempo estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos históricos. Uma experiência, quase tão velha como a humanidade, nos ensinou que mais de um texto se diz de outra proveniência do que de fato é: nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais, [eles] também, podem ser falsificados. Na Idade Média, diante da própria abundância de falsificações, a dúvida foi [frequentemente] como um reflexo natural de defesa. "Com tinta, qualquer um pode escrever qualquer coisa" exclamava, no século XI, um fidalgo provinciano loreno, em processo contra monges que armavam-se de provas documentais contra ele. A Doação de Constantino — essa espantosa elucubração que um clérigo romano do século VIII assinou sob o nome do primeiro César cristão — foi, três séculos mais tarde, contestada nos círculos do mui pio imperador Oto III. As falsas relíquias são procuradas desde que as relíquias existem.
No entanto, o ceticismo de princípio não é uma atitude intelectual mais estimável ou mais fecunda que a credulidade, com a qual, aliás, combina-se facilmente em muitos espíritos um pouco simplistas. Conheci, durante a outra guerra, um simpático veterinário que, não sem alguma aparência de razão, recusava-se sistematicamente a dar qualquer crédito às notícias dos jornais. Mas se alguém despejasse em seu ouvido boatos dos mais inverossímeis, deliciava-se.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 90.

quarta-feira, 7 de março de 2018

A propósito da credulidade


“Antigamente, a menos que se tivesse previamente razões bem fortes para suspeitar de mentira suas testemunhas ou seus narradores, todo fato afirmado era, em três quartos das ocasiões, um fato aceito. Não estamos falando: isso aconteceu há muito tempo. Lucien Febvre mostrou isso, excelentemente, para o Renascimento: não se pensava, não se agia de maneira diferente em épocas bastante próximas [de nós] para que suas obras-primas permanecessem para nós ainda um alimento vivo. Não estamos falando: esta era naturalmente a atitude daquela multidão crédula da qual, até os dias em que vivemos, a grande massa, infelizmente mesclada a mais de um semierudito, ameaça constantemente arrastar nossas frágeis civilizações rumo a terríveis abismos de ignorância ou de loucuras. As mais firmes inteligências não escapavam então, não podiam escapar ao preconceito comum. Contava-se que caíra uma chuva de sangue? Então é que havia chuvas de sangue. Montaigne lia, em seus caros Antigos, esta ou aquela lorota sobre o país cujos habitantes nascem sem cabeça ou sobre a força prodigiosa do peixe rêmora?. Ele as inscrevia sem pestanejar entre os argumentos de sua dialética [: por mais capaz que fosse de desmontar engenhosamente o mecanismo de um falso rumor, as idéias feitas o deixavam bem mais desconfiado do que supostos fatos atestados]. Assim, reinava, segundo o mito rabelaisiano, o velho Ouvir-Dizer. No mundo físico como no mundo dos homens. No mundo físico talvez mais ainda do que no mundo dos homens. Pois, instruído por uma experiência mais direta, duvidava-se mais de um acontecimento humano do que de um meteoro ou de um pretenso acidente da vida orgânica. A filosofia de vocês repelia o milagre? Ou a religião de vocês repelia os milagres das outras religiões? Seria preciso que se esforçassem penosamente para descobrir para essas surpreendentes manifestações causas supostamente inteligíveis que, na verdade ações demoníacas ou influxos ocultos, continuavam a aderir a um sistema de ideias ou imagens completamente estranho ao que chamaríamos hoje de pensamento científico. Negar a própria manifestação, tal audácia não ocorria ao espírito. [Corifeu dessa escola paduana tão estranha ao sobrenatural cristão,] Pomponazzi não acredita que reis, mesmo ungidos pelo crisma da santa ampola, pudessem, porque eram reis, curar doentes ao tocá-los. No entanto, não contestava absolutamente as curas. Admitia-as a título de uma propriedade fisiológica por ele concebida como hereditária [O médico real, supunha ele, molhando todas as vezes seu dedo antes de tocá-lo]: o glorioso privilégio da função sagrada era associado às virtudes curativas de uma saliva dinástica.”

BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 123.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Apologia da História

“Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, dentre os quais muitos escapam à medida matemática. Para bem traduzi-los, portanto para bem penetrá-los (pois será que se compreende alguma vez perfeitamente o que não se sabe dizer?), uma grande finesse de linguagem, [uma cor correta no tom verbal] são necessárias. Onde calcular é impossível, impõe-se sugerir”
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 54-55.