domingo, 29 de junho de 2025

Competências Fora de Lugar: Victor Cousin e o julgamento de Lucilio Vanini

Uma reflexão sobre os perigos do ecletismo metodológico na pesquisa acadêmica

Em 1843, a prestigiosa Revue des Deux Mondes publicou um artigo sobre o filósofo italiano Lucilio Vanini, executado em Toulouse em 1619. O autor era Victor Cousin, um dos mais respeitados intelectuais franceses da época, fundador da Escola Eclética e futuro Ministro da Instrução Pública. O artigo era eloquente, erudito, bem estruturado, porém, problemático do ponto de vista metodológico. Cousin baseou suas conclusões em documentos de autenticidade duvidosa, incluindo o suposto manuscrito de um escrivão chamado Malenfant. Cousin também admitiu usar cópias de documentos sem questionar suas condições de produção, origem ou intencionalidade política.

Como um intelectual de tamanha envergadura cometeu erros tão elementares? O exemplo de Cousin ilustra uma prática que transcende sua época, qual seja, o do exercício de uma competência fora de lugar. Ele era, sem dúvida, um homem notável de formação eclética, que combinava idealismo alemão, racionalismo cartesiano e empirismo escocês. Excelente para uma síntese filosófica, mas desastroso para pesquisa histórica. O ecletismo filosófico busca harmonizar correntes diversas, encontrar sínteses conciliadoras, construir sistemas abrangentes. Já a pesquisa histórica exige o exercício de uma desconfiança sistemática, não despensa análise das condições de produção dos documentos, além de rigorosa verificação de autenticidade, em falar em sua contextualização. Portanto, está-se diante de áreas do saber que têm pressupostos teóricos e metodológicos completamente distintos.

Não há nada de errado com o ecletismo, desde que se mantenham claros os pressupostos teóricos e metodológicos de cada área. Um behaviorista e um fenomenólogo, por exemplo, não obstante ligados à psicologia, podem enriquecer mutuamente a compreensão do comportamento humano, mas não poderiam misturar suas abordagens sem critério, visto que cada um parte de pressupostos distintos que exigem metodologias específicas. O mesmo vale para outras áreas. Um economista pode se beneficiar da sociologia, mas não pode aplicar modelos matemáticos a fenômenos que exigem análise qualitativa.Um antropólogo pode dialogar com a neurociência, mas não pode reduzir cultura a sinapses. Portanto, um historiador pode se inspirar na literatura, mas não pode tratar ficção como documento.

Cousin se deixou seduzir pela eloquência dos documentos que analisou. O suposto manuscrito de Malenfant era dramaticamente perfeito: tinha vilões, heróis, reviravoltas, uma moral edificante. Encaixava-se perfeitamente na narrativa que Cousin queria contar sobre o conflito entre razão e fé. Mas pesquisa não é literatura, e eloquência retórica não substitui rigor argumentativo. Por mais belo que seja um texto, por mais que impressione pela eloquência, suas informações só podem ser utilizadas após determinarmos:

  • Tempo: quando foi produzido?
  • Circunstância: quem o produziu, com que interesse, em que contexto?
  • Método: que procedimentos foram seguidos?
  • Pressuposto: que visão de mundo orienta o texto?

Sem isso, como dizia minha professora, fazemos "buracos na água" e "damos pontos sem nó". O caso Cousin nos alerta para um problema muito atual: a era da informação multiplicou as possibilidades de ecletismo, mas também os riscos de confusão metodológica. Vivemos tempos em que dados quantitativos são tratados como verdades absolutas, independente da metodologia de coleta. Vemos correlações estatísticas apresentadas como relações causais, sem falar em opiniões pessoais equiparadas a análises técnicas.

A solução não é abandonar o diálogo entre áreas. Pelo contrário, ele é essencial ao avanço do conhecimento. Mas toda pesquisa, toda análise, toda afirmação que pretenda atingir status de validação acadêmica deve deixar claros dois pontos fundamentais, quais sejam, o pressuposto teórico que orientou a investigação e a metodologia que determinou as conclusões obtidas. Só assim evitamos que nossas competências sejam aplicadas fora de lugar.

Porque, no final das contas, não basta ser eloquente. É preciso ser rigoroso.

Instituto de Humanidades. (s.d.). Cousin, Victor. Instituto de Humanidades. http://www.institutodehumanidades.com.br/index.php/c/208-cousin-victor

Cousin, V. (1843) Vanini, ses écrits, sa vie et sa mort, pp. 674-728, in «Revue des Deux Mondes», 2 e pér., année XIII, nouvelle série, t. IV.Paris, Au Bureau de la Revue des Deux Mondes, 1843, 1038

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