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domingo, 3 de agosto de 2025

INQUISIÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO SÉCULO XVII: o julgamento de Giulio Cesare Lucílio Vanini, o inimigo da fé

 


Em 1619, na cidade de Toulouse, um homem teve sua língua cortada antes de ser queimado pela Santa Inquisição. Seu crime? Defender ideias consideradas ateístas e questionar os dogmas estabelecidos. Este homem era Giulio Cesare Lucilio Vanini, filósofo italiano que se tornou símbolo da resistência intelectual contra o poder clerical.
INQUISIÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO SÉCULO XVII: O JULGAMENTO DE GIULIO CESARE LUCÍLIO VANINI, O INIMIGO DA FÉ conta a história deste pensador de quem não se fala muito atualmente. Seu martírio, contudo, mostra como técnicas de silenciamento, quase sempre seguidas do linchamento moral do suposto inimigo, foram usadas em tempos de tensões políticas, religiosas e sociais da França sob Luís XIII. Não se trata apenas da biografia de Vanini, mas de um estudo voltado ao contexto histórico de sua execução.
As dinâmicas de poder entre Igreja e Estado no século XVII apontavam para um período marcado pelas consequências da Reforma e da Contrarreforma. Vanini surge como figura emblemática de uma época em que o catolicismo lutava para manter sua hegemonia diante das novas correntes de pensamento que emergiam do Renascimento. Seu julgamento e execução exemplificam a "pedagogia do medo" utilizada pelas autoridades para controlar dissidentes e manter a ordem social estabelecida.
Como fontes, foram utilizados documentos como a Histoire véritable de tout ce qui s'est fait et passé depuis le premier janvier 1619 ― um relato anônimo contemporâneo ao julgamento ― e materiais do L'Archivio dei filosofi del Rinascimento. São as narrativas oficiais e populares, analisadas de perto neste livro, que construíram a imagem de Vanini como "inimigo da fé". Panfletos sensacionalistas da época contribuíram para demonizar o filósofo, associando-o a práticas heréticas e criando um clima de terror em Toulouse.
Para além do contexto biográfico, trata-se de um estudo dos mecanismos de controle social e repressão intelectual, que mostra como o século XVII lidava com questões fundamentais como liberdade de expressão, autoridade religiosa e pensamento crítico. O caso Vanini ilumina os conflitos entre razão e fé, individualidade e conformidade social.
Um livro para compreender:

  • As dinâmicas de poder no século XVII francês
  • Os mecanismos da Inquisição e do controle social
  • A biografia de um filósofo que morreu pela liberdade de pensamento
  • As tensões entre Igreja e Estado na França de Luís XIII
  • As origens históricas dos debates sobre liberdade de expressão

Homenagem à memória de um homem que morreu sem renunciar às suas convicções.

Disponível em:  https://www.amazon.com.br/dp/B0FJZGW15P

domingo, 29 de junho de 2025

Competências Fora de Lugar: Victor Cousin e o julgamento de Lucilio Vanini

Uma reflexão sobre os perigos do ecletismo metodológico na pesquisa acadêmica

Em 1843, a prestigiosa Revue des Deux Mondes publicou um artigo sobre o filósofo italiano Lucilio Vanini, executado em Toulouse em 1619. O autor era Victor Cousin, um dos mais respeitados intelectuais franceses da época, fundador da Escola Eclética e futuro Ministro da Instrução Pública. O artigo era eloquente, erudito, bem estruturado, porém, problemático do ponto de vista metodológico. Cousin baseou suas conclusões em documentos de autenticidade duvidosa, incluindo o suposto manuscrito de um escrivão chamado Malenfant. Cousin também admitiu usar cópias de documentos sem questionar suas condições de produção, origem ou intencionalidade política.

Como um intelectual de tamanha envergadura cometeu erros tão elementares? O exemplo de Cousin ilustra uma prática que transcende sua época, qual seja, o do exercício de uma competência fora de lugar. Ele era, sem dúvida, um homem notável de formação eclética, que combinava idealismo alemão, racionalismo cartesiano e empirismo escocês. Excelente para uma síntese filosófica, mas desastroso para pesquisa histórica. O ecletismo filosófico busca harmonizar correntes diversas, encontrar sínteses conciliadoras, construir sistemas abrangentes. Já a pesquisa histórica exige o exercício de uma desconfiança sistemática, não despensa análise das condições de produção dos documentos, além de rigorosa verificação de autenticidade, em falar em sua contextualização. Portanto, está-se diante de áreas do saber que têm pressupostos teóricos e metodológicos completamente distintos.

Não há nada de errado com o ecletismo, desde que se mantenham claros os pressupostos teóricos e metodológicos de cada área. Um behaviorista e um fenomenólogo, por exemplo, não obstante ligados à psicologia, podem enriquecer mutuamente a compreensão do comportamento humano, mas não poderiam misturar suas abordagens sem critério, visto que cada um parte de pressupostos distintos que exigem metodologias específicas. O mesmo vale para outras áreas. Um economista pode se beneficiar da sociologia, mas não pode aplicar modelos matemáticos a fenômenos que exigem análise qualitativa.Um antropólogo pode dialogar com a neurociência, mas não pode reduzir cultura a sinapses. Portanto, um historiador pode se inspirar na literatura, mas não pode tratar ficção como documento.

Cousin se deixou seduzir pela eloquência dos documentos que analisou. O suposto manuscrito de Malenfant era dramaticamente perfeito: tinha vilões, heróis, reviravoltas, uma moral edificante. Encaixava-se perfeitamente na narrativa que Cousin queria contar sobre o conflito entre razão e fé. Mas pesquisa não é literatura, e eloquência retórica não substitui rigor argumentativo. Por mais belo que seja um texto, por mais que impressione pela eloquência, suas informações só podem ser utilizadas após determinarmos:

  • Tempo: quando foi produzido?
  • Circunstância: quem o produziu, com que interesse, em que contexto?
  • Método: que procedimentos foram seguidos?
  • Pressuposto: que visão de mundo orienta o texto?

Sem isso, como dizia minha professora, fazemos "buracos na água" e "damos pontos sem nó". O caso Cousin nos alerta para um problema muito atual: a era da informação multiplicou as possibilidades de ecletismo, mas também os riscos de confusão metodológica. Vivemos tempos em que dados quantitativos são tratados como verdades absolutas, independente da metodologia de coleta. Vemos correlações estatísticas apresentadas como relações causais, sem falar em opiniões pessoais equiparadas a análises técnicas.

A solução não é abandonar o diálogo entre áreas. Pelo contrário, ele é essencial ao avanço do conhecimento. Mas toda pesquisa, toda análise, toda afirmação que pretenda atingir status de validação acadêmica deve deixar claros dois pontos fundamentais, quais sejam, o pressuposto teórico que orientou a investigação e a metodologia que determinou as conclusões obtidas. Só assim evitamos que nossas competências sejam aplicadas fora de lugar.

Porque, no final das contas, não basta ser eloquente. É preciso ser rigoroso.

Instituto de Humanidades. (s.d.). Cousin, Victor. Instituto de Humanidades. http://www.institutodehumanidades.com.br/index.php/c/208-cousin-victor

Cousin, V. (1843) Vanini, ses écrits, sa vie et sa mort, pp. 674-728, in «Revue des Deux Mondes», 2 e pér., année XIII, nouvelle série, t. IV.Paris, Au Bureau de la Revue des Deux Mondes, 1843, 1038

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Giulio Cesare Lucilio Vanini

Chamava-se Giulio Cesare Lucilio Vanini. Dele disseram que foi um homem de boa aparência, um pouco magro, alto, com cabelos desgrenhados, nariz comprido e curvo, olhos brilhantes e ligeiramente acinzentados. Condenado pela Santa Inquisição, foi entregue nas mãos do executor, que o expôs em frente à porta principal da igreja metropolitana de Saint-Estienne. Vestia uma camisa. Sobre o peito, o colarinho e, sobre os ombros, um cartaz contendo estas palavras: “Ateu e blasfemador do nome de Deus”. De joelhos, cabeça e pés descalços, segurando nas mãos uma tocha acesa, ele deveria pedir perdão a Deus, ao rei e à justiça. Em vez disso, no entanto, diz-se que teria proferido uma terrível blasfêmia: “Illi [Cristo] in extremis præ timore imbellis sudor, ego imperterritus morior.” Então, preso a uma estaca, depois de ter a língua cortada, foi estrangulado, tendo seu corpo queimado em uma fogueira e suas cinzas lançadas ao vento[1].

O ano é 1619, a cidade é Toulouse, França. A cena impressiona e o sujeito, não menos. Vale o tempo investido em um estudo, não obstante a complexidade das fontes primárias implicadas na pesquisa. O julgamento de Vanini, quando examinado do ponto de vista das narrativas que o transpuseram ao patamar da história, revela-nos a dinâmica do poder, a construção de inimigos internos e a manutenção da ordem social através da exclusão e punição de indivíduos considerados desviantes. O mundo mudou, a história concluiu seus julgamentos, mas seriam vãos quaisquer esforços em pretender uma hegemonia. O passado em si não existe mais. Ele comporta apenas versões construídas a partir da experiência de sujeitos que não têm como nos alcançar uma realidade objetiva, porquanto sua experiência do mundo sempre estará sujeita à influência de elementos do imaginário e do simbólico, quando não dos interesses implicados. É preciso, acima de tudo, buscar entender o cenário em que se deram os fatos que desejamos estudar, não nos esquecendo de que fontes jamais são neutras.


[1] Cousin, V. (1856). Vanini ou la philosophie avant Descartes. Didier.