segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Texto histórico e texto literário

É fácil distinguir um texto histórico de um texto literário. Enquanto este último se deixa marcar por convenções de ordem ficcional, o texto histórico presume, da parte de seu enunciador, um profundo comprometimento com a veracidade daquilo que afirma, outorgando-lhe ― dir-se-ia ― caráter de verossimilhança, a deixar-se aqui a verdade a cargo dos filósofos. Verossímil é quase que uma modalidade, uma forma de representar ao leitor fatos, acontecimentos, de sorte a fazê-lo compreender dado contexto, graças à imaginação. “O verossímil é a modalidade intermediária, mediadora, necessária destas construções tanto nas representações visuais como naquelas que se apoiam sobre a linguagem” (LEENHARDT, 1998, p. 43). Existe ainda, da parte do enunciador de um texto que se pretende expressão da verdade, uma expectativa de que aquilo que diz seja tomado como tal, ou ele teria incidido em erro. Em caso de ficcionalidade, não haveria risco de exposição ao erro, uma vez que o leitor não deve esperar encontrar ali o mesmo conteúdo de verdade que encontra ― ou que deveria encontrar ― num texto histórico. Para Leenhardt, no debate teórico travado entre a história e a literatura, seria preciso admitir que a produção da linguagem da verossimilhança, a colocação estratégica do “efeito de crença” buscaria apoio “na vontade de fazer crer que as coisas se passaram realmente assim”, esta produção, enfim, seria devida “menos a uma suposta exatidão dos fatos do que à função imaginária que preenche o verossímil na construção da consciência individual e social” (idem, p. 42/43).

LEENHARDT, Jacques. A construção da identidade pessoal e social através da história e da literatura, in: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra (org.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Ed. UNICAMP, 1998. 

domingo, 28 de janeiro de 2018

Cidades, eternamente

"Tenho ido ao Pão dos Pobres, aos domingos e lá deixado o meu obulo, em teu nome. Me habituei com estas visitas dominicaes; de manhã saio, cheio de pensamentos evangelicos, olhando com ternura mystica pros homens e pras cousas, tomo o bonde como qualquer pacato, desço perto da ponte da Azenha. E vou andando, olho com enternecimento fransciscano para ervinhas que crescem entre as pedras da rua e para a agua do riacho. Vou rezando a minha oração lyrica. A poesia toma uma forma infinita, sem “formas”, dispersa em todo o universo, vou sorvendo o azul como expressão do indefinível. Vou sentindo Deus, vivendo a ideia divina. Depois, entro na igreja de Santo Antônio, e penso em ti. Eu só sei entender Santo Antonio atravéz da minha affeição por ti: Tua existencia se mistura com a existencia de Santo Antonio no altar. Rezando, eu converso também contigo, rezo pra ti, conversando com Santo Antonio. Santo Antonio está em nossa vida como um amigo invisível que só pode fazer bem. A gente tem desses amigos, habitantes do outro mundo" Trecho de carta de Francisco para Maria de 25/07/1933, Porto Alegre.


O fato de ser redutível a um espaço geográfico tangível não impede que a cidade abrigue imaginários, cuja força de expressão pode ser experimentada quando emerge dessas fontes. Mas tal leitura depende um pouco de nós, é verdade, de certa disposição de nossa vontade, de certa perversão de nossa razão, por contágio sugestivo, quem sabe... Ler esta carta e tentar acostumar-se a passear aos domingos por Porto Alegre, em 1933, descer de um bonde bem na ponte da Azenha, aquela onde começara a Guerra dos Farrapos há então quase cem anos, e seguir os passos do pacato Francisco até o Pão dos Pobres, entrando numa igreja onde Maria disputa lugar com Santo Antônio sobre o altar. Nada mais cotidiano e, paradoxalmente, nada mais extraordinário. Porque o dia a dia pode estar repleto dessa propriedade mágica que encanta suas ruas, seus rios, que diviniza altares, ainda que profanando-os, graças às eternas indulgências concedidas pelo amor. Cidades são, sim, fenômenos culturais por excelência e talvez seja preciso naturalizar-se porto-alegrense para alcançar essa cidadania. 


segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Multidões


"L'homme est un mouton pensant. Crédule et impulsif, il se précipite vers des choses qu'il ne voit ni ne connaît. Au gré des ordres qu'il reçoit, il se baisse ou se redresse, plonge corps et âme dans la multitude et se laisse recouvrir par elle jusqu'à devenir méconnaissable."

MOCOVICI, Serge. L’âge des foules. un traité historique de psychologie des masses. : Les Éditions Complexe, 1985.