quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Revista Vida Brasil

Modo viagem

domingo, 15 de setembro de 2019

Recentemente voltei de uma viagem com amigas.Além de aproveitar cada momento, o assunto principal foi saber se teríamos algo a dizer sobre viagens, quando já estamos, todas três, naquela idade na qual, delicadamente, se referem a nós como meninas. Foi mesmo divertido, quando o colaborador da companhia aérea, — um bonitão, aliás —, olhou para nós e, depois de conferir os check-ins, deu um sorriso irresistível e saiu com essa:

Modo viagem

  — “Então, as meninas vão juntas passear pelo Nordeste? ” — “Vamos sim” —, respondemos quase em coro, notando o quanto pode ser divertido o fato de sermos percebidas como senhorinhas, eufemisticamente, meninas.

A idade sugere aos outros que nos vejam a partir de uma suposta fragilidade, de sorte que passam a cuidar de nós. É claro que, tempos atrás, quiséramos antes que o colaborador bonitão nos sorrisse por outros motivos, mas o que importa é que ele sorriu. A velha história do é o que temos. Lembrei-me então de quando Rogério me confessou que estava na fila comum de embarque, quando viu aproximar-se dele uma linda jovem que o olhava fixamente e sorria. Ela, sem pedir licença, tomou-o pelo braço e, persuasiva, disse-lhe: — O senhor vem comigo aqui —, enquanto o conduzia para a fila preferencial.
 
Pois é. Viajar. Quem sabe até eu — que viajo pouco e que nem mesmo gosto de sair de casa —, não tenha alguma coisa a dizer sobre isso. O mundo está cheio de gente que simplesmente adora viajar, que mal chega em casa e já quer sair outra vez. Gente que vive em função de estar fora e que faz o mundo inteiro, — mais o Facebook e o Instagram —, saber onde estão, com quem estão e fazendo quê. Fora aqueles que possuem blogs de viagem, que dão dicas, palpites, opiniões, sugerem destinos e que sabem tudo sobre viajar.

Não é o meu caso. Imagina! Eu? Não. No entanto, pensando bem, talvez justamente por eu ser alguém bem ao estilo não passageira, o que tenha a dizer sobre viajar acabe por ser útil a outras criaturas tão caseiras e rotineiras quanto eu.

Inspirada nessa possível utilidade do que teria a dizer sobre viagens uma não viajante, sentei-me aqui para me divertir um pouco e compartilhar com leitores o que chamo de o meu modo viagem. Entro nele sempre que é preciso deixar para trás minha zona de conforto: meu doce lar, que adoro habitar, repleto de livros, de quadros e de outras velharias além de mim.

Com o tempo, acabei adquirindo manias. Não como qualquer coisa nem durmo em qualquer lugar. Tenho uma série de hábitos que tornam minha pacata vidinha um tanto quanto complicada, ao menos quando penso em sair de uma casa repleta de objetos pessoais. Sem hora para muita coisa, dormindo quando tenho sono, comendo apenas o que gosto e só quando sinto fome, não sou exatamente uma pessoa disciplinada. Some-se a isso certa irreverência, não muita simpatia frente a novidades, e atividades profissionais que exigem de mim muita concentração e solidão. E como gosto de morar só e de ficar só a maior parte do tempo, viajar não é, para mim, uma atividade atraente.

Mas, não obstante todos os meus não poucos defeitos, às vezes eu saio da toca. Quando, por exemplo, viajo para namorar Rogério presencialmente. Também quando viajo por conta de compromissos profissionais. E ainda quando viajo com amigas, absolutamente maravilhosas, que me convocam. Disse convocam, porque nem se trata de convite. Tipo assim, do dia tal ao dia tal, é com a gente. Vais para tal lugar. Então eu vou, é claro. Hora de me desentocar. Desligar a versão cotidiana e passar para o que chamo de o meu modo viagem, alguma coisa que posso sistematizar em quatro mandamentos que compartilho a seguir com os meus leitores.

No modo viagem, meu primeiro mandamento é comer qualquer coisa e dormir em qualquer lugar. Cheia de manias com relação à alimentação, para começar, detesto peixes em geral. Odeio comidas “da moda”. É que eu adoro os pratos que eu mesma preparo para mim e sou extremamente crítica com o que chamo de as porcarias franqueadas cada vez mais onipresentes. Sou chata com comida. Só gosto mesmo é da minha. De modo geral, o que não faz parte do meu cardápio não me interessa. Sou fã da deliciosa comida italiana que eu mesma preparo. Viajando, porém, eu não apenas sou capaz de comer qualquer coisa, mas ainda me atrai provar tudo o que não faz parte do meu cardápio. E até gosto! Nada como tomar água de coco, no coco, olhando para o mar. Os sabores confundem-se com os cenários e ganham até colorido. Não se trata de julgar, mas de experimentar. Além disso, também posso modular meu sono. Consigo relaxar nas longas esperas que eventualmente deva enfrentar e mesmo dormir em outras camas não tão confortáveis quanto a minha.

Meu segundo mandamento ordena só levar comigo itens que representem conforto e simplicidade.  Preparo-me para deixar de lado todas as coisas que fazem parte do meu dia a dia. Tipo usar três toalhas de banho e um roupão, fora todos os shampoos e cremes, dezenas de potinhos que estão em toda parte pelo meu banheiro e pelo meu quarto. Se fosse levar comigo todas as coisas que uso diariamente, precisaria viajar com um séquito de carregadores, bem como naqueles filmes antigos, de aventuras pela África, com elefantes em caravana, carregados de baús de viagem das heroínas. Mas como não é esse o caso, no meu modo viagem, tudo o que preciso cabe em uma bolsa e uma sacola, ou, em vez desta última, em uma mala pequena de rodinhas que, depois de feita, pesa no máximo, sete quilos. Roupas? Ah! Nem pensar em levar comigo tudo aquilo que abarrota minhas gavetas e meus guarda-roupas, sem falar que, como boa centopeia, jamais confessaria o número exato de pares de sapatos que possuo, sem contar as bolsas e os cintos que combinam com eles. Tenho receio de chocar meus pobres leitores. No entanto, acreditem, no modo viagem, as peças das quais preciso são pouquíssimas. Em uma bolsa de bom tamanho mais uma sacola média cabe tudo o que preciso. Na bolsa, itens que me permitem sobreviver até mesmo sem a sacola de viagem. Celular, carregador, documentos e dinheiro reunidos em uma bolsa menor que pode ser levada junto ao corpo.


No nécessaire, só o que for absolutamente indispensável para estar limpa e saudável: higiene pessoal e remédios. Roupas? Só o que for confortável, que não limite movimentos, que não aperte e que não amasse. Roupas com as quais eu possa passar horas sentada sem parecer amarrotada. Optar por itens que apresentam simplicidade e conforto não implica em usar qualquer coisa de qualquer jeito. As melhores roupas são aquelas que têm alguma qualidade e que nos caiam bem, evitando o frio e o calor excessivos. Todas as peças devem combinar entre si. Por incrível que pareça, nisso, eu acho que acerto mais do que a maioria. Minha bagagem é leve, reduzida, mas composta de itens bem escolhidos. Tenho ali tudo de que preciso, incluindo uma câmera fotográfica. Fico assustada só de ver o tamanho da bagagem de pessoas que viajam até mesmo por poucos dias. Pior que não é incomum constatar não serem poucas as mulheres que viajam maquiadas como quem vai a uma festa, de saltos muito altos, às vezes até com roupas reduzidas, que expõem o corpo ao frio do ar condicionado. Não deve ser nada bom sentir dor nos pés e frio, mesmo em viagens de poucas horas. Daí eu sempre optar pelo conforto. Nessas horas, é mais elegante usar tênis, jeans de bom corte, camisa, blazer e um belo lenço. Óculos escuros e, no máximo, batom, permitem até dormir sem acordar com olhos borrados, como quem despertasse em plena manhã de uma quarta-feira de cinzas. Viajar é menos.

O terceiro mandamento é encarar tudo com bom humor e disponibilidade. Particularmente, não sou simpática a nada que altere os meus sagrados hábitos e não costumo estar disponível. Odeio atender telefone. Não gosto de conversar. Odeio gente que fala de gente, que comenta gratuitamente o tempo, se chove ou se não chove, de frios e de calores. Gente que aluga os outros para dar, sem que se lhe peça, a sua opinião sobre isso ou aquilo. Nem precisa. São óbvios. Antes mesmo que abram a boca já se sabe o que dirão. Por conta disso, tenho pouquíssimos amigos. Só gente legal, contudo, todos meio excêntricos, com manias, e mesmo malucos estilo beleza. Nenhum deles muito normal, porque, afinal, se fossem pessoas normais não iam querer me ter como amiga. Passo a maior parte do tempo concentrada em conteúdos de ordem intelectual, reconhecidamente chatos. Assumidamente sou uma pessoa pedante: eu até sei a diferença entre próclise, mesóclise e ênclise. Além disso, sou pouco sociável: o mundo se divide entre os meus poucos e muito queridos amigos e os outros que, em sua maior parte, me irritam ou me entediam, quando não me exasperam.  No modo viagem, contudo, dificilmente me incomodo com os outros. Diria mesmo que, bem ao contrário, a maioria me agrada e me surpreende positivamente, mesmo nas diferenças que podem até me divertir e enternecer. É fácil sorrir para quem não veremos outra vez.

Finalmente o último mandamento que consiste em resumir-se. Não causar, reclamar o menos possível, estar preparada para atrasos, para surpresas, saber esperar, saber aceitar, saber ouvir e entender o que esperam da gente, de preferência a impor nossas regras e hábitos em territórios onde estamos de passagem, como passageiros mesmo. Resumir-se frente a novas perspectivas de mundo e de visão nas quais não somos mais os protagonistas. Nesse contexto, os outros são todos amigos, até porque, ainda que sejam uns chatos, não vamos precisar aturá-los além do necessário. E, sendo assim, sua chatice é perfeitamente contornável. Riso pronto: sempre um bom dia, tarde ou noite. Sempre com licença, por favor e muito obrigada. Ceder lugar, ceder espaço, deixar acontecer e olhar tudo como novidade. Tolerância para com todos.

Eis, enfim, o que eu teria a dizer a quem, como eu, não gosta de sair de casa e é pouco sociável. Não é muita coisa, mas tem dado certo comigo. E agora, após oito dias afastada dos queridos ácaros da minha biblioteca, cá estou eu, de volta para casa, cercada da poeira dos séculos, retornada aos meus velhos hábitos, até que alguma coisa aconteça e eu tenha, outra vez, de deixar para trás o meu pequeno e solitário reino, ligar o modo viagem e passar a ser a passageira provisória, a passante imprevisível.
 


Autor: Maristela Bleggi Tomasini