Imaginação
sábado, 14 de dezembro de 2019
Quando caminhávamos juntos não era exatamente pelas ruas que seguíamos. Porque o entorno, em que pese fosse real, enfeitava-se magicamente à nossa passagem. Nunca era exatamente uma rua ou outra paisagem qualquer em si, porque esses lugares todos se carregavam de algum tipo de emoção só comparável àquela de um sonho realizado.
“Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras”
Jacques Brel
Confesso que não posso dizer ―, nem teria mesmo como afirmar ―, que minhas lembranças sejam todas reais, mas pouco importa que não tenham elas qualquer conexão com o mundo concreto, se é que ele existe.
Quando mergulho em minhas lembranças, penso que o real é para os conformistas e para os conformados. Os primeiros já nascem tendendo sempre aos ismos, por meio dos quais exercem uma espécie de poder totalizador, generalizando suas decepções e fracassos. Os segundos, ainda que a contragosto, acabam por ceder. Conformam-se com o que o mundo lhes entrega já embrulhado e etiquetado. Simplesmente não discutem. Nem ao menos abrem o pacote para conferir o conteúdo.
Penso que não é imperativo conformar-se.
Pode-se criar um real particularmente nosso apenas com a imaginação.
Por isso eu sei, sim, que quando caminhávamos juntos, as paisagens cediam aos caprichos de nossas vontades. Quem poderia negar que fôramos nós os felizes proprietários daquele castelo, palacete que um dia tivera suas portas esculpidas em madeira maciça enfeitadas com maçanetas de porcelana francesa, com tantas sacadas abertas à cidade que se descortinava inteira diante delas, com mármores e enormes banheiras. E havia ainda o deslumbrante lustre de cristal, imponente, que ficava invisível a olhares vulgares, mas que iluminava as nossas refeições. O serviço de copa era quase perfeito. E o castelo, tão aristocrático quanto decadente, foi, afinal, uma de nossas mais saudosas residências. De bom, que assustava a maioria dos curiosos que por ali passassem, como se secretamente aquela velha construção soubesse o quanto é importante disfarçar o próprio contentamento de se estar aqui ou ali.
E quando íamos visitar cemitérios, ― que tais lugares muito têm de atraentes ―, encantava-nos mais que o luxo dos túmulos a agilidade dos gatos que passeavam por ali, observando-nos com a discreta curiosidade tão peculiar aos felinos. Passeávamos por entre os túmulos e nos entregávamos a especulações acerca dos nomes, às vezes conhecidos, e das saudades tão reafirmadas nos dizeres sempre mais ou menos os mesmos.
E havia os parques. Pipocas. Pavões. Gatos. Pandorgas. Até dragões que, tímidos, talvez se escondessem, temerosos, à nossa passagem. Havia sabores deliciosos e exóticos também, singularmente colhidos em recantos inesperados, como a Yakissoba saboreada nos confins da Avenida São João, no bar suspeito, por debaixo do Minhocão que escondia também toda a suntuosidade do antiquário da simpática Dona Ciça, lugar mágico e repleto de tesouros.
Nossos caminhos não deixaram trilhas.
De nós não há registros nas paisagens que nos serviram de cenários.
Como se deixássemos tudo igual como era antes no depois de nós. Talvez as paisagens só se revelem realmente ao olhar da imaginação. Não estaria nela o ingrediente fundamental que facultasse a plenitude do percebido? Não sei. Isso é apenas especulação, e minha racionalidade cética se ressente em ler o que acabo de escrever. Contudo, no fundo, por mais que me conforme ao real, quando não há outro remédio, persiste em mim aquela saudável dúvida quanto à absoluta certeza de que não há bruxas, em que pese a induvidosa realidade de sua existência.
A arte só é arte quando é paradoxal.
E uma ideia maravilhosamente anárquica me surge quando me dou conta dessa deliciosa habilidade que consiste em poder crer, mesmo duvidando da crença, possuindo integralmente o que não se possui, apesar do real.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini