Mas então,
eram outros os tempos e outros os cenários. Para apreciá-los adequadamente,
contudo, é preciso ter presente que o tempo histórico não é simultâneo nem
obedece à mecânica prosaica de um antes seguido de um depois. O tempo
histórico, cujo caráter narrativo é eminentemente temporal, é tão complexo
quanto o tempo dos homens. Ele pode tanto lançar-se às vanguardas como
petrificar-se sobre o que passou, o que explica a simultaneidade de ideias em
atrito que antecedem à formação de concepções, de conceitos e de categorias como tais, tanto quanto das
verdades que lhes vão servir de alicerce.
Além disso,
história e escrita acontecem simultaneamente, portanto, na temporalidade.
Assim, com razão Jean Kaempfer & Raphaël Micheli (2005) que, para estudar a
temporalidade narrativa, exploraram nossa noção de tempo, dividindo-a em cinco
categorias. Haveria um tempo apriorístico, conceitual, filosófico, portanto.
Haveria um tempo fenomenológico, o tempo de nossas emoções, fonte do passado
memorável que guarda lembranças e recordações. Haveria um tempo antropológico,
substrato rítmico que se alterna entre o sono e a vigília, organicamente
obediente ao corpo e a ele condicionado. Haveria um tempo objetivo, medido por
relógios e calendários e sinalado pelos antes e depois. Finalmente, um tempo
linguístico, fundamento de um não-presente que tem por pressuposto um passado
constituído, um momento de enunciação e uma posteridade situada além da
escrita. Dessa sorte, a temporalidade seria uma dimensão fundamental da conduta
narrativa, — da trama da história, observe-se —, conferindo à experiência
humana um caráter temporal.
E não há
também um tempo das paisagens? Um tempo das metrópoles, célere, apressado; um
tempo das províncias, lento, resistente, de sorte que as datações, embora
certas, porque impregnadas da objetividade dos números, é incerta e inconfiável
sempre que servir de marco histórico.
E é diante
desses ingredientes coletados in natura
em discursos e retratos que se quer descobrir uma psicologia coletiva ainda
nascente, embalada no berço, inconsciente de suas origens, sem dúvida,
jurídicas, mas ainda e, sobretudo, psicológicas, sociológicas, biológicas e,
consequentemente, políticas.
Seja como
for, fato é que o XIX foi marcado pelo poder do saber, que superara o poder da
crença, derrotando a fé, ao menos na prática. A razão, enfim, exultava. O mundo
mudara sua face. A máquina mecanizava também o espírito e recriava as cidades.
A velocidade encurtava as distâncias e, depois dos rios, as ferrovias exerceram
também a missão civilizadora. A produção aumentava e, com ela, o consumo. Os
homens se deslocavam. Arrancados aos lugares onde, por gerações, estiveram
fixados, passam a habitar as periferias das cidades que se hipertrofiam.
Mentalidades tornam-se outras. O próprio tempo se altera quando o apito das
fábricas regula rotinas antes pautadas pelos sinos dos campanários. Escravos de
Jó exercitam o zigue zigue zá na urbs, expostos não mais às forças da natureza,
mas às econômicas, novas regentes dos poderes políticos que, cada vez mais,
passam a sujeitar os homens, os reinos, os estados em suas novas bases. Porque
as antigas fizeram-se saudosamente românticas, ao sabor de Rousseaus e de
Beccarias já distantes. Era preciso repensar o mundo, destituindo-o — não sem
grandes resistências — de todos os resquícios metafísicos herdados da velha
escolástica. Era preciso expulsá-los das almas para poder-se apropriar dos
corpos.
Insista-se
nesse cenário. Ele é nossa introdução. É nosso fundo, ou o palco no qual vai
entrar em cena essa psicologia que nos interessa estudar. É preciso fazê-lo sem perder vista
que ela aparece no mundo suscitada pela emergência de multidões que assumiam um
caráter ameaçador diante daqueles que detinham não apenas a oportunidade de
observá-las, mas ainda a de descrevê-las e de analisá-las, como de fato o
fizeram, deixando-nos um valioso legado documental, tesouro que nos mostra o
nascimento de uma ciência para cuja formação contribuíram jornalistas e
literatos, além de historiadores e cientistas, simplesmente porque o assunto
interessava a todos.
Kaempfer J. & Micheli, R. (2005). La temporalité narrative. Lausanne:
Université de Lausanne. Recuperado de https://www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/tnarrative/tnintegr.html#tnsommar em 05/05/2019.