O que importava determinar, para
Clóvis, nos crimes cometidos pelas multidões exaltadas era “até que ponto a
suggestão do grupo, até que ponto o contagio da emoções modificou a
individualidade daquelles que foram impellidos ao crime” (1896, p.50).
Temos aí, pois, um traço psicológico
destacado pelo jurista, qual seja, uma espécie de suscetibilidade individual ao
contágio, expressão, aliás, que se repete entre os autores. Indivíduos
suscetíveis são identificados por Clóvis como os reconhecidamente perversos e
os impressionáveis. Os primeiros “experimentados na pratica dos maleficios”
(id., ibidem) se deixariam arrebatar
“até o delirio sanguinario” (id., ibid.); os segundos, “espiritos
intensamente vibrateis, mas de conducta perfeitamente honesta, sentirão a
vertigem do abysmo que se cava tenebroso em torno da mente agitada e nelle se
precipitarão” (id., ibid.). Remetendo a exemplos citados por Sighele e Joly,
que se adequariam a esses temperamentos, não deixa de fazer alusão à literatura,
mencionando Là-Bas e fazendo referência à descrição grotesca de uma missa negra
que se encontra nesta obra, sobre a qual comenta: “sordido sacrilegio e abjecta
bacchanal, torcendo os espíritos, como se fossem frageis caniços e rojando os
corpos no pó, revolvendo-os raivosamente na lama infecta de uma volúpia
repellente” (id., p. 51).
Clóvis cita apenas o título: Là-bas.
Em que pese não explicitar a autoria da obra, dificilmente não se trataria de
outra que não o romance de Huysmans, publicado na França em 1891, que aborda o
satanismo contemporâneo. A cena à qual faz referência é, muito provavelmente,
esta:
Então
Durtal sentiu-se estremecer, pois um vento de loucura sacudiu o salão. A aura
de grande histeria seguiu o sacrilégio e curvou as mulheres; enquanto os
meninos do coro incensavam a nudez do pontífice, algumas mulheres se
precipitaram no Pão Eucarístico e, de rastros, agarraram-no, arrancaram-lhe
pedaços úmidos, beberam e comeram essa divina imundície. [...] Era um barracão
de hospício exasperado, uma estufa monstruosa de prostitutas e loucas. Então,
enquanto as crianças do coro se aliavam aos homens, a dona da casa subia,
retorcida, no altar, empunhando, com uma mão, a haste do crucifixo e, com a
outra, o cálice, sob com as pernas nuas; ao fundo da capela, nas sombras, uma
criança que ainda não se mexera, subitamente curvou-se para a frente e gritou
até à morte, como um cão! (HUYSMANS, J.-K., 1895, p. 378-379)
Clóvis entende que a responsabilidade
do que fosse dominado por uma multidão é menor do que a dos diretores de uma
eventual ação criminosa que demandasse punição. Essa conclusão seria confirmada
tanto pela ciência quando pelo bom senso popular. Tal responsabilidade,
contudo, comportaria limites e gradações que poderiam ser encontrados mediante
a aplicação da teoria da identidade e da finalidade. Importaria, pois,
questionar se o indivíduo permaneceu o mesmo antes e depois do ato cometido,
coordenado este com suas tendências. Sua responsabilidade então seria plena.
Se, todavia, ele encontrasse na multidão apenas um estímulo, algo que agisse
nele como, por exemplo, o álcool, ainda assim, ter-se-ia responsabilidade
plena, embora não no mesmo grau da hipótese anterior. Já nos casos em que
houvesse completa alucinação do agente, transformado pela ação violenta do meio
circundante, a responsabilidade poderia ser inteiramente nula ou, conforme as
circunstâncias, muito restrita. Mas, nos casos em que houvesse uma combinação
de energias convergentes: de um lado, a sugestão de uma ação ilícita cinda do
exterior; de outro, a consonância dessa finalidade ilícita com as tendências
individuais, a responsabilidade do agente sofreria uma gradação, sendo “tanto
maior quanto mais harmonica fôr essa consonancia, quanto mais conservar o homem
a sua feição individual, a sua personalidade no torvelinho das paixões do
grande numero” (id., ibid.).
Referências
Bevilacqua, C. (1896). Criminologia e
Direito. Bahia: Livraria Magalhães.
Huysmans, J.-K. (1895). Là-bas. Paris:
Tresse & Stock.
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Esta postagem é um recorte de pesquisa. Trata-se de saber como a chamada psicologia coletiva chegou no Brasil, quem se preocupou com ela, estudando seu funcionamento especialmente com relação aos crimes cometidos por multidões. Entender como se daria esse suposto "contágio", na ausência de vetores biológicos, físicos, concretos, que justificassem uma ação coletiva voltada para um fim ou objetivo específico. Enfim, perguntas sem resposta. O tema, contudo, é bem explorado por Clovis, especialmente porque se ocupa mais em saber quem seriam os suscetíveis, os mais sugestionáveis.