Embora filha do século
XX, nascida depois da II Guerra, nunca deixei de ter certo ar não diria conservador,
mas meio Belle Époque, naquilo que o século XIX tinha de irreverente e de vanguardista.
Contudo, vivi e tenho vivido demais e, ao alcançar o século XXI, fui desafiada
a interpretar estes nossos tempos pós-modernos, pensando esse presente que se
consuma e se consome em breves instantes. Em meio a esse desafio, batalha cotidiana
que me acelera o coração e a mente, encontrei um homem que me trouxe, mais que
palavras, um verdadeiro turbilhão de ideias.
Apaixonei-me por
Baudrillard quando estudava o destino dos descartes: coisas das quais nos
desfazemos, porque sua utilidade se perdeu. Especular sobre o tema levou-me à
leitura de Le Système des objets. Parei tudo o que vinha pesquisando.
Revisei e revivi conceitos. Mudei meu olhar sobre o mundo. O livro é uma das
primeiras obras de Baudrillard, publicada em 1968. Foi sua tese de doutorado em
Sociologia, defendida em 1966 na Universidade de Paris X, Nanterre. Só a banca
já causa arrepios a quem quer que já tenha respirado a atmosfera acadêmica: Henri
Lefebvre, Roland Barthes e Pierre Bourdieu.
“O Sistema dos Objetos”
me fez entender a relação entre cultura e consumo e, mais ainda, me deu
condições de aferir até que ponto essa relação não poderia comprometer minha
própria identidade. Porque os objetos não são coisas inertes, mas ingredientes
que atuam ativamente na construção da vida social, expressando ideias e
valores. Os espelhos, por exemplo, se relacionam ao espaço assim como os
relógios, símbolos da permanência, se relacionam ao tempo. São equivalentes,
nesse sentido, atuantes. Quanto mais espelhos, — diz ele —, mais gloriosa é a
intimidade, mas também mais circunscrita a si mesma.
Baudrillard requer que
o leitor vá além da leitura. Percorro seus textos e, pelo caminho, ele
vai me inoculando suas experiências. Em certos momentos, sinto o terrível tédio
que o mundo lhe causa; em outros, me entusiasmo ao perceber como ele abstrai de
qualquer coisa as mais brilhantes ideias. É minha imaginação que ele consegue
provocar literalmente em over doses seguidas. Para mim, descobri-lo foi
uma experiência visceral, tão próxima da arte quanto deve estar um filósofo. Logo
ele, que disse que jamais pretendeu a verdade, porque a respeitava demais para
colocá-la em perigo. Nada daquele clássico distanciamento do objeto, nada de
textos impessoais.
Desde então, adotei
Baudrillard como quem adota um santo. Só que, em lugar de comprar uma imagem e
orar diante dela para obter um milagre ou uma graça, é diante de seus livros que
me deixo encantar, seduzir e apaixonar. Se não encontro ali a graça ou o
milagre de uma intervenção divina, é no tênue reflexo de sua humanidade já
extinta que encontro as fórmulas que me ajudam a compreender esse tempo
presente que, afinal, eu ainda tenho de viver, não sem algum esforço, é verdade.
Refém dessa hiper-realidade midiática, acredito que outros, assim como eu,
sintam às vezes necessidade de certo isolamento, em busca de um refúgio capaz
de nos devolver a simples realidade, diante de tantos desejos novos a saciar,
de tantas necessidades novas a suprir, de tantas coisas novas a experimentar. Em
um extremo, avatares imbecilizantes e seus milhões de seguidores ditando
comportamentos e caminhos rumo ao sucesso; de outro, zumbis que funcionam no
modo automático, incapazes de uma reflexão, incapazes de abrigar uma só ideia própria
que seja; no meio, a massa, irredutível, disputada aos nacos para integrar as
mais diversas facções: moda, política, cultura, tudo é produto, tudo é consumo.
A obra de Baudrillard é
notável e inclui “Simulacros e Simulação”, livro que inspirou o filme Matrix,
que muitos acharam sensacional. Mas é “A Transparência do Mal: Ensaios sobre
Fenômenos Extremos” (La transparence du mal: Essai sur les phénomènes
extrêmes,1990) a obra que mais me impressiona atualmente. Entre outros
temas polêmicos, Baudrillard observa que não somos mais capazes de crer, de
amar, de querer, porque cremos no que o outro crê, amamos o que o outro ama e
queremos o que o outro quer. Trata-se de uma derrogação geral da vontade, que
eleva o querer, o poder e o saber a uma segunda instância.
E por que o mal? Porque
o mal, na sociedade contemporânea, se faz cada vez mais visível e transparente,
em vez de oculto e velado como costumava ser. Essa transparência tem como causa
a tecnologia midiática, que faz com que tudo possa parecer banal e gratuito.
Portanto, não se pode estranhar que o terrorismo, a violência urbana, a guerra
e as políticas que promovem sua emergência tenham se tornado um fenômeno
global. Como resistir a tamanho poder e força, quando sequer há um bem que
costumava se opor ao mal? A que formas de subversão e resistência se poderia
recorrer quando nossa pertinência a esse presente contínuo reafirma nossa
condição de reféns de uma cultura de massa que não podemos afrontar a não ser
pela via de uma contracultura também de massa que se deixa absorver pelo
próprio monstro que julga combater?
Jogo de palavras? Excesso
de abstração? Sim. Eis aí aspectos que podem ser criticados na obra de
Baudrillard. Ele não leva em consideração os diferentes grupos culturais. Isso
até pode ser verdadeiro, mas o que se sente mais fortemente nesse nosso tempo é
que a cultura hoje é a do consumo, não obstante os diferentes produtos consumidos.
Mudam as premissas, mas a lógica permanece a mesma, seja em relação aos
mandarins dominantes, seja em relação aos culturalmente periféricos. Estes
últimos se inserem marginalmente e por aí criam suas próprias inserções, que também
são produtos culturais, tanto quanto os pertinentes à esfera tida como alta ou
elevada. Por variados que sejam os grupos, eles se igualam pelas diferenças e
se assimilam pelo consumo.
Pessimismo? Sem dúvida.
Porque as possibilidades de mudança e resistência que existem já se encontram
inseridas nas estruturas de poder dominantes. Essa resistência passiva nasce de
uma consciência de ter consciência, e chega bem perto da mística de um
encantamento. Afastar-se da passividade conformista requer modos criativos de
ser. O diagnóstico de nosso tempo não é animador, porque para sobreviver ao mal
é necessário deixar-se contagiar por ele. Lógica vacinal que beira à crítica da
desconstrução, que lida com os problemas liquidando as soluções, que apela às
metáforas e às analogias, porque é só na ordem da abstração que essas
estruturas se tornam visíveis.
Resulta disso a
diluição de tudo quanto foi um dia tradicional ou clássico, com a criação de
uma monstruosa realidade simulada, que se sobrepõe à realidade física, buscando
a emergência contínua de uma sociedade que se caracteriza unicamente pelo que
consome, e cujos desejos são norteados pelo mercado e pela publicidade, pela
mídia e pelo poder. Gente que não pensa, e que se assimila, a si própria, a um
mero produto de mercado.
Eis as imensas riquezas
deste mundo que, paradoxalmente, nos empobrecem tanto. Resisto graças aos meus
livros, meus amores. Penso que é na subversão de nossa ínfima individualidade
que se reinventa o cotidiano, na absoluta minoria da primeira pessoa do
singular, ainda que minimamente, e ainda que escrevendo apenas para você, que
não precisa de avatar e que, com toda certeza, não é nenhum zumbi.
REVISTA VIDA BRASIL