FONTE: O publico e a imprensa. (1901, outubro 1). Diario de Pernambuco, 77(134), p. 1.
O publico e a imprensa
A psychologia póde ser estudada debaixo de dois pontos de vista: Debaixo do ponto de vista collectivo — psychologia inter-cerebral; debaixo do ponto de vista individual — psychologia intra-cerebral.
Na psychologia collectiva é preciso não confundir a psychologia das raças com a psychologia das multidões, confusão que tem dado logar aos mais lastimaveis erros na apreciação e direcção dos acontecimentos sociaes.
Nota Gustavo Le Bon que Napoleão I comprehendia a psychologia das multidões, mas ignorava a das raças. Taine, que desenvolveu tão brilhantemente sua theoria da raça, do meio e do momento historico, desconheceu a alma das multidões.
Occupando-nos com a psychologia collectiva, já tivemos occasião de escrever que não basta distinguir a psychologia das raças da psychologia das multidões, é preciso completar uma e outra com a psychologia dos sexos.
Sem o estudo profundo da psychologia dos sexos, dissemos, trabalho que está sendo feito com passo firme depois que foi desvendado pelos biologistas o segredo da fecundação, é impossivel a solução de certas questões, que estão na ordem do dia, e sobre as quaes se têm produzido as opiniões mais contraditorias e phantasiastas.
Entre ellas está a dos direitos da mulher, com os exaggeros de parte a parte, e o velho e gasto chavão de que todo o orgão, que não se exerce, se atrophia fatalmente.
É collocar mal a questão pôl-a sobre o terreno da falta de exercicio cerebral nas mulheres. Por este lado, para estabelecer o equilibrio, seria preciso refazer toda a historia natural da creação, e comprehende-se que «o que foi decidido entre os protozoarios prehistoricos, não póde ser annullado por um acto do parlamento».
Mas, quando mesmo fosse possivel dar ao cerebro da mulher a mesma modalidade do cerebro do homem, haveria vantagem em provocar semelhante transformação?
Sob a influencia de certas excitações as glandulas mammillares no homem podem produzir secreção lactea; porém nenhuma vantagem resultaria para o sexo masculino semelhante funcção.
O progresso dos costumes e instituições não apagará distincções, que existem ab ovo. O que vemos, pelo contrario, é que o desenvolvimento entre os individuos e as sociedades accentúa cada vez mais a divisão das funcções.
Seria desconhecer esta lei pretender assimilar os sexos ou restabelecer a superioridade de um sobre o outro.
«Os dous sexos, diz Alfredo Fouillée, em sua diversidade necessaria, são dependentes um do outro, e se valem um e outro.»
Ha uma psychologia das raças, uma psychologia das multidões, uma psychologia dos sexos; restava fazer a psychologia do publico.
Foi a tarefa, de que se encarregou G. Tarde, escrevendo seu interessante livro L’Opinion et la Foule.
O publico não se confunde com a multidão. Esta tem como condição essencial a aproximação, o contacto dos indivíduos, ao passo que aquelle é constituído por um todo mais extenso e mais disperso. Na multidão os indivíduos se influenciam uns sobre os outros pelo contagio dos corpos, póde-se dizer; no publico os indivíduos não se vêem uns aos outros, e cada um permanece sujeito a todas as influencias ambiantes.
Dahi a grande differença que vai entre o orador e o jornalista, entre o discurso e o artigo, exercendo o jornal influencia muito mais extensa e duradoura do que a tribuna.
Em regra se póde affirmar que um publico tem a imprensa que elle merece; mas isto não quer dizer que o jornalista não possa influir efficazmente sobre o publico.
Não raras vezes a injuria, a calumnia, a diffamação, a pornographia são condições de successo na imprensa, lisonjeando o jornal as paixões grosseiras do maior numero; mas o jornalista não deve elevar o consensus do vulgo á altura de linha de conducta no desempenho de sua tarefa.
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COMENTÁRIO
COMENTÁRIO — versão apenas com correções
Pois bem — a notícia realmente desperta interesse imediato, tanto pelo conteúdo quanto pela forma. Conservar a grafia original é um gesto de fidelidade; uma maneira de manter vivo o sabor da época. Quem me conhece sabe o valor que dou às fontes primárias. Mais do que registros, são testemunhos. No caso, trata-se da notícia veiculada em um jornal pernambucano de 1901. Ele circulava entre leitores específicos, pertencentes a um público que se reconhecia naquele discurso e que buscava, junto à imprensa, elementos que orientassem seu entendimento do mundo.
É isso que torna o texto ainda mais interessante. É a chegada de um novo século e de suas promessas — progresso, ciência, racionalidade — coexistindo, paradoxalmente, com a permanência: o conservadorismo, a resistência às transformações, o medo de rupturas. — Mas não é essencial agradar a todos os leitores? — A própria forma do argumento já nos revela essa tensão: o autor pretende situar-se “à meia distância”, longe dos “exaggeros” de um e de outro lado. Um velho artifício, por sinal. Dar-se a ver como um moderado é, frequentemente, uma forma de afetar certa autoridade.
Ah! Mas vejam a frase “o publico tem a imprensa que elle merece”. Escritor e leitor percebem-se reciprocamente, porquanto o jornal molda o público, mas também é moldado por ele. Sem falar do fato de o autor do artigo ter a si próprio em alta conta. Ele não se vê nem se apresenta como mero cronista. Vê-se como elemento ativo que intervém, orienta, educa. Mais que um observador, um verdadeiro agente da esfera pública. Seu artigo é, em si mesmo, um exercício de influência.
Sem dúvida, um homem culto, eis que leu Gabriel Tarde, que cita nominalmente. A distinção que faz entre público e multidão é tardiana. A preocupação em diferenciar a massa aglomerada da coletividade dispersa — influenciada não por “contágio dos corpos”, mas pela circulação de ideias — surge claramente da psicologia coletiva tal como se discutia nesse período. A presença de Le Bon também é explícita. Eis, portanto, as referências científicas que atuam como autoridades legitimadoras.
Sejamos sistemáticos: uma fonte primária como essa não vale apenas pelo conteúdo informativo. O que ela informa é importante, mas não é tudo. A informação deve ser lida sempre à luz de seu tempo e de suas circunstâncias. Fontes primárias revelam mais profundamente suas intencionalidades, seus pressupostos, suas hierarquias de valor, suas ausências. Sim. Se dizem aquilo que querem dizer, também revelam o que sequer supõem estar revelando.
Basta que imaginemos o leitor. Um morador de Recife que, em 1901, sentado em sua poltrona — talvez ainda à luz do lampião — folheou um exemplar idêntico desse jornal e ali encontrou, quem sabe, “psychologia”, “sciencia”, “progresso”, “advertências de ordem moral”. Como será que ele via essa questão dos sexos? Como reagia à ideia de que a mulher teria “direitos”? A palavra não esconde certo desconforto. E qual seria exatamente a autoridade da biologia para um juízo adequado? Note-se que a ciência, nesse contexto, é mobilizada para reafirmar limites, não para expandi-los. A distinção entre homens e mulheres é descrita como algo decidido pelos “protozoarios prehistoricos”. Sendo assim, estaria fora do alcance da política humana. A ciência legitimaria, portanto, uma ordem social naturalizada.
E quanto ao feminismo nascente? Para esse leitor, possivelmente urbano, alfabetizado, pertencente às camadas que consumiam jornais, a luta dos sexos apareceria sob a forma de uma inquietação moderada: perigosa se levada ao extremo, tolerável se mantida dentro de fronteiras. O mesmo vale para a noção de “multidões”, tão temida na virada do século — multidões que podiam se revoltar, incendiar, subverter a ordem, mas das quais um “publico” razoável e disperso deveria distinguir-se.
Finalmente, há o comentário sobre o “sucesso” da imprensa: ele próprio relativizado ao “gosto” do público, que poderia se inclinar a paixões “grosseiras”, da injúria à pornografia. Aqui vemos claramente a tensão moral do período — e também a preocupação de um jornalista que se quer ético, mas que reconhece que a sobrevivência do jornal depende, em parte, dos apelos mais baixos do mercado.
Em suma, é só um pequeno texto, eu sei. Mas que rica janela ele nos abre para a cultura letrada da época! Por ele, podemos aferir o grau da crença no progresso científico em face de um conservadorismo travestido de equilíbrio. Ele também nos dá a ver a moral sexual e social de então, inseparável dos temores que atravessavam a virada do século.
Fontes primárias, sim. Gosto delas.
