sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Émile Durkheim. Confrontation avec Tarde

"A sociologia deve continuar a ser uma especulação filosófica que abraça a vida social em uma fórmula sintética? Deve ela, ao contrário, fragmentar-se em diferentes ciências e, se ela deve especializar-se, como esta especialização se faria? A sociologia puramente filosófica repousa inteiramente sobre esta ideia de que os fenômenos sociais estão submetidos a leis necessárias. Os fatos sociais têm entre si ligações que a vontade humana não pode arbitrariamente romper. Essa verdade supunha uma mentalidade avançada e não podia ser senão o fruto de especulações filosóficas. A sociologia é a filha do pensamento filosófico, ela nasceu no seio da filosofia comtista e não é dela senão o coroamento lógico. Mas, para Comte, a sociologia não consiste na pluralidade de problemas definidos que os sábios estudam separadamente; ela atém-se a um problema único e deve abraçar, num instante indivisível, a seqüência do desenvolvimento histórico para perceber a lei que o domina em seu conjunto. Os estudos de detalhe são perigosos, dizia Comte, porque eles desviam a atenção do sociólogo do problema fundamental que é o todo da sociologia. Os fatos sociais são solidários, e não se pode estudá-los isoladamente, senão que em alterando gravemente sua natureza. Os discípulos de Comte não fazem senão reproduzir o pensamento do mestre, e as mesmas fórmulas têm sido repetidas sem que a sociologia tenha progredido. Mas por que a sociologia consistiria em um único problema? A realidade social é essencialmente complexa, não ininteligível, mas apenas refratária às formas simples. A sociologia não é uma ciência unitária e, ainda que respeitando a solidariedade e a interdependência dos fatos sociais, ela deve estudar cada categoria separadamente. Todavia, a concepção que conduz a sociologia a um só e único problema é ainda a mais geral, mesmo entre os autores contemporâneos. Trata-se sempre de descobrir a lei geral da sociedade. Todos os fatos estudados pelas ciências sociais distintas teriam um caráter comum, pois que sociais, e a sociologia teria por objeto estudar o fato social em sua abstração. Em comparando os fatos sociais, ver-se-ão quais são os elementos que se encontram em todas as espécies e destacar-se-ão os caracteres gerais da sociabilidade. Mas onde e como alcançar essa abstração? Os fatos dados são concretos, complexos; mesmo as civilizações mais inferiores são de uma extrema complexidade. Como destacar o fato elementar com seus caracteres abstratos, se não se começa por estudar os fenômenos concretos onde ele se realiza? Se, pois, a sociologia quiser viver, ela deverá renunciar ao caráter filosófico ao qual ela deve sua origem e aproximar-se das realidades concretas por meio de pesquisas especiais. Há interesse em que o público saiba que a sociologia não é puramente filosófica, e que ela pede precisão e objetividade. Mas isso não quer dizer que as disciplinas especiais não devam, — para se tornarem ciências verdadeiramente sociológicas, — senão permanecerem aquilo que elas são atualmente. Elas não têm sido ainda suficientemente penetradas pelas idéias que a filosofia social destacou. Elas têm necessidade de se transformar, de orientarem-se em um sentido expressamente sociológico. No momento atual, não se pode senão formular o problema".

Fonte: Citação extraída da edição eletrônica realizada a partir de um texto de Émile Durkheim (1903), La sociologie et les sciences sociales. Confrontation avec Tarde. Texto disponível na coleção produzida por Jean-Marie Tremblay, Professor de Sociologia em Chicoutini, Les classiques des sciences sociales. 
Foto: Wikipedia Creative Commons. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A Ordem Moral

Robert de Herte[1]

Numerosos espíritos tristes queixam-se hoje de que "não existe mais moral". Curiosa queixa. Mais moral? Mas ela existe hoje mais do que nunca. A moral invade tudo em nossos dias. Mas não é mais a mesma.

É verdade que muitos de nossos contemporâneos se consideram libertos de toda regra moral. Aqueles que lhes fazem a lição evitam "fazer a moral". Eles se exprimem tomando a precaução de dizer que seus julgamentos não são inspirados pela moral. Ao termo "moral", que traz com ele conotações religiosas que muitos julgam envelhecidas, prefere-se, aliás, o termo "ética", que parece melhor convir a uma sociedade laica, ainda que a origem etimológica de ambas as palavras seja a mesma (mores e ethos) e ainda que, a rigor, a ética não saberia ter um alcance individual.

Não há dúvida de que a moral tradicional se perde. Mas outra a substitui. A antiga moral prescrevia regras individuais de comportamento: a sociedade se portaria melhor se os indivíduos que a compõem se comportassem bem. A nova moral quer moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos. A antiga moral dizia às pessoas aquilo que elas deveriam fazer; a nova moral descreve aquilo que a sociedade deve se tornar. Não são mais os indivíduos que devem se conduzir de modo direito, mas é a sociedade que deve se tornar mais "justa". É que antiga moral era subordinada ao bem, enquanto a nova é subordinada ao justo. O bem realça a ética das virtudes; o justo, uma concepção de Justiça, ela mesma colorida de uma forte impregnação moral. Mesmo quando elas pretendem permanecer "neutras" quanto à escolha de valores, as sociedades modernas aderem a esta nova moral. Elas são simultaneamente ultrapermissivas e hipermorais.

O fundo das coisas é o que Max Weber chamava de a lógica do dever-ser. A Antiguidade vivia em comunhão do Ser, a modernidade nascente reclama-se a do dever ser. Em termos simples: o mundo deve se tornar uma coisa diferente daquilo que ele foi até agora. Ele deve ser transformado para se tornar "mais justo". Ele deve ser reconstruído segundo um projeto saído de uma crença antiga ou da razão moderna. A justiça e o direito não definem mais uma relação de equidade entre as pessoas, mas exprimem eles também um dever-ser. Todo social é assim reinterpretado à luz desse dever-ser, que não faz nenhum caso da natureza das coisas e dos seres.

Na base do dever-ser, encontra-se uma recusa tal e qual ele é. Essa recusa, de certa maneira é também um "não" à vida. "Mundus est imuuundus", dizia Santo Agostinho, é preciso pois transformá-lo, corrigi-lo, para satisfazer às exigências divinas dizem uns, para fazer frente à necessidade histórica pretendem outros. Esta vontade de reconstruir o mundo, ou ainda de restaurá-lo (tikkun[2]), remonta à Bíblia, que nos diz que o mundo é imperfeito, que ele é atingido por uma menos valia. Toda a ideologia do progresso, todo o utopismo das Luzes representam disso a versão profana: sob hábitos seculares (a felicidade substitui a salvação, o além cede lugar ao amanhã), é ainda e sempre a velha fé messiânica e quiliástica[3] na marcha irresistível da história em direção ao seu final (movimento calcado sobre uma auto supressão) que está em construção. O Progresso é esta lenta melhora do mundo, chamado a progredir de maneira unitária em direção a dias melhores. "Substituí a salvação cristã pela fé no progresso, diz Pierre Legendre, e obtereis o credo comercial do ocidente planetário".

A religião cristã é, desde o início, desejada como constitutiva de uma "comunhão universal real" (Pierre Manent), a república Cristã. Os teóricos das Luzes asseguram que é apoiando-se sobre suas próprias faculdades, e não observando os preceitos de Deus, que os homens asseguraram sua salvação e chegaram a criar a sociedade perfeita, ao menos a sociedade definitiva, "final". Mas a própria ideia de um movimento da história que se oriente nessa direção lhes vem de uma religião que eles acreditam haverem abolido, ainda que não percebam que ela se torna assim mais operante que nunca. Como diz John Gray após muitos outros, a começar por Karl Löwith, as Luzes se limitam a reciclar a crença segundo a qual a história é a narrativa da salvação da humanidade. Gray mostra que esta crença se encontra tanto no comunismo stalinista quanto no neoconservadorismo americano, que acredita que se pode chegar à sociedade perfeita "dando livre curso à magia do mercado". "A despeito de suas pretensões a uma racionalidade científica, o neoliberalismo tem raízes em uma interpretação teleológica da história enquanto processo com um objetivo predeterminado, e nisso, como em outras regiões, ele apresenta forte semelhança com o Marxismo" (Black Mass. Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, Allen Lane, London 2007).

Fundada sobre os direitos subjetivos que os indivíduos teriam sobre o estado da natureza, a ideologia dos direitos do homem, tornada a religião do nosso tempo, é antes de tudo uma doutrina moral. Sua principal característica, escreve Marcel Gauchet, é a de "enraizar-se naquilo que constitui efetivamente a pedra de toque do legítimo e do ilegítimo no seio de nosso mundo, a fim de extrair daí, ao mesmo tempo, uma grade de leitura e um programa para a ação coletiva [...]. A ideologia dos direitos do homem decifra a realidade social à luz daquilo que ela deveria ser [...] O único inconveniente desse imperialismo do dever-ser é que ele não favorece a compreensão dos obstáculos que encontra em seu caminho, ainda quando eles respondem manifestamente a fortes necessidades do ponto de vista da existência comum. A única coisa que ele tem a dizer é que eles não deveriam existir. Onde buscar sua finalidade? O afastamento da norma é rejeitado nas trevas exteriores como um mal cuja condenação enquanto mal supõe-se esgotar a compreensão. A ideologia dos direitos do homem traduz-se, em outros termos, por uma invasão de moralismo, um moralismo ainda mais implacável quando mobiliza as molas íntimas da afetividade” (« De la critique à l’autocritique », in Le Débat, mai-août 2008, p. 159).

A nova ordem moral é aquilo que Philippe Muray chama de o império do bem. Esse bem não é senão que um bem derivado da prioridade do justo, um bem “objeto do desejo justo”. Esse bem degenerou hoje em um novo moralismo — uma “moralina”, diria Nietzsche. Paralelamente, o mal é negado como fazendo parte intrinsecamente da natureza do homem, ainda que sendo reconhecido sob a forma extrema do “mal absoluto”, como negação radical do bem dos direitos do homem.

A direita tem frequentemente uma visão fundamentalmente ética da política, a esquerda, uma visão moral. De um lado, Excalibur; de outro, as Beatitudes. Dois universos de valores muito diferentes, mas também impolíticos (impróprios à compreensão daquilo que é a política) um quanto outro. Hoje é a visão moral que domina. E é assim que esta sociedade, que muitos julgam desprovida de toda moral, pode, em realidade, achar-se portadora de uma moral de outro gênero, de um moralismo onipresente que propagam os seus devotos, seus missionários e suas ligas da virtude. Procuram-se libertinos.

Robert de Herte, Éléments n°130, 2009.
Disponível em:  http://grece-fr.com/?p=1550





[1] Pseudônimo de Alain de Benoist quando assinava editorias da revista Éléments pour la civilisation européenne (N. da T.).

[2] Tikkun significa “correção”. Assim a chamada Tradição cabalística designa o caminho mais benéfico para nosso crescimento espiritual (N. da T.).

[3] Milenarismo. Doutrina que assegura que os predestinados ainda permaneceriam na Terra durante mil anos após o julgamento final, no gozo de todos os prazeres (N. da T.).

quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Teoria do Complô

"Cada indivíduo, cada coletividade vive sobre um sistema de representações que estrutura seu universo mental, dá sua coerência ao grupo e forma a base do destino que ele se dá ou que ele sofre. A história modela esses sistemas e dá a cada cultura uma forma que lhe é própria, com uma adaptabilidade mais ou menos ampla. A cultura de um povo constitui seu sistema de referência, de avaliação e de explicação. Ela é aquilo através do qual cada um « arrazoa » o mundo e tenta agir sobre ele."
CARLIER, Michel. « La théorie du complot », Points de vue n°11, 1994 Disponível em:  http://grece-fr.com/?p=675

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Emile Boutmy

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AUGÉ, Paul. Larousse du XXe Siècle, v. 1. Paris: Librairie Larousse, 1928, p. 829..


sexta-feira, 6 de maio de 2016

Psicologia Política

Não é fácil desvendar os erros políticos dos quais a história estaria repleta, erros esses que, para Le Bon, seriam "erros de psicologia". Se as artes e as ciências se estabelecem sobre normas cuja violação não ficaria impune, da mesma sorte o "governo dos homens" estaria também subordinado à observância de certas regras. E Le Bon vai mais longe, afirmando que o único verdadeiro tratado de psicologia política teria sido O Príncipe de Maquiavel.