domingo, 27 de maio de 2018

Revista Fon-Fon!


Na edição n. 33 da Revista Fon-Fon!, Rio de Janeiro, de 21 de novembro de 1908, conta-se que certo boêmio que assistira, dias antes, à conferência de Enrico Ferri no São Pedro, impressionara-se ao ouvir do eminente palestrante italiano que a máquina a vapor tivera decisiva influência nos destinos dos povos na vida internacional contemporânea. 

A isso, o boêmio teria retrucado:

“Ó cousa! Por isso é que tanta gente vive apitando...”



Imagem: Biblioteca Nacional

domingo, 29 de abril de 2018

Pequenas indiscrições

Figura 10 — Bilhete, provavelmente Porto Alegre, 28/05/1952. 
Fonte: acervo da autora.
Se arquivos são arquivos, sejam pessoais, sejam institucionais, e se, por isso mesmo, se identificam em muitos aspectos, os pessoais, especialmente aqueles que advêm de pessoas comuns, conformam-se de maneira única. Dir-se-ia que são irreplicáveis. Além disso, nem mesmo seu formador teria como prever todos os elementos que, ao longo do tempo, ali seriam inclusos. Se, por um lado, boa parte desses elementos se repetem, como cartões de natal, documentos legais, atestados, certificados, diplomas, etc.[1], por outro, existem aqueles que, aparecendo ocasionalmente, acabam por se integrarem aos demais, porque com estes convivem, contribuindo assim para conferir aos arquivos pessoais uma singularidade notória, devida a um conteúdo quase sempre imprevisto e imprevisível. Exemplo? As pequenas indiscrições que eles não excluem, e que nos fornecem pistas seguras de certo refinamento de espírito onde as reticências se substituem aos discursos.

TOMASINI, Maristela Bleggi. Segredos de arquivo: etiqueta social e cotidiano nas cartas de amor de Francisco para Maria (1922-1937). 2017. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-09042018-125439/>. Acesso em: 2018-04-29.




[1] Cox (2008, p. 164, 165) considera como uma parte essencial dos arquivos pessoais aqueles documentos que marcariam o progresso do indivíduo. Certificados, diplomas, atestados de expertises seriam marcas pessoais que ajudam na construção da identidade.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Fotografia

Usina do Gasômetro vista do Guaíba, Porto Alegre.

terça-feira, 24 de abril de 2018

Opiniões


"Platão, em sua luta contra os sofistas, descobriu que a “arte universal de encantar o espírito com argumentos” (Fedro, 261) nada tinha a ver com a verdade, mas só visava à conquista de opiniões, que são mutáveis por sua própria natureza e válidas somente “na hora do acordo e enquanto dure o acordo” (Teeteto, 172b). Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no mundo, pois as opiniões — isto é, “o que pode pensar a multidão”, como escreveu — decorrem antes da persuasão do que da verdade (Fedro, 260). A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento à custa da verdade, enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura, mesmo que à custa da realidade. Em outras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto

estes destroem a dignidade da ação humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos, que destroem a própria história e sua inteligibilidade, colocada em perigo sempre que os fatos deixam de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente, para serem indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinião."

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo.Tradução de Roberto Raposo. São Paulo, Editora Schwarcz, 2012, p. 34.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Testemunhos e método crítico

1. Esboço de uma história do método crítico
Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, os mais ingênuos dos policiais sabem bem. Livres, de resto, para nem sempre tirar desse conhecimento teórico o partido que seria preciso. Do mesmo modo, há muito tempo estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos históricos. Uma experiência, quase tão velha como a humanidade, nos ensinou que mais de um texto se diz de outra proveniência do que de fato é: nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais, [eles] também, podem ser falsificados. Na Idade Média, diante da própria abundância de falsificações, a dúvida foi [frequentemente] como um reflexo natural de defesa. "Com tinta, qualquer um pode escrever qualquer coisa" exclamava, no século XI, um fidalgo provinciano loreno, em processo contra monges que armavam-se de provas documentais contra ele. A Doação de Constantino — essa espantosa elucubração que um clérigo romano do século VIII assinou sob o nome do primeiro César cristão — foi, três séculos mais tarde, contestada nos círculos do mui pio imperador Oto III. As falsas relíquias são procuradas desde que as relíquias existem.
No entanto, o ceticismo de princípio não é uma atitude intelectual mais estimável ou mais fecunda que a credulidade, com a qual, aliás, combina-se facilmente em muitos espíritos um pouco simplistas. Conheci, durante a outra guerra, um simpático veterinário que, não sem alguma aparência de razão, recusava-se sistematicamente a dar qualquer crédito às notícias dos jornais. Mas se alguém despejasse em seu ouvido boatos dos mais inverossímeis, deliciava-se.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 90.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Janet e o sentimento de Angústia



Capítulo I – Os sentimentos fundamentais
IV. O sentimento de angústia
Estudaremos agora a terceira série de sentimentos dos quais faremos o resumo, o sentimento de angústia, que é muito importante do ponto de vista social.
Frequentemente tenta-se dar desse sentimento uma definição colocando-o do ponto de vista da consciência, mas este é um trabalho bem difícil. Têm sido propostas expressões como “medo moral”, “dor moral”. Eia aí simples metáforas exprimindo unicamente a ideia de um afastamento do homem diante do mundo exterior.
É preciso, de fato, colocar-se de outro ponto de vista e, segundo nosso método, começar por buscar as circunstâncias nas quais nascem esses sentimentos para, a seguir, fazer a sua análise.
Os sentimentos de angústia surgem sob dois grupos de circunstâncias: os insucessos e as emoções.
A ação dos seres vivos consiste, como vimos, em modificar o mundo exterior, modificações que encontram um estimulante nas manifestações desse mundo exterior. Mas quando a ação se consuma, pode-se perguntar se ela teve êxito ou não, se ela suprimiu as manifestações dificultosas. Nos casos ordinários, é um observador exterior que constata se ação foi ou não exitosa; aqui, o observador somos nós mesmos: este é o ator que representa o papel de observador, e o sentimento de sucesso ou de insucesso modifica a própria ação.
Chamaremos ab-reação uma conduta que consegue modificar o mundo exterior no sentido desejado.
A primeira fonte de angustia se encontra, pois, no insucesso. Passemos agora à segunda fonte: as emoções. Dizemos, há alguns anos, que não há propriamente como falar de ação em uma emoção. Na emoção,dizemos, somos surpreendidos, mas nada fazemos, não agimos: a emoção se traduz pela desordem, pelo desarranjo.
Na verdade, depois da reflexão, podemos dizer que há também na emoção um sentimento de angústia, uma relação com a ação. Mas a parcela de ação é reduzida.
Estabelecidas as origens da angustia, podemos analisar esse sentimento do seguinte modo:
As modificações devidas ao estado de angustia podem ser reduzidas a três tipos principais: modificações viscerais, modificações intelectuais e modificações da conduta ou da ação.
As modificações viscerais, como para todos os fenômenos psicológicos, são inumeráveis no organismo: modificações da circulação, da digestão, da respiração, da secreção, um grande número dessas modificações viscerais foram citadas no livro que publiquei em 1903 à propósito de obsessões.
Do ponto de vista intelectual, constatam-se dois fenômenos postos. De uma parte a inteligência se detém: o indivíduo se torna estúpido, nada mais compreende. Essa parada da inteligência, ora localizada, ora geral, se traduz frequentemente por um retorno a antigos defeitos de pronúncia tais como sotaque ou traços vulgares e também por certas perdas de memória. D’outra parte, constata-se igualmente certa excitação da inteligência.
Da mesma forma, do ponto de vista das modificações da conduta, constata-se ora uma supressão da ação, como nos fenômenos de timidez, uma supressão da marcha, ora certa agitação que se traduz por acontecimentos, uma necessidade de mexer-se, de gritar, de gesticular, de “quebrar tudo”.
A coexistência, desta diminuição da ação e desta excitação, da inibição e da agitação desordenada, produz dificuldades e diversidades nas teorias da angústia que têm sido apresentadas e que devemos agora passar e revista.
As diferentes teorias da angustia se distinguem pela escolha de um fenômeno como essencial: sejam as manifestações viscerais, seja aquela da inteligência, sejam aquelas da ação e da conduta.
As teorias viscerais são muito antigas: elas datam de Descartes e de Malebranche que declaram que a paixão é o contragolpe corporal de fenômenos espirituais.
Em 1860, por Claude Bernard, e em 1884, por Willian James, essas tórias são questionadas e resumidas por esta frase característica de W. James: “sorry because we cry, nós somos tristes porque choramos”.
Tais teorias estão ultrapassadas no momento. Primeiro, porque repousam sobre um círculo vicioso. Se retirarmos da emoção os fenômenos viscerais, diz W. James, não sobra nada. Mas quem admitiu esse postulado de que se constatam apenas fenômenos viscerais? É bem possível que existam outros fenômenos além destes últimos, e então não haveria nenhuma razão a priori para rejeitar certos fenômenos de preferência a outros; e, de fato, há uma imensidade de fenômenos que intervêm na angústia.
Mas a principal razão do fracasso dessas teorias viscerais não está nisso, mas no fato de que esses fenômenos são extremamente banais e quase os mesmos para todos os sentimentos. A propósito disso há um estudo feito em 1905 pelo italiano Montabelli. Esse autor quis estudar os sentimentos opostos como o amor e o ódio, o medo e a coragem, etc. Ele montou vários quadros de modificações orgânicas constatadas nos dois sentimentos opostos: a comparação desses quadros não mostra nenhum antagonismo. Ela mostra, ao contrário, que, para todos os sentimentos, as modificações viscerais são quase as mesmas.
Enfim, esta teoria resulta de um erro frequente de método que consiste em passar de um fenômeno infinitamente complexo a um fenômeno absolutamente simples, no caso presente, de um sentimento à uma modificação fisiológica, e que me lembra a seguinte resposta de um candidato a quem lhe perguntasse o que era sulfato de sódio, a que ele respondia: “É um composto de átomos”.
As teorias intelectuais tentam explicar a angustia pela inteligência; mas a inteligência se manifesta na linguagem, e a linguagem, ela mesma, não é senão a reprodução da ação. De sorte que as teorias da inteligência são intermediárias que se encaminham na direção das teorias da ação.
As teorias da ação foram inauguradas pela escola de Chicago que analisou os fenômenos psicológicos desse ponto de vista. Esta escola mostrou notadamente que na emoção havia mais ação do que se acreditava, ações que se manifestam em certas tentativas de fuga e por golpes de punho e movimentos de maxilares.
Mas a escola de Chicago não observa senão fragmentos da ação. É preciso perguntar-se agora se existe aí verdadeiramente uma conduta particular, nítida e especial, característica da angústia.
Minha resposta será que, no momento em que existe um sentimento novo, há forçosamente uma conduta especial. Nós a chamaremos de “conduta de fracasso”, e podemos constatar que um fracasso sem conduta de fracasso é um fracasso sem angústia. Assim o pássaro que, partindo à procura de um lugar para o seu ninho, cai ferido pela bala de um caçador, não sente angustia, porque, atingido subitamente e sem sabê-lo, não pode ele organizar uma conduta de fracasso. Em uma primeira aproximação, podemos caracterizar essa conduta de fracasso pela expressão “medo da ação”: as angustias descrevem sempre coisas assustadoras onde intervêm ideias de perigo, de morte, de sacrilégio, de crime. Mas se a expressão “medo de um objeto” corresponde bem a algo preciso, a saber a fuga, a que corresponde a expressão “medo da ação”?
Faremos aqui a observação de que, sob o domínio do sentimento de angustia, o indivíduo tem constantemente condutas opostas, seja uma com a outra, seja a seus princípios,seja a seus motivos diretores. É isso o que chamaremos de o fenômeno de condutas inversas.
Isso se explica facilmente. Os fenômenos contraditórios estão sempre associados. Do mesmo modo que fisiologicamente os movimentos do lado direito estão associados àqueles do lado esquerdo, que os movimentos de flexão e de extensão são ligados por músculos antagonistas, o mesmo com nossas ideias: não podemos desejar uma coisa sem ter a ideia da restrição contrária (por exemplo a ideia de comer sem a ideia de não comer). A passagem de uma à outra se faz muito simplesmente pelo medo da ação: ter medo da ação é fazer outra coisa, é afastar-se, é muito facilmente passar ao extremo oposto. Mas como se produz essa ação inversa? Não há outra resposta senão que a parada da ação. Não é bom continuar sem cessar um esforço sem resultados: a parada é a descoberta da inutilidade da ação, é a reação ao fracasso. Não é a parada parcial da fadiga; é a parada completa, definitiva, que suprime radicalmente o desejo.
Detêm-se assim as forças mobilizadas que será preciso empregar em outro objetivo. Será preciso inventar outras ações, e isso em más circunstâncias. É algo bem difícil. Haverá como resultado dessas forças não empregadas, numerosas desordens viscerais e intelectuais.
Reta um último problema. Como relacionar a esta explicação de angústia a emoção, pois que o fracasso supõe uma multidão de ações prévias.
A resposta é que a emoção é uma reação antecipada. Se colocarmos nas mãos de um indivíduo uma grande bola, depois uma pequena bola, ambas de mesmo peso, o homem declara sempre que a maior é a mais leve. É uma reação antecipada. Ele sabe que não deve concluir que ela é mais pesada porque é maior, e cai no excesso contrário. Do mesmo modo, a emoção é uma reação antecipada que se produz antes dos motivos que são imaginados de antemão. Na realidade, a reação de fracasso deveria ocorrer após o insucesso do esforço; os espíritos emotivos se enganam. Eles reagem mais cedo. A emotividade é, pois, um hábito moral de reagir ao fracasso muito cedo, porque nos julgamos muito fracos diante da dificuldade da ação. A emoção é também e, sobretudo, uma reação grosseira, elementar, que suprime as condutas superiores e que reduz o espírito às condutas mais primitivas, mesmo às simples condutas convulsivas.

Tradução da parte IV do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.


quarta-feira, 18 de abril de 2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O diagnóstico de Cervantes

O diagnóstico de Cervantes

sábado, 14 de abril de 2018

O diagnóstico de Cervantes “Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo.”

O diagnóstico de Cervantes

 
Miguel de Cervantes, falando de seu Dom Quixote.

Era uma vez um quando em que as coisas eram tão singelas que a gente simplesmente escrevia. Do outro lado, alguém nos encontrava. Não nos estranhávamos. Nem eu à minha escrita, nem o leitor ao que lia. Antes nos reconhecíamos.
Mas esse quando passou, ou desapareceu, ou não está mais ao alcance da minha consciência. Foi substituído por este presente incerto, instável, onde as coisas não são o que parecem ser. Nem as pessoas. Estas se me afiguram tão irresgatáveis quanto as palavras, aquelas que então livremente seguiam escrita afora, sem medo algum de serem distorcidas. Com prodigalidade, apareciam enfileiradas atrás do cursor ou da ponta do grafite macio que gosto de usar na lapiseira deslizante sobre o papel. Esse detalhe importa ao leitor? Acredito que sim. Explico. Cervantes encerra seu Dom Quixote assumindo o herói que nascia dele, para praticar as ações que ele escrevia com uma pena de avestruz que nos é descrita como grosseira e mal aparada. E isso então não prova que se escreve mais pela escrita em si do que pelas ideias? Eis uma tese não mais esdrúxula do que muitas que nos cercam.
Falo, enfim, de um quando nostálgico: eu nem sabia o que ia escrever, e a escrita acontecia. Não era necessário ser calculista. Não era necessário ser metódico, nem dizer precisamente alguma coisa comprometida com um sentido qualquer. Porque quem confere sentido ao que lê é o leitor. Tampouco era preciso anunciar de antemão exatamente do que se ia falar nem como se ia falar desse quê, para, finalmente, concluir alguma coisa.
O leitor sempre me adivinhava. Reconhecia aquelas pistas secretas escondidas entre pontos, vírgulas e travessões. Hoje duvido do que reconheço nesse real proteiforme. Porque me assustam as mudanças de humor quixotescas nas quais se precipita uma gente que, até bem pouco, me parecia tão normal. É. Normal. Tipo assim: previsível, ponderada, receptiva às linhas que minha escrita deixava atrás de si. Mas não. Deparo-me com gente que ataca ideias com o mesmo ímpeto do herói de Cervantes, quando ele investia contra moinhos de vento.

A outra opção seria a minha anormalidade e não a dos outros. Será? Longe de mim descartá-la. Mas não. Aliás, faz tempo que eu não surto. Vai ver são os hormônios repostos que impedem as terríveis oscilações onde calor e frio se alternam com sorrisos e lágrimas. Até que sou estável. Então, resta-me desconfiar do resto do mundo, que não se deixa resgatar de quando algum.
Confesso que tenho experimentado uma brutal falta de referências para me relacionar em um ambiente que se bipolariza. Mesmo vivendo em um estado da federação onde as coisas são muito coloradas ou muito gremistas, onde a identidade não é um conceito, mas uma prática cotidiana que se evidencia no sotaque, no mate, no vestuário. Posso conviver sem maiores estranhamentos com tais hábitos, ainda que com eles não me identifique. Sou tolerante. Só que ultimamente...
Talvez nem devesse escrever isso. Mas como o leitor é sempre uma referência querida, fico a imaginar que talvez haja mais gente que às vezes se sinta à parte do resto do mundo. Afinal, por que devo estar posicionada estrategicamente aqui ou lá? Alienada não sou. Jamais me alienaria de minhas contradições, renunciando a qualquer coisa ou a qualquer afeto meu em nome de uma coerência que me fosse estranha, de uma natureza que não fosse a minha. Podemos experimentar ideias e palavras, tanto quanto podemos, ― talvez mesmo devamos ―, exercitar a alteridade. Ser um pouco o outro e descobri-lo como a um personagem. Eu até tento. Mas a obviedade que tenho descoberto por aí me desanima profundamente, porque moldada sobre uma lógica meramente ideológica, que não dá lugar aos pesos e às medidas ditadas por nossos afetos. Uma lógica pobre, que investe pesadamente em um arsenal demagógico e vazio. Há ideologias alienantes por si próprias, uma vez que continuamente nos posicionam frente a um inimigo. Porque — diz-se — toda política requer um inimigo, um adversário, algo a combater.
Claro, aí penso em Dom Quixote, em cuja história, todavia, eu não me encaixo. Careço de donzelice para ser Dulcineia. Para Sancho Pança, falta-me o jumento, a pinta de patriarca, a expectativa de governar uma ilha. Sobra-me, então, Rocinante? O eterno companheiro de todos os caminhos e carreiras percorridos pelo romântico, mas obtuso herói, que recomendou expressamente jamais fosse este seu cavalo esquecido por nenhum cronista de sua história. Toda essa comparação me ocorre porque Dom Quixote é um personagem anacrônico. Em plena Renascença ele vivia uma fantasia medieval, imerso em um doce romantismo de cavalaria, idealizando o mundo e a mulher amada. Inofensivo, no caso dele. Mas iludido. Sinto o resto do mundo que me cerca um pouco assim. Singularmente irracional, crédulo, presa fácil de frases de efeito, não raramente reducionistas e pretensiosas. Nem sempre, porém, inofensivas. Talvez sejam ainda os encantamentos, as pendências, as batalhas, os desafios, as feridas, os requebros, os amores, as tormentas e, enfim, ― por que não? ―, os tais disparates impossíveis.

Não falo apenas do que vemos hoje mais perto de nós. O mundo inteiro parece estar polarizado moralmente, como se todos reagissem a ameaças potencialmente identificadas com outro que, em tese, é diferente, ou hostil, ou por qualquer razão nos parece como tal. Armagedom: entre o bem e o mal. O tempo como referência desaparece. Porque ele não empresta mais aos fatos um sentido, uma coerência interna, sistemática. Falo de quando havia o antes e o depois. Hoje vivemos uma realidade que materializa o que foi uma vez a asserção metafísica que afirmava que são os efeitos que criam as suas próprias causas, e não o inverso. Porque as coisas podem, finalmente, ser exatamente o que queremos que elas sejam, e motivadas por elementos que nos damos ao luxo de escolher. Inventamos uma nova razão que se parece demais àquela que enfeitava a nossa infância narcísica, quando então tudo e todos conspiravam para que não nos frustrássemos. Heróis desse agora com cavalos que falam uma língua que não é necessário aprender, porque ela sempre nos diz aquilo que desejamos ouvir.
Percebo-me como alguém fora do tempo, como habitante de um planeta onde a até espacialidade já sucumbiu. Tudo acontece aí simultaneamente, mas não consigo mais encontrar o conforto de algum outro que não me venha cheio das novidades de um amanhã que acontece agora. Não encontro mais em ninguém — nem em você talvez — aquele distanciamento filosófico mágico que pode situar a dialética em polos que não precisam, necessariamente, nos polarizar também, absorvendo-nos, a nós e à nossa liberdade que pode, sim, não ser senão renúncia.
Queria mesmo era poder conversar sobre essas coisas sem que elas signifiquem coisas minhas ou suas. Apenas almejo a liberdade de primeiro contemplar e depois, quem sabe, entender não causas e consequências lineares, mas todo esse imenso processo que nos transforma em delicados que alguém divide, alistando-nos uns de um lado, outros de outro, designando ódios recíprocos, temperados com rancores amargos, desenterrados de memórias imprecisas, obedientes a interesses.
Penso sempre que o que se perde nesse desgaste é irrecuperável, porque não se trata de literatura, de idealidades. Porque nos leva pessoas, nos subtrai amigos, nos força a conviver com gente que nos estranha e que estranha inclusive a si mesma. O diagnóstico de Cervantes é apenas metáfora. E não há o que fazer, porque a realidade não pode competir com sonhos e fantasias. Ela recua, humildemente, por vezes não encontrando sequer um aonde ir ou ficar, buscando enfim esse quando do qual me perdi um dia. 




Autor: Maristela Bleggi Tomasini

terça-feira, 10 de abril de 2018