Como falar do
pragmatismo depois de William James? E o que poderíamos dizer sobre isso que já
não se encontre dito, e bem melhor dito, no livro surpreendente e encantador do
qual temos a tradução fiel? Nós evitaríamos tomar a palavra, se o pensamento de
James não fosse o mais freqüentemente diminuído, ou alterado, ou falseado pelas
interpretações que lhe são dadas. Muitas idéias circulam que arriscam a se
interpor entre o leitor e o livro, e a difundir uma obscuridade artificial
sobre uma obra que é a própria claridade.
Compreender-se-ia mal
o pragmatismo de James, se não se começasse por modificar a idéia que se faz,
de modo corrente, da realidade em geral. Fala-se do “mundo” ou do “cosmos”, e essas
palavras, de acordo com sua origem, designam alguma coisa de simples ou, ao
menos, de bem composto. Diz-se “o universo”, e a palavra faz pensar em uma
unificação possível das coisas. Pode-se ser espiritualista, materialista,
panteísta, como se pode ser indiferente à filosofia e satisfeito com o senso
comum: sempre se concebe um ou muitos princípios simples pelos quais se
explicaria o conjunto das coisas materiais e morais.
É que nossa
inteligência é apaixonada pela simplicidade. Ela economiza o esforço, e quer
que a natureza seja arranjada de modo a reclamar de nós, para ser pensada,
apenas a menor soma possível de trabalho. Ela dá como justo o que é necessário
em matéria de elementos ou de princípios para recompor com eles a série
indefinida de objetos e de eventos.
Mas se, em lugar de
reconstruir idealmente as coisas para maior satisfação de nossa razão, nós nos
ativéssemos pura e simplesmente àquilo que a experiência nos dá, pensaríamos e
nos exprimiríamos de maneira inteiramente diferente. Enquanto nossa
inteligência, com seus hábitos de economia, concebe os efeitos como
estritamente proporcionais às suas causas, a natureza, — que é pródiga —,
coloca em causa muito mais do que é requerido para produzir o efeito. Enquanto
nossa divisa é: “Apenas o que é preciso”, a da natureza é: “Mais do
que é preciso”, — muito disso, muito daquilo, muito de tudo. — A realidade,
tal como James a vê, é redundante e superabundante. Entre essa realidade e
aquela que os filósofos reconstroem, eu creio que foi estabelecida a mesma
relação que entre a vida que nós vivemos todos os dias e aquela que os atores
nos representam, à noite, sobre o palco. No teatro, cada um diz apenas aquilo
que é preciso dizer e faz apenas aquilo que é preciso fazer; há cenas bem
recortadas; a peça tem um começo, um meio e um fim; e tudo está disposto da
maneira mais parcimoniosa possível à vista de um desfecho que será feliz ou
trágico. Mas, na vida, diz-se uma multidão de coisas inúteis, faz-se uma
multidão de gestos supérfluos, não há situações nítidas; nada se passa tão
simplesmente, nem tão completamente, nem tão agradavelmente quanto quereríamos;
as cenas apropriam-se umas das outras; as coisas não começam nem terminam; não
há desfecho inteiramente satisfatório nem gesto absolutamente decisivo, nem dessas
palavras decisivas e sobre as quais se permanece: todos os efeitos são
deteriorados. Assim é a vida humana. Assim é, sem dúvida também, aos olhos de
James, a realidade em geral.
Certamente, nossa experiência não é
incoerente. Ao mesmo tempo em que ela nos apresenta coisas e fatos, ela nos
mostra parentescos entre as coisas e relações entre os fatos: essas relações
são tão reais, tão diretamente observáveis, segundo Willian James, quanto as
coisas e os fatos, eles próprios. Mas as relações são flutuantes, e as coisas
são fluidas. Está longe daí esse universo árido que os filósofos compõem com
elementos bem recortados, bem arranjados, e onde cada parte não está mais
somente ligada a uma outra parte, como nos diz a experiência, mas ainda, como
quereria nossa razão, coordenada ao Todo.
O “pluralismo” de
William James não significa outra coisa. A Antiguidade concebia um mundo
fechado, parado, finito: é uma hipótese que responde a certas exigências de
nossa razão. Os modernos pensam, de preferência, em um infinito: é outra
hipótese que satisfaz outras necessidades de nossa razão. Do ponto de vista
onde James se coloca, — que é aquele da experiência pura ou do “empirismo
radical” —, a realidade não aparece mais como finita nem como infinita, mas
simplesmente como indefinida. Ela corre, sem que nós possamos dizer se é em uma
direção única, nem mesmo se é sempre e em toda parte o mesmo rio que corre.
Nossa razão está
menos satisfeita. Ela se sente menos à vontade em um mundo onde ela não
encontra mais, como num espelho, sua própria imagem. E, sem nenhuma dúvida, a
importância da razão humana está diminuída. Mas o quanto a importância do
próprio homem, ele mesmo, — do homem inteiro, vontade e sensibilidade, tanto
quanto inteligência —, vai se encontrar aumentada!
O universo que nossa
razão concebe é, com efeito, um universo que ultrapassa infinitamente a
experiência humana, sendo próprio da razão prolongar os dados da experiência,
estendê-los pela via da generalização, enfim, fazer-nos conceber muito mais coisas
do que jamais perceberíamos. Em semelhante universo, o homem é considerado como
fazendo pouca coisa e ocupando pouco espaço: o que ele concede à sua
inteligência, ele retira de sua vontade. Sobretudo, havendo atribuído ao seu
pensamento o poder de tudo abraçar, ele está obrigado a conceber todas as
coisas em termos de pensamento: suas aspirações, seus desejos, seus
entusiasmos, ele não pode pedir esclarecimentos sobre um mundo onde tudo aquilo
que lhe é acessível foi considerado por ele, de antemão, como traduzível em
idéias puras. Sua sensibilidade não saberia esclarecer sua inteligência, da
qual ele faz a própria luz.
As filosofias, em sua
maior parte, restringem, pois, a nossa experiência no lado sentimento e vontade,
ao mesmo tempo em que a prolongam indefinidamente no lado pensamento. O que
James nos pede é não mais prolongar a experiência pelas vias hipotéticas, é
também não a mutilar naquilo que ela tem de sólido. Nós não estamos
inteiramente seguros daquilo que a experiência nos dá; mas nós devemos aceitar
a experiência integralmente, e nossos sentimentos fazem parte disso ao mesmo
título que nossas percepções, ao mesmo título, por consequência, que as
“coisas”. Aos olhos de Willian James, o homem inteiro conta.
Ele conta muito mesmo
em um mundo que não o esmaga mais com sua imensidade. Fica-se espantado com a
importância que James atribui, em um de seus livros, à curiosa teoria de Fechner que
faz da Terra um ser independente dotado de uma alma divina. É que ele vê aí um
meio cômodo de simbolizar, — talvez mesmo de exprimir —, seu próprio
pensamento. As coisas e os fatos dos quais se compõe nossa experiência
constituem para nós um mundo humano, ligado sem dúvida a outros, mas
tão distanciado deles e tão perto de nós que devemos considerá-lo, na prática,
como suficiente para o homem e suficiente para si mesmo. Com essas coisas e
esses eventos nós fazemos corpos, — nós, quer dizer, tudo aquilo que nós temos
consciência de ser, tudo aquilo que nós experimentamos. Os sentimentos
poderosos que agitam a alma em certos momentos privilegiados são forças tão
reais quanto aqueles das quais se ocupa o físico; o homem não as cria, não mais
do que ele não cria o calor ou a luz. Banhamo-nos, de acordo com James, em uma
atmosfera atravessada por grandes correntes espirituais. Se muitos dentre nós
aí se obstinam, outros se deixam levar. E existem almas que se abrem inteiras
ao sopro benfazejo. Estas são as almas místicas. Sabe-se com que simpatia James
as estudou. Quando apareceu seu livro sobre A Experiência Religiosa, muitos
aí não viram senão uma série de descrições muito vivas e de análises muito
penetrantes, — uma psicologia, diziam eles, do sentimento religioso. — Quão enganados
estavam sobre o pensamento do autor! A verdade é que James debruçava-se sobre a
alma mística como nós saímos, em um dia de primavera, para sentir a carícia da
brisa, ou como, à beira-mar, olhamos os pássaros e vemos os barcos e o inchaço
de suas velas para saber de onde sopra o vento. As almas que o entusiasmo
religioso preenche são verdadeiramente elevadas e transportadas: como não nos
levariam elas a perceber o real, assim como numa experiência científica, a
força que transporta e que eleva? Aí está, sem dúvida, a origem, aí está a
idéia inspiradora do “pragmatismo” de William James. As verdades que ele mais
nos induz a conhecer são, para ele, verdades que foram sentidas e vividas antes
de serem pensadas.
Em todos os tempos
diz-se que há verdades que despertam o sentimento tanto quanto a razão; e em
todos os tempos também se diz que, ao lado das verdades que nós encontramos
feitas, existem outras que nós ajudamos a formar, que dependem em parte de
nossa vontade. Mas é preciso observar que, em James, esta idéia toma uma força
e uma significação novas. Ela desabrocha, graças à concepção da realidade que é
peculiar a esse filósofo numa teoria geral da verdade.
O que é um julgamento
verdadeiro? Nós chamamos verdadeira a afirmação que concorda com a realidade.
Mas em que pode consistir esta concordância? Nós gostamos de ver aí algo como a
semelhança do retrato ao modelo: a afirmação verdadeira seria aquela que
copiaria a realidade. Reflitamos sobre isso, todavia: nós veremos que é
unicamente em raros casos, excepcionais, que esta definição do verdadeiro
encontra sua aplicação. Aquilo que é real é tal ou qual fato determinado,
acontecendo em tal ou qual ponto do espaço e do tempo, é do singular, é do
inconstante. Ao contrário, a maior parte de nossas afirmações são gerais e
implicam numa certa estabilidade de seu objeto. Tomemos uma verdade tão vizinha
quanto possível da experiência. Esta por exemplo: “o calor dilata os corpos”.
De que poderia ela ser a reprodução? É possível, em certo sentido, reproduzir a
dilatação de um corpo determinado em momentos determinados, fotografando-o em
suas diversas fases. Mesmo, por metáfora, eu posso ainda dizer que a afirmação
“esta barra de ferro se dilata” é a reprodução daquilo que se passa quando eu
assisto à dilatação da barra de ferro. Mas uma verdade que se aplica a todos os
corpos, sem concernir especialmente a algum daqueles que eu vi, não copia nada,
não reproduz nada. Nós queremos, todavia, que ela reproduza alguma coisa e, em
todos os tempos, a filosofia procurou nos dar satisfação sobre esse ponto. Para
os filósofos antigos, havia, acima do tempo e do espaço, um mundo onde tinham
sede, por toda eternidade, todas as verdades possíveis. As afirmações humanas
eram, para eles, tanto mais verdadeiras quanto mais fielmente copiavam essas
verdades eternas. Os modernos fizeram descer a verdade do céu sobre a terra.
Mas eles a vêem ainda como alguma coisa que preexistiria às nossas afirmações.
A verdade estaria depositada nas coisas e nos fatos: nossa ciência iria aí procurá-la,
retirando-a de seu esconderijo, trazendo-a para a luz. Uma afirmação tal como
“o calor dilata os corpos” seria uma lei que governa os fatos, que reina, senão
acima deles, ao menos em meio a eles, uma lei verdadeiramente contida em nossa
experiência e que nós nos limitaríamos a extrair dela. Mesmo uma filosofia como
aquela de Kant, — que quer que toda verdade científica seja relativa ao
espírito humano —, considera as afirmações verdadeiras como dadas por
antecipação na experiência humana. Uma vez esta experiência organizada pelo
pensamento humano em geral, todo o trabalho da ciência consistiria em
atravessar o invólucro resistente dos fatos no interior dos quais a verdade
está alojada, como uma noz em sua casca.
Esta concepção da
verdade é natural ao nosso espírito e natural também à filosofia, porque é
natural conceber-se a realidade como um todo perfeitamente coerente e
sistematizado sustentado por uma armadura lógica. Esta armadura seria a própria
verdade. Nossa ciência não faria senão encontrá-la. Mas a experiência pura e
simples não nos diz nada de semelhante, e James atém-se à experiência. A
experiência nos apresenta um fluxo de fenômenos. Se tal ou qual afirmação
relativa a um deles nos permite dominar aqueles que se seguirão, ou mesmo
simplesmente prevê-los, nós dizemos desta afirmação que ela é verdadeira. Uma
proposição tal como “o calor dilata os corpos”, proposição sugerida pela vista
da dilatação de certo corpo, faz com que nós prevejamos como outros corpos se
comportarão em presença do calor; ela nos ajuda a passar de uma experiência
antiga a experiências novas, é um fio condutor, nada mais. A realidade corre,
nós corremos com ela. E nós chamamos verdade a toda afirmação que, guiando-nos
através da realidade móvel, nos dá domínio sobre ela e nos coloca em melhores
condições para agir.
Vê-se a diferença
entre esta concepção da verdade e a concepção tradicional. Nós definimos, de
ordinário, a verdade por sua conformidade àquilo que já existe; James define-a
por sua relação com aquilo que não existe ainda. O verdadeiro, segundo William
James, não copia alguma coisa que foi ou que é: ele anuncia aquilo que será ou,
de preferência, prepara nossa ação sobre aquilo que vai ser. A filosofia tem
uma tendência natural a querer que a verdade olhe para trás. Para James, ela
olha para frente.
Mais precisamente, as
outras doutrinas fazem da verdade alguma coisa de anterior à ação bem
determinada do homem que a formula pela primeira vez. Ele foi o primeiro a
vê-la, dizemos nós, mas ela esperava-o, como a América esperava Cristóvão
Colombo. Alguma coisa a escondia de todos os olhares e, por assim dizer,
encobria-a. Ele a descobriu. Muito diferente é a concepção de William James.
Ele não nega que a realidade seja independente, em grande parte ao menos,
daquilo que nós dizemos ou pensamos dela; mas a verdade, que não pode ligar-se
senão àquilo que nós afirmamos da realidade, parece-lhe ser criada por nossa
afirmação. Nós inventamos a verdade para utilizar a realidade, como nós criamos
dispositivos mecânicos para utilizar as forças da natureza. Poder-se-ia,
parece-me, resumir todo o essencial da concepção pragmatista da verdade em uma
fórmula tal como esta: enquanto para as outras doutrinas uma verdade nova é
uma descoberta, para o pragmatismo ela é uma invenção.
Não se segue daí que
a verdade seja arbitrária. Uma invenção mecânica vale apenas por sua utilidade
prática. Do mesmo modo, uma afirmação, para ser verdadeira, deve aumentar nosso
império sobre as coisas. Ela não é menos a criação de certo espírito
individual, e ela não preexistia, não mais, ao esforço desse espírito, como o
fonógrafo, por exemplo, não preexistia a Edison. Sem dúvida, o inventor do
fonógrafo precisou estudar as propriedades do som, que é uma realidade. Mas sua
invenção sobrepôs-se a esta realidade como uma coisa absolutamente nova, que
não seria talvez jamais produzida, caso ele não houvesse existido. Assim, uma
verdade, para ser viável, deve ter sua raiz nas realidades; mas essas
realidades são apenas o terreno sobre o qual esta verdade brota, e outras
flores bem poderiam brotar, se o vento para aí trouxesse outras sementes.
A verdade, de acordo
com o pragmatismo, é, pois, feita pouco a pouco, graças aos aportes individuais
de um grande número de inventores. Se esses inventores não houvessem existido,
se outros houvessem existido em seu lugar, nós teríamos tido um corpo de verdades
inteiramente diferente. A realidade foi, e evidentemente permanece, aquilo que
ela é, ou quase; mas outros teriam sido os caminhos que haveríamos de traçar
para a comodidade de nossa circulação. E não se tratam aqui somente de verdades
científicas. Nós não podemos construir uma frase, nós não podemos mesmo hoje
pronunciar uma palavra, sem aceitar certas hipóteses que foram criadas por
nossos ancestrais e que poderiam ter sido diferentes daquilo que elas são.
Quando eu digo: “meu lápis acaba de cair debaixo da mesa”, eu não enuncio,
certamente, um fato da experiência, porque aquilo que a visão e o tato me
mostram é simplesmente que minha mão se abriu e deixou escapar o que segurava.
O bebê fixado em sua cadeira que vê cair o objeto com o qual brinca, não imagina,
provavelmente, que este objeto continua a existir; ou, de preferência, ele não
tem a idéia nítida de um “objeto”, quer dizer, de qualquer coisa que subsista,
invariável e independente, através da diversidade e da mobilidade das
aparências que passam. O primeiro que ousou acreditar nesta invariabilidade e
nesta independência elaborou uma hipótese: é esta hipótese que nós adotamos de
modo corrente todas as vezes que empregamos um substantivo, todas as vezes que
falamos. Nossa gramática teria sido outra, outras teriam sido as articulações
de nosso pensamento, se a humanidade, no decorrer de sua evolução, houvesse
preferido adotar hipóteses de outro gênero.
A estrutura de nosso
espírito é, pois, em grande parte, nossa obra ou, ao menos, a obra de alguns dentre
nós. Aí está, se me parece, a tese mais importante do pragmatismo, ainda que
ela não tenha sido explicitamente destacada. É por aí que o pragmatismo
continua o Kantismo. Kant havia dito que a verdade depende da estrutura geral
do espírito humano. O pragmatismo acrescenta, ou ao menos implica, em que a
estrutura do espírito humano é o efeito da livre iniciativa de certo número de
espíritos individuais.
Isso não quer dizer,
ainda uma vez, que a verdade depende de cada um de nós: o mesmo equivaleria a
crer que qualquer um de nós poderia inventar o fonógrafo. Mas isso quer dizer
que, das diversas espécies de verdade, aquela que está mais perto de coincidir
com seu objeto não é a verdade científica, nem a verdade do senso comum, nem,
mais geralmente, a verdade de ordem intelectual. Toda verdade é um caminho
traçado através da realidade; mas, entre esses caminhos, existem aqueles aos
quais nós poderíamos dar uma direção muito diferente, caso nossa atenção fosse
orientada em um sentido diferente ou se houvéssemos visado a outro gênero de
utilidade; isso é o contrário de a direção ser marcada pela própria realidade:
isso é o que corresponde, caso seja permitido dizer, a correntes de realidade.
Sem dúvida, estas dependem ainda de nós em certa medida, porque nós somos
livres para resistir à corrente ou para segui-la; e, mesmo que nós a sigamos,
podemos inflecti-la diversamente, estando associados, ao mesmo tempo em que
submetidos, à força que aí se manifesta. Não é menos verdade que essas
correntes não são criadas por nós; elas fazem parte integrante da realidade. O
pragmatismo chega assim a inverter a ordem na qual temos o costume de colocar
as diversas espécies de verdade. Fora verdades que traduzem sensações brutas,
seriam as verdades de sentimento que teriam, na realidade, as raízes mais
profundas. Se convencionamos dizer que toda verdade é uma invenção, será
preciso, eu creio, para permanecer fiel ao pensamento de William James,
estabelecer entre as verdades de sentimento e as verdades científicas o mesmo
gênero de diferença que entre o barco à vela, por exemplo, e o barco a vapor.
Um e outro são invenções humanas, mas o primeiro dá ao artifício apenas uma
fraca parte. Ele toma a direção do vento e torna sensível aos olhos a força
natural que utiliza. No segundo, ao contrário, é o mecanismo artificial que
predomina. Ele encobre a força que coloca em jogo e assina-lhe uma direção que
escolhemos por nós mesmos.
A definição que James
dá da verdade integra sua definição da realidade. Se a realidade não é esse
universo econômico e sistemático que nossa lógica gosta de conceber, se ela não
é sustentada por uma armadura de intelectualidade, a verdade de ordem
intelectual é uma invenção humana que tem por efeito utilizar a realidade de
preferência a nos introduzir nela. E, se a realidade não forma um conjunto, se
ela é múltipla e móvel, feita de correntes que se entrecruzam, a verdade que
nasce de uma tomada de contato com qualquer uma dessas correntes, — verdade
sentida antes de ser concebida —, é mais capaz que a verdade simplesmente
pensada de perceber e de armazenar a própria realidade.
É, pois, enfim, a
esta teoria da realidade que deveria fixar-se primeiramente uma crítica do
pragmatismo. Poder-se-á erguer objeções contra ela, e o faríamos nós mesmos, no
que lhe concerne, certas reservas, mas ninguém contestará sua profundidade e
originalidade. Ninguém, não mais, após haver examinado de perto a concepção da
verdade que aí se correlaciona, desconhecerá sua elevação moral. Diz-se que o
pragmatismo de James é apenas uma forma de ceticismo, que ele rebaixaria a
verdade, que ele a subordinaria à utilidade material, que ele desaconselharia,
que ele desencorajaria a pesquisa científica desinteressada. Tal interpretação
não viria jamais ao espírito daqueles que leram atentamente a obra. E ela
surpreenderá profundamente aqueles que tiverem a oportunidade de conhecer o
homem. Ninguém amou a verdade com mais ardente amor. Ninguém a procurou com
mais paixão. Uma imensa inquietude o incitava, e, de ciência em ciência, da
anatomia à psicologia, da psicologia à filosofia, ele ia, atento aos grandes
problemas, descuidado do resto, esquecido de si mesmo. Toda sua vida ele
observou, experimentou, meditou. E, como se não houvesse feito o bastante, ele
almejava ainda, embalando seu último sono, experiências extraordinárias e
esforços mais que humanos pelos quais ele poderia continuar, — depois da morte
—, a trabalhar conosco, para o maior bem da ciência, para a maior glória da
verdade.
BERGSON,
Henri. Sur le pragmatisme de William James. Vérite et réalité. La pensée et le mouvant. Essais et
conférences. Paris: Presses Universitaires de France, 27ª edição, 1950,
pág. 239-251.
Tradução:
Maristela Bleggi Tomasini
Eu
não estou seguro de que James tenha empregado a palavra “invenção”, nem de que
ele tenha explicitamente comparado a verdade teórica a um dispositivo mecânico;
mas eu creio que essa aproximação é conforme ao espírito da doutrina, e que ela
pode nos ajudar a compreender o pragmatismo.