domingo, 29 de abril de 2018

Pequenas indiscrições

Figura 10 — Bilhete, provavelmente Porto Alegre, 28/05/1952. 
Fonte: acervo da autora.
Se arquivos são arquivos, sejam pessoais, sejam institucionais, e se, por isso mesmo, se identificam em muitos aspectos, os pessoais, especialmente aqueles que advêm de pessoas comuns, conformam-se de maneira única. Dir-se-ia que são irreplicáveis. Além disso, nem mesmo seu formador teria como prever todos os elementos que, ao longo do tempo, ali seriam inclusos. Se, por um lado, boa parte desses elementos se repetem, como cartões de natal, documentos legais, atestados, certificados, diplomas, etc.[1], por outro, existem aqueles que, aparecendo ocasionalmente, acabam por se integrarem aos demais, porque com estes convivem, contribuindo assim para conferir aos arquivos pessoais uma singularidade notória, devida a um conteúdo quase sempre imprevisto e imprevisível. Exemplo? As pequenas indiscrições que eles não excluem, e que nos fornecem pistas seguras de certo refinamento de espírito onde as reticências se substituem aos discursos.

TOMASINI, Maristela Bleggi. Segredos de arquivo: etiqueta social e cotidiano nas cartas de amor de Francisco para Maria (1922-1937). 2017. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-09042018-125439/>. Acesso em: 2018-04-29.




[1] Cox (2008, p. 164, 165) considera como uma parte essencial dos arquivos pessoais aqueles documentos que marcariam o progresso do indivíduo. Certificados, diplomas, atestados de expertises seriam marcas pessoais que ajudam na construção da identidade.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Fotografia

Usina do Gasômetro vista do Guaíba, Porto Alegre.

terça-feira, 24 de abril de 2018

Opiniões


"Platão, em sua luta contra os sofistas, descobriu que a “arte universal de encantar o espírito com argumentos” (Fedro, 261) nada tinha a ver com a verdade, mas só visava à conquista de opiniões, que são mutáveis por sua própria natureza e válidas somente “na hora do acordo e enquanto dure o acordo” (Teeteto, 172b). Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no mundo, pois as opiniões — isto é, “o que pode pensar a multidão”, como escreveu — decorrem antes da persuasão do que da verdade (Fedro, 260). A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento à custa da verdade, enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura, mesmo que à custa da realidade. Em outras palavras, aqueles destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto

estes destroem a dignidade da ação humana. O filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos modernos manipuladores dos fatos, que destroem a própria história e sua inteligibilidade, colocada em perigo sempre que os fatos deixam de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente, para serem indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinião."

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo.Tradução de Roberto Raposo. São Paulo, Editora Schwarcz, 2012, p. 34.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Testemunhos e método crítico

1. Esboço de uma história do método crítico
Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito, os mais ingênuos dos policiais sabem bem. Livres, de resto, para nem sempre tirar desse conhecimento teórico o partido que seria preciso. Do mesmo modo, há muito tempo estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos históricos. Uma experiência, quase tão velha como a humanidade, nos ensinou que mais de um texto se diz de outra proveniência do que de fato é: nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais, [eles] também, podem ser falsificados. Na Idade Média, diante da própria abundância de falsificações, a dúvida foi [frequentemente] como um reflexo natural de defesa. "Com tinta, qualquer um pode escrever qualquer coisa" exclamava, no século XI, um fidalgo provinciano loreno, em processo contra monges que armavam-se de provas documentais contra ele. A Doação de Constantino — essa espantosa elucubração que um clérigo romano do século VIII assinou sob o nome do primeiro César cristão — foi, três séculos mais tarde, contestada nos círculos do mui pio imperador Oto III. As falsas relíquias são procuradas desde que as relíquias existem.
No entanto, o ceticismo de princípio não é uma atitude intelectual mais estimável ou mais fecunda que a credulidade, com a qual, aliás, combina-se facilmente em muitos espíritos um pouco simplistas. Conheci, durante a outra guerra, um simpático veterinário que, não sem alguma aparência de razão, recusava-se sistematicamente a dar qualquer crédito às notícias dos jornais. Mas se alguém despejasse em seu ouvido boatos dos mais inverossímeis, deliciava-se.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 90.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Janet e o sentimento de Angústia



Capítulo I – Os sentimentos fundamentais
IV. O sentimento de angústia
Estudaremos agora a terceira série de sentimentos dos quais faremos o resumo, o sentimento de angústia, que é muito importante do ponto de vista social.
Frequentemente tenta-se dar desse sentimento uma definição colocando-o do ponto de vista da consciência, mas este é um trabalho bem difícil. Têm sido propostas expressões como “medo moral”, “dor moral”. Eia aí simples metáforas exprimindo unicamente a ideia de um afastamento do homem diante do mundo exterior.
É preciso, de fato, colocar-se de outro ponto de vista e, segundo nosso método, começar por buscar as circunstâncias nas quais nascem esses sentimentos para, a seguir, fazer a sua análise.
Os sentimentos de angústia surgem sob dois grupos de circunstâncias: os insucessos e as emoções.
A ação dos seres vivos consiste, como vimos, em modificar o mundo exterior, modificações que encontram um estimulante nas manifestações desse mundo exterior. Mas quando a ação se consuma, pode-se perguntar se ela teve êxito ou não, se ela suprimiu as manifestações dificultosas. Nos casos ordinários, é um observador exterior que constata se ação foi ou não exitosa; aqui, o observador somos nós mesmos: este é o ator que representa o papel de observador, e o sentimento de sucesso ou de insucesso modifica a própria ação.
Chamaremos ab-reação uma conduta que consegue modificar o mundo exterior no sentido desejado.
A primeira fonte de angustia se encontra, pois, no insucesso. Passemos agora à segunda fonte: as emoções. Dizemos, há alguns anos, que não há propriamente como falar de ação em uma emoção. Na emoção,dizemos, somos surpreendidos, mas nada fazemos, não agimos: a emoção se traduz pela desordem, pelo desarranjo.
Na verdade, depois da reflexão, podemos dizer que há também na emoção um sentimento de angústia, uma relação com a ação. Mas a parcela de ação é reduzida.
Estabelecidas as origens da angustia, podemos analisar esse sentimento do seguinte modo:
As modificações devidas ao estado de angustia podem ser reduzidas a três tipos principais: modificações viscerais, modificações intelectuais e modificações da conduta ou da ação.
As modificações viscerais, como para todos os fenômenos psicológicos, são inumeráveis no organismo: modificações da circulação, da digestão, da respiração, da secreção, um grande número dessas modificações viscerais foram citadas no livro que publiquei em 1903 à propósito de obsessões.
Do ponto de vista intelectual, constatam-se dois fenômenos postos. De uma parte a inteligência se detém: o indivíduo se torna estúpido, nada mais compreende. Essa parada da inteligência, ora localizada, ora geral, se traduz frequentemente por um retorno a antigos defeitos de pronúncia tais como sotaque ou traços vulgares e também por certas perdas de memória. D’outra parte, constata-se igualmente certa excitação da inteligência.
Da mesma forma, do ponto de vista das modificações da conduta, constata-se ora uma supressão da ação, como nos fenômenos de timidez, uma supressão da marcha, ora certa agitação que se traduz por acontecimentos, uma necessidade de mexer-se, de gritar, de gesticular, de “quebrar tudo”.
A coexistência, desta diminuição da ação e desta excitação, da inibição e da agitação desordenada, produz dificuldades e diversidades nas teorias da angústia que têm sido apresentadas e que devemos agora passar e revista.
As diferentes teorias da angustia se distinguem pela escolha de um fenômeno como essencial: sejam as manifestações viscerais, seja aquela da inteligência, sejam aquelas da ação e da conduta.
As teorias viscerais são muito antigas: elas datam de Descartes e de Malebranche que declaram que a paixão é o contragolpe corporal de fenômenos espirituais.
Em 1860, por Claude Bernard, e em 1884, por Willian James, essas tórias são questionadas e resumidas por esta frase característica de W. James: “sorry because we cry, nós somos tristes porque choramos”.
Tais teorias estão ultrapassadas no momento. Primeiro, porque repousam sobre um círculo vicioso. Se retirarmos da emoção os fenômenos viscerais, diz W. James, não sobra nada. Mas quem admitiu esse postulado de que se constatam apenas fenômenos viscerais? É bem possível que existam outros fenômenos além destes últimos, e então não haveria nenhuma razão a priori para rejeitar certos fenômenos de preferência a outros; e, de fato, há uma imensidade de fenômenos que intervêm na angústia.
Mas a principal razão do fracasso dessas teorias viscerais não está nisso, mas no fato de que esses fenômenos são extremamente banais e quase os mesmos para todos os sentimentos. A propósito disso há um estudo feito em 1905 pelo italiano Montabelli. Esse autor quis estudar os sentimentos opostos como o amor e o ódio, o medo e a coragem, etc. Ele montou vários quadros de modificações orgânicas constatadas nos dois sentimentos opostos: a comparação desses quadros não mostra nenhum antagonismo. Ela mostra, ao contrário, que, para todos os sentimentos, as modificações viscerais são quase as mesmas.
Enfim, esta teoria resulta de um erro frequente de método que consiste em passar de um fenômeno infinitamente complexo a um fenômeno absolutamente simples, no caso presente, de um sentimento à uma modificação fisiológica, e que me lembra a seguinte resposta de um candidato a quem lhe perguntasse o que era sulfato de sódio, a que ele respondia: “É um composto de átomos”.
As teorias intelectuais tentam explicar a angustia pela inteligência; mas a inteligência se manifesta na linguagem, e a linguagem, ela mesma, não é senão a reprodução da ação. De sorte que as teorias da inteligência são intermediárias que se encaminham na direção das teorias da ação.
As teorias da ação foram inauguradas pela escola de Chicago que analisou os fenômenos psicológicos desse ponto de vista. Esta escola mostrou notadamente que na emoção havia mais ação do que se acreditava, ações que se manifestam em certas tentativas de fuga e por golpes de punho e movimentos de maxilares.
Mas a escola de Chicago não observa senão fragmentos da ação. É preciso perguntar-se agora se existe aí verdadeiramente uma conduta particular, nítida e especial, característica da angústia.
Minha resposta será que, no momento em que existe um sentimento novo, há forçosamente uma conduta especial. Nós a chamaremos de “conduta de fracasso”, e podemos constatar que um fracasso sem conduta de fracasso é um fracasso sem angústia. Assim o pássaro que, partindo à procura de um lugar para o seu ninho, cai ferido pela bala de um caçador, não sente angustia, porque, atingido subitamente e sem sabê-lo, não pode ele organizar uma conduta de fracasso. Em uma primeira aproximação, podemos caracterizar essa conduta de fracasso pela expressão “medo da ação”: as angustias descrevem sempre coisas assustadoras onde intervêm ideias de perigo, de morte, de sacrilégio, de crime. Mas se a expressão “medo de um objeto” corresponde bem a algo preciso, a saber a fuga, a que corresponde a expressão “medo da ação”?
Faremos aqui a observação de que, sob o domínio do sentimento de angustia, o indivíduo tem constantemente condutas opostas, seja uma com a outra, seja a seus princípios,seja a seus motivos diretores. É isso o que chamaremos de o fenômeno de condutas inversas.
Isso se explica facilmente. Os fenômenos contraditórios estão sempre associados. Do mesmo modo que fisiologicamente os movimentos do lado direito estão associados àqueles do lado esquerdo, que os movimentos de flexão e de extensão são ligados por músculos antagonistas, o mesmo com nossas ideias: não podemos desejar uma coisa sem ter a ideia da restrição contrária (por exemplo a ideia de comer sem a ideia de não comer). A passagem de uma à outra se faz muito simplesmente pelo medo da ação: ter medo da ação é fazer outra coisa, é afastar-se, é muito facilmente passar ao extremo oposto. Mas como se produz essa ação inversa? Não há outra resposta senão que a parada da ação. Não é bom continuar sem cessar um esforço sem resultados: a parada é a descoberta da inutilidade da ação, é a reação ao fracasso. Não é a parada parcial da fadiga; é a parada completa, definitiva, que suprime radicalmente o desejo.
Detêm-se assim as forças mobilizadas que será preciso empregar em outro objetivo. Será preciso inventar outras ações, e isso em más circunstâncias. É algo bem difícil. Haverá como resultado dessas forças não empregadas, numerosas desordens viscerais e intelectuais.
Reta um último problema. Como relacionar a esta explicação de angústia a emoção, pois que o fracasso supõe uma multidão de ações prévias.
A resposta é que a emoção é uma reação antecipada. Se colocarmos nas mãos de um indivíduo uma grande bola, depois uma pequena bola, ambas de mesmo peso, o homem declara sempre que a maior é a mais leve. É uma reação antecipada. Ele sabe que não deve concluir que ela é mais pesada porque é maior, e cai no excesso contrário. Do mesmo modo, a emoção é uma reação antecipada que se produz antes dos motivos que são imaginados de antemão. Na realidade, a reação de fracasso deveria ocorrer após o insucesso do esforço; os espíritos emotivos se enganam. Eles reagem mais cedo. A emotividade é, pois, um hábito moral de reagir ao fracasso muito cedo, porque nos julgamos muito fracos diante da dificuldade da ação. A emoção é também e, sobretudo, uma reação grosseira, elementar, que suprime as condutas superiores e que reduz o espírito às condutas mais primitivas, mesmo às simples condutas convulsivas.

Tradução da parte IV do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.


quarta-feira, 18 de abril de 2018

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O diagnóstico de Cervantes

O diagnóstico de Cervantes

sábado, 14 de abril de 2018

O diagnóstico de Cervantes “Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo.”

O diagnóstico de Cervantes

 
Miguel de Cervantes, falando de seu Dom Quixote.

Era uma vez um quando em que as coisas eram tão singelas que a gente simplesmente escrevia. Do outro lado, alguém nos encontrava. Não nos estranhávamos. Nem eu à minha escrita, nem o leitor ao que lia. Antes nos reconhecíamos.
Mas esse quando passou, ou desapareceu, ou não está mais ao alcance da minha consciência. Foi substituído por este presente incerto, instável, onde as coisas não são o que parecem ser. Nem as pessoas. Estas se me afiguram tão irresgatáveis quanto as palavras, aquelas que então livremente seguiam escrita afora, sem medo algum de serem distorcidas. Com prodigalidade, apareciam enfileiradas atrás do cursor ou da ponta do grafite macio que gosto de usar na lapiseira deslizante sobre o papel. Esse detalhe importa ao leitor? Acredito que sim. Explico. Cervantes encerra seu Dom Quixote assumindo o herói que nascia dele, para praticar as ações que ele escrevia com uma pena de avestruz que nos é descrita como grosseira e mal aparada. E isso então não prova que se escreve mais pela escrita em si do que pelas ideias? Eis uma tese não mais esdrúxula do que muitas que nos cercam.
Falo, enfim, de um quando nostálgico: eu nem sabia o que ia escrever, e a escrita acontecia. Não era necessário ser calculista. Não era necessário ser metódico, nem dizer precisamente alguma coisa comprometida com um sentido qualquer. Porque quem confere sentido ao que lê é o leitor. Tampouco era preciso anunciar de antemão exatamente do que se ia falar nem como se ia falar desse quê, para, finalmente, concluir alguma coisa.
O leitor sempre me adivinhava. Reconhecia aquelas pistas secretas escondidas entre pontos, vírgulas e travessões. Hoje duvido do que reconheço nesse real proteiforme. Porque me assustam as mudanças de humor quixotescas nas quais se precipita uma gente que, até bem pouco, me parecia tão normal. É. Normal. Tipo assim: previsível, ponderada, receptiva às linhas que minha escrita deixava atrás de si. Mas não. Deparo-me com gente que ataca ideias com o mesmo ímpeto do herói de Cervantes, quando ele investia contra moinhos de vento.

A outra opção seria a minha anormalidade e não a dos outros. Será? Longe de mim descartá-la. Mas não. Aliás, faz tempo que eu não surto. Vai ver são os hormônios repostos que impedem as terríveis oscilações onde calor e frio se alternam com sorrisos e lágrimas. Até que sou estável. Então, resta-me desconfiar do resto do mundo, que não se deixa resgatar de quando algum.
Confesso que tenho experimentado uma brutal falta de referências para me relacionar em um ambiente que se bipolariza. Mesmo vivendo em um estado da federação onde as coisas são muito coloradas ou muito gremistas, onde a identidade não é um conceito, mas uma prática cotidiana que se evidencia no sotaque, no mate, no vestuário. Posso conviver sem maiores estranhamentos com tais hábitos, ainda que com eles não me identifique. Sou tolerante. Só que ultimamente...
Talvez nem devesse escrever isso. Mas como o leitor é sempre uma referência querida, fico a imaginar que talvez haja mais gente que às vezes se sinta à parte do resto do mundo. Afinal, por que devo estar posicionada estrategicamente aqui ou lá? Alienada não sou. Jamais me alienaria de minhas contradições, renunciando a qualquer coisa ou a qualquer afeto meu em nome de uma coerência que me fosse estranha, de uma natureza que não fosse a minha. Podemos experimentar ideias e palavras, tanto quanto podemos, ― talvez mesmo devamos ―, exercitar a alteridade. Ser um pouco o outro e descobri-lo como a um personagem. Eu até tento. Mas a obviedade que tenho descoberto por aí me desanima profundamente, porque moldada sobre uma lógica meramente ideológica, que não dá lugar aos pesos e às medidas ditadas por nossos afetos. Uma lógica pobre, que investe pesadamente em um arsenal demagógico e vazio. Há ideologias alienantes por si próprias, uma vez que continuamente nos posicionam frente a um inimigo. Porque — diz-se — toda política requer um inimigo, um adversário, algo a combater.
Claro, aí penso em Dom Quixote, em cuja história, todavia, eu não me encaixo. Careço de donzelice para ser Dulcineia. Para Sancho Pança, falta-me o jumento, a pinta de patriarca, a expectativa de governar uma ilha. Sobra-me, então, Rocinante? O eterno companheiro de todos os caminhos e carreiras percorridos pelo romântico, mas obtuso herói, que recomendou expressamente jamais fosse este seu cavalo esquecido por nenhum cronista de sua história. Toda essa comparação me ocorre porque Dom Quixote é um personagem anacrônico. Em plena Renascença ele vivia uma fantasia medieval, imerso em um doce romantismo de cavalaria, idealizando o mundo e a mulher amada. Inofensivo, no caso dele. Mas iludido. Sinto o resto do mundo que me cerca um pouco assim. Singularmente irracional, crédulo, presa fácil de frases de efeito, não raramente reducionistas e pretensiosas. Nem sempre, porém, inofensivas. Talvez sejam ainda os encantamentos, as pendências, as batalhas, os desafios, as feridas, os requebros, os amores, as tormentas e, enfim, ― por que não? ―, os tais disparates impossíveis.

Não falo apenas do que vemos hoje mais perto de nós. O mundo inteiro parece estar polarizado moralmente, como se todos reagissem a ameaças potencialmente identificadas com outro que, em tese, é diferente, ou hostil, ou por qualquer razão nos parece como tal. Armagedom: entre o bem e o mal. O tempo como referência desaparece. Porque ele não empresta mais aos fatos um sentido, uma coerência interna, sistemática. Falo de quando havia o antes e o depois. Hoje vivemos uma realidade que materializa o que foi uma vez a asserção metafísica que afirmava que são os efeitos que criam as suas próprias causas, e não o inverso. Porque as coisas podem, finalmente, ser exatamente o que queremos que elas sejam, e motivadas por elementos que nos damos ao luxo de escolher. Inventamos uma nova razão que se parece demais àquela que enfeitava a nossa infância narcísica, quando então tudo e todos conspiravam para que não nos frustrássemos. Heróis desse agora com cavalos que falam uma língua que não é necessário aprender, porque ela sempre nos diz aquilo que desejamos ouvir.
Percebo-me como alguém fora do tempo, como habitante de um planeta onde a até espacialidade já sucumbiu. Tudo acontece aí simultaneamente, mas não consigo mais encontrar o conforto de algum outro que não me venha cheio das novidades de um amanhã que acontece agora. Não encontro mais em ninguém — nem em você talvez — aquele distanciamento filosófico mágico que pode situar a dialética em polos que não precisam, necessariamente, nos polarizar também, absorvendo-nos, a nós e à nossa liberdade que pode, sim, não ser senão renúncia.
Queria mesmo era poder conversar sobre essas coisas sem que elas signifiquem coisas minhas ou suas. Apenas almejo a liberdade de primeiro contemplar e depois, quem sabe, entender não causas e consequências lineares, mas todo esse imenso processo que nos transforma em delicados que alguém divide, alistando-nos uns de um lado, outros de outro, designando ódios recíprocos, temperados com rancores amargos, desenterrados de memórias imprecisas, obedientes a interesses.
Penso sempre que o que se perde nesse desgaste é irrecuperável, porque não se trata de literatura, de idealidades. Porque nos leva pessoas, nos subtrai amigos, nos força a conviver com gente que nos estranha e que estranha inclusive a si mesma. O diagnóstico de Cervantes é apenas metáfora. E não há o que fazer, porque a realidade não pode competir com sonhos e fantasias. Ela recua, humildemente, por vezes não encontrando sequer um aonde ir ou ficar, buscando enfim esse quando do qual me perdi um dia. 




Autor: Maristela Bleggi Tomasini

terça-feira, 10 de abril de 2018

domingo, 8 de abril de 2018

Janet e o sentimento de fadiga

Capítulo I – Os sentimentos fundamentais
III. O sentimento de fadiga
Passemos agora ao sentimento de fadiga, que aparece muito frequentemente no retardo da ação, na tristeza, etc.
Estudou-se por um longo tempo a fadiga com grande interesse; depois, abandonou-se este estudo, na falta de não se haver colocado adequadamente a questão.
Nos estudos que foram realizados, houve preocupação com três pontos principais:
1º ― O sentimento de fadiga considerado como fenômeno puramente espiritual.
2º ― O esgotamento, ou seja, as manifestações do corpo na fadiga. O esgotamento correspondeu do ponto de vista fisiológico, à fadiga considerada do ponto de vista psicológico.
3º ― Os fenômenos de repouso.
O segundo ponto, o esgotamento, é o que foi mais estudado. Realizaram-se estudos sobre as funções viscerais. Constataram-se modificações na digestão, na respiração, nos movimentos cardíacos, modificações musculares. Observou-se que os movimentos eram alterados, incorretos, enfraquecidos. Estabeleceram-se curvas da fadiga com o auxilio de aparelhos registradores (ergógrafos). Estudaram-se modificações das operações aritméticas, correções de provas de impressão, prolongadas ao longo de horas consecutivas. Consultem sobre isso as obras de Galton: ele sinala, por exemplo, que o rubor de uma orelha seguido imediatamente após de palidez é um sinal certo de fadiga. Do mesmo modo, quando uma orelha está vermelha e a outra branca. Todas essas observações de modo algum resolveram o problema. A psicofisiologia não porque ficamos fatigados.
Aliás, o esgotamento pode se manifestar sem estar acompanhado de trabalho e dispêndio de forças: por exemplo, na febre tifoide e muitas outras doenças.
Existem, neste método, muitas confusões que há muito tempo vêm desorientando os pesquisadores. O fenômeno do repouso, por exemplo, que se relaciona à fadiga, não se relaciona ao esgotamento ou pelo menos não é dele um elemento.
De outro ponto de vista, o esgotamento é passivo enquanto a fadiga é uma conduta ativa. A gripe me esgota, não obstante eu nada faça para esgotar-me: a fadiga é voluntária. Nós nos interrogamos, nos perguntamos se daremos continuidade à ação ou se a deteremos, tomando uma decisão. Administramos, paramos, ou bem damos continuidade à ação, mas se quisermos e como quisermos. O esgotamento passivo pode ocorrer ao mesmo tempo em que a fadiga, mas a fadiga em si tem sempre um caráter ativo.
Uma importante consideração, que vai esclarecer essas questões, é a existência de delírios de fadiga. Há, primeiro, delírios negativos, nos quais se nega o sentimento de fadiga, ou mesmo, às vezes, ela não existe realmente. Permite-se, então, praticar uma grande atividade que termina em esgotamento, mas que, como se verá, é inteiramente desprovido do sentimento de fadiga. Por outro lado, há pacientes que se dizem a si próprios e que se sentem terrivelmente fatigados, e não apresentam, todavia, nenhum dos sinais fisiológicos característicos do esgotamento. Existe aí uma mentira? Seria esta uma explicação verdadeiramente muito simples e fácil demais.
Como então considerar o problema? Devemos nos colocar no ponto de vista ativo e, acima de tudo, examinar o ato de repouso, que é o fenômeno essencial da fadiga.
Na fadiga há uma certa conduta. Quando regulamos nossas ações, intervimos ativamente não apenas pelo esforço, mas pelo repouso, pelo desejo, pelo pensamento do repouso. A conduta do repouso transforma a ação principal: é uma conduta de parada, de supressão desta ação primária. Sabe-se que a ação é desencadeada por uma excitação, uma simulação. Quando e por que ela se detém? Ele desaparece primeiro se a estimulação exterior desaparece ela mesma. Ela desaparece ainda se a carga da tendência for suprimida. (Um exemplo deste último caso é aquele de um epiléptico que se esgota após o acesso). Essas explicações são válidas para os casos mais simples, mas não para condutas superiores e ações complexas. Estas são acionados por múltiplas causas que não desaparecem todas de uma só vez. Por outro lado, o esgotamento de forças raramente é completo; o esgotamento epiléptico é uma exceção. Lembremo-nos da intervenção do esforço contínuo, que ajuda a ação graças ao concurso de todo o corpo, e das cargas de outras tendências além da tendência principal. Para deter essas ações complexas, uma conduta de parada deve, portanto, intervir: a fadiga é essa conduta especial de parada da ação.
É preciso observar que na fadiga há apenas uma parada momentânea: é uma pausa, um freio, mas não uma parada definitiva sem intenção de retomada. A tendência principal não é, pois, suprimida na fadiga. É uma simples suspensão depois da qual se deve poder retomar a ação interrompida: por exemplo, se estivermos fatigados da leitura de um livro, nós o colocamos de lado, mas não o atiramos no fogo.
No que se torna, então, a ação primária transformada pelo sentimento? Outra ação deve se apoderar da carga que a primeira ação colocou em jogo: a ação primária é substituída, na fadiga, pela ação, ou melhor, pelas ações, isto é, a conduta de repouso. É necessário saber repousar, tomar as atitudes apropriadas, que não são as mesmas atitudes convenientes para todos, que não são as mesmas para todos os casos nem para todos os indivíduos. A atitude de descanso não é aquela do coma. Não se repousa na caminhada como no estudo, de uma subida como da dança ou da execução de um trecho de piano. É necessário calcular a quantidade ações que constituem a conduta do repouso. Se o repouso for mal planejado, haverá desordens, distúrbios e até agitação. Ao contrário, se repousarmos bem, se o repouso for bem planejado, não haverá perturbações, mas uma recuperação de forças.
Se o sentimento de fadiga se traduz pela prática de uma conduta particular, ele deve ter sua utilidade. Qual a razão de ser desta conduta de repouso? A fadiga e o repouso são precauções contra o esgotamento. O esgotamento é um mal que é necessário evitar. Os homens bem ajustados conhecem os indícios, os ligeiros sinais precursores do esgotamento e, antes mesmo de sentirem este último, eles o previnem pela conduta do repouso.
Como se produz a reação do repouso, o sentimento de fadiga? De um modo provavelmente variado ao infinito e que depende de casos e de indivíduos. Existe a questão de ajustados e desajustados: para-se às vezes a tempo, frequentemente muito cedo ou muito tarde. O repouso é então de qualidade muito diferente conforme pessoas e circunstâncias. Cada qual acredita conhecer os sinais da fadiga, os problemas que surgem na realização da ação primária, mas qualquer um pode errar aqui e, muito frequentemente, erros são cometidos.
Uma desordem na ação primária seria então o ponto de partida comum ao esforço e à fadiga. Esses dois sentimentos tão diferentes teriam a mesma origem! Por surpreendente que seja, devemos admitir esta solução. Mas é preciso evitar confundir por isso os dois sentimentos: é apenas no ponto de partida que se assemelham, nada mais.
A reação do esforço se produz primeiro frequentemente. Depois, se o esforço não corrige as perturbações da ação, uma segunda reação, aquela da fadiga e do repouso, intervém então. Por exemplo, depois de haver caminhado muito, frequentemente se tropeça: começa-se a fazer um esforço para não mais tropeçar; se este esforço falha, então se pensa na fadiga, no repouso: paramos um instante.
A fadiga substitui, pois, o esforço pela parada, a suspensão. O interesse, em vez de aumentar, diminui. O esforço tem, nesse ponto, consequências opostas às da fadiga. Lembremo-nos das experiências feitas com ciclistas que são obrigados a correr durante horas consecutivas: vê-se o interesse aumentar, diminuir, desaparecer, segundo haja esforço ou fadiga mais ou menos grandes.
A sensação de fadiga pode ser combinada com outras condutas, de onde múltiplas variedades. Se houver desejo, e a ação cessar nesse momento, a sensação de fadiga se torna a sensação de desgosto.
Se a fadiga se produz no final da ação, há sentimento de indiferença, término da ação sem gozo, sem prazer nem triunfo.
A preguiça é uma fadiga particular, que se relaciona com certas ações que se executa sem prazer.
Poderemos examinar muitas outras variedades interessantes da fadiga, fadiga resultante da atenção, da vigília, do jogo, etc. Todas essas variedades se relacionam à mesma conduta fundamental: a parada momentânea da ação pela conduta do repouso.

Tradução da parte III do capítulo I :  Os sentimentos fundamentais

JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.

À sombra das maiorias silenciosas

a partir do século XVIII, e particularmente depois da Revolução, que
o político se infletiu de uma maneira decisiva. Ele se encarrega de uma
referência social, o social se apodera dele. No mesmo momento começa a
ser representação, seu jogo é dominado pelos mecanismos representativos
(o teatro segue um destino paralelo: torna-se um teatro representativo - o
mesmo acontece com o espaço perspectivo: de instrumental que era no
início, torna-se o lugar de inscrição de uma verdade do espaço e da
representação). A cena política se torna a cena da evocação de um
significado fundamental: o povo, a vontade do povo, etc. Ela não trabalha
mais só sobre signos, mas sobre sentidos, de repente eis que é obrigada a
significar o melhor possível esse real que ela exprime, intimada a se tornar
transparente, a se mobilizar e a responder ao ideal social de uma boa
representação. Mas durante muito tempo ainda haverá um equilíbrio entre a
esfera própria do político e as forças que nele se refletem: o social, o
histórico e o econômico. Este equilíbrio sem dúvida corresponde à idade de
ouro dos sistemas representativos burgueses (a constitucionalidade: a
Inglaterra do século XVIII, os Estados Unidos da América, a França das
revoluções burguesas, a Europa de 1848).
É com o pensamento marxista em seus desenvolvimentos sucessivos
que se inaugura o fim do político e de sua energia própria. Nesse momento
começa a hegemonia definitiva do social e do econômico, e a coação, para
o político, de ser o espelho, legislativo, institucional, executivo, do social. A
autonomia do político é inversamente proporcional à crescente hegemonia
do social.
O pensamento liberal sempre viveu de uma espécie de dialética
nostálgica entre os dois, mas o pensamento socialista, o pensamento
revolucionário postula abertamente uma dissolução do político no fim da
história, na transparência definitiva do social.
O social triunfou. Mas a esse nível de generalização, de saturação,
em que só há o grau zero do político, a esse nível de referência absoluta, de
onipresença e de difração em todos os interstícios do espaço físico e
mental, o que se torna o próprio social? É o sinal de seu fim: a energia do
social se inverte, sua especificidade se perde, sua qualidade histórica e sua
idealidade desaparecem em benefício de uma configuração em que não só
o político se volatilizou, mas em que o próprio social não tem mais nome.
Anônimo. A MASSA. AS MASSAS."

BAUDRILLARD


Fonte: BAUDRILLARD, Jean. À SOMBRA DAS MAIORIAS SILENCIOSAS. O fim do social e o surgimento das massas. Tradução: Suely Bastos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1885, pp. 11-12.

quinta-feira, 5 de abril de 2018