Fon-Fon! Rio de Janeiro, ano X, n. 1, 1° jan. 1916, p. 49
Clovis Bevilacqua
Clovis Bevilacqua nasceu em 4 de
outubro de 1859, em Vila Viçosa, Ceará. O destino, que lhe reservou a
imortalidade na cadeira n. 14 da Academia Brasileira de Letras, da qual foi um
dos 40 fundadores, fez dele um destacado jurista. Coube-lhe, ― talvez como feito
de maior alcance histórico ―, na gestão de Campos Sales, por convite do então Ministro
da Justiça Epitácio Pessoa, em 1899, a autoria do projeto do primeiro Código
Civil Brasileiro, concluído em 1900, mas que só viria à luz em 1916. A demora
merece algumas considerações, justificadas, mesmo aqui, tanto pela relevância
dos personagens implicados quanto pela dimensão que o assunto tomou.
O projeto do Código Civil e a polêmica com
Rui Barbosa
É que o projeto, encaminhado ao
Congresso Nacional, teve como relator, no Senado, Rui Barbosa, que demorou longo
tempo para concluir seu parecer, ocupando-se, ao que parece, menos da matéria
jurídica do que da gramatical, a ponto de essa circunstância ter sido
considerada “um mistério para o historiador” (MAGNE, 1949, p. XV). Examinando
seu parecer, tomado às suas obras completas publicadas em 1902, encontra-se
que, dirigindo-se aos senadores da Comissão, se disse impressionado pela
negligência da forma, que se interpunha entre ele e o legislador como um véu ou
mesmo um tropeço:
Quando a frase é simples e
pura, através dela penetra diretamente a inteligência ao encontro do pensamento
escrito. Mas se ele se desvia da expressão natural e correta, forçosamente se
há-de transformar a leitura em tedioso esforço de crítica e decifração, a que a
redação das leis não deve expô-las, se as quer entendidas e obedecidas.
Aos meus primeiros reparos,
supus não passassem de leves e raras jaças na superfície de imensa gema
despolida. Mas tanto se repetiam, que principiei a assinalá-las para orientação
minha, e afinal não sei se houve página da brochura, onde não tivesse que
notar. Compreendi então que ao trabalho jurídico, vasto e notável, bem que
defeituoso e incompleto, da câmara trienal, estava por dar ainda, quase
inteiramente, a mão-d'obra literária. (BARBOSA, 1949, p. 1-2).
Mesmo as discussões a propósito da forma
chegavam à imprensa. Assim a manifestação de Candido de Figueiredo (1913, p. 8)
no Jornal do Comércio, sobre adjetivos advérbios na língua portuguesa. Ele relata-nos
que Ruy teria observado não ser razoável a substituição do adjetivo adverbial independente por independentemente pretendida por Clovis, evitando-se a forma
puramente adverbial.
As críticas de Ruy repercutiam,
portanto. Clóvis, inconformado, chega a escrever um livro a propósito das
críticas, em cujo prólogo, registra:
Por um lamentavel desvio da critica, versou a discussão
muitas vezes entre nós, sobre questões de estylo e grammatica. Fugi o mais
possivel de envolver-me nessa contenda bysantina que um só resultado poderia
ter: ― o de perdermos um tempo consideravel e precioso, si não a opportunidade
de obter a passagem do Codigo civil no Congresso. Mas era impossivel ficar
quieto, imperturbavel, quando a picareta impiedosa, derrubando a caliça e
levantando nuvens de poeira fingia estar solapando a construcção (BEVILACQUA,
1906, p. X).
Todavia, se aproximarmos bem os
fatos, não parece razoável supor que a oposição ferrenha de Ruy à aprovação do
projeto tenha se devido, exclusivamente, às suas discordâncias quanto à forma. Considere-se,
a propósito que “Clovis
Bevilacqua recusou ser ministro do Supremo (por duas vezes), ser governador de
seu Estado e, por fim, a representar o Brasil em Haia. Rui Barbosa acabou sendo
o representante do Brasil naquela conferência” (NEDER, 2002, p. 7).
Tentador, então, especular se “tal fato, também seguido do convite e aceitação
por parte de Rui Barbosa para comparecer ao Congresso de Haia, servem-nos como
indícios desses sentimentos e ressentimentos aqui analisados” (RODRIGUES, 2011,
p.4).
Seja como for, ao menos é preciso
considerar que houve ainda obstáculos de outra ordem, que não a gramatical, que
Ruy não hesita em arguir. Assim, por exemplo, a publicação no matutino carioca
“A Época”[1],
de circulação diária, lemos sobre o que teria sido a formidável oração de Rui
proferida véspera, diante do Senado, a propósito do Código, ao analisar e
apreciar a situação política. O título da matéria é longo. Dir-se-ia pomposo,
tão ao gosto da época: “No Senado o sr. Ruy
Barbosa conclue sua formidavel oração. A proposito do Codigo Civil, analysa e
aprecia á situação politica, perorando brilhantemente” (NO SENADO, 1912,
p.5). Rui, que se atrasara, inicia seu discurso de duas horas, criticando a “celeridade com que se procura fazer votar o projecto”
(id., Ibid.). Ele também teria analisado a situação que considera anárquica e
que o país vinha atravessando, imprópria, portanto, à codificação de leis. A
longa fala detém-se sobre as experiências históricas de outras nações relativas
à codificação de suas leis civis: a da França, menos demorada, com Napoleão; as
melhores, Alemanha e Suíça. Rui insiste no fato de que a celeridade que se
desejava então dar à votação era absurda. “Cada
um dos codigos civis custou destarte ao seu paiz quase um quarto de seculo de
assiduo e continuo labor” (id., ibid.). Ele não hesita em qualificar a pressa
como obsessão, ideia fixa, mesmo uma monomania de celeridade.
Mas havia, na contramão, interesse
na celeridade. Em 7 de fevereiro de 1913 lia-se no Correio Paulistano que o
marechal Hermes da Fonseca assinara, naquela mesma data decreto para convocação
extraordinária do Congresso Nacional para reunir-se no dia 2 de abril vindouro,
em sessões extraordinárias provocadas pela “urgencia
que tem o Congresso de ver discutido e approvado o Codigo Civil Brasileiro”
(CONVOCAÇÃO, 1913). Nas muitas sessões públicas que se seguiram, Clóvis
defendeu seu trabalho.
Dias antes da transformação do
anteprojeto no Código Civil Brasileiro que vigorou até 2002, em 1º de janeiro
de 1916, Paulo de Lacerda (1915, p. 3), publica, no dia de Natal, artigo que
repercutiu mesmo passadas quase duas décadas de sua publicação[2].
Tratou-se de uma longa síntese que enfatiza o estado no qual se encontrava a
legislação civil: “Afogada no accumulo, cada vez
maior, de uma legislação polychroma, confusa e contradictoria, que se vinha amontoando
desde seculos, em sahir da tão mortificate balburdia consistia uma das suas
arentes aspirações” (id., ibid.). O articulista trata então das quatro tentativas
anteriores de codificação[3],
até que, em fins de janeiro de 1899, Campos Salles retoma a ideia do Código e
nomeia, para redigir o projeto que lhe serviria de base, o jurista Clóvis
Bevilacqua “que desde alguns anos vinha logrando
saliente posição entre os juristas patrios” (id., ibid.). Sua escolha,
assim, teria sido acertada, porque
[...] o eminente professor da Faculdade de Direito do
Recife, alem de possuir, já naquella época, vasto cabedal de estudos, cimentado
pela argamassa preciosa do traquejo adquirido em assíduo magisterio, é de alma
refractaria ás vanglorias do espirito, ao mesmo tempo combativo e tolerante,
sem arestas ferinas e sem opiniões irreductiveis, e carater que não se sente
apoucado reconhecendo o melhor (LACERDA, 1915, p. 3).
Muitos elogios, sim. E merecidamente, diga-se.
[1] Bruno
Brasil (2014), conta-nos que “A Época” circulou no Rio de Janeiro de 1910 a
1919 e se posicionava contra hábitos que considerava provincianos e que
atribuía à imprensa de então. Refinada e galante, não apenas publicava artigos
sobre moda e cultura, mas ainda tratava de questões sociais e trabalhistas.
Fazia oposição ao governo de Hermes da Fonseca e do PCR (Partido Republicano
Conervador), particularmente em 1913, quanto intensifica os ataques ao PRC. Em
1914, já sob o governo de Wenceslau Brás, aplaudia a atuação de Rui Barbosa. [BRASIL,
Bruno. A Época (Rio de Janeiro, 1912). BNDiginal, Artigos. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-epoca/>. Acesso em:
25 nov. 2018.]
[2]
A Revista Fon-Fon! ― semanário que circulou no Rio de Janeiro de 1907 a 1945, de
amplo repertório temático para registro de hábitos socioculturais do que fora a
belle époque brasileira (ZANNON,
2005, p. 18) ― publicou, em 1933, artigo no qual Hormino Lyra (1933, p. 50)
qualifica como magistral esse artigo que Paulo Lacerda escrevera em 1915.[ZANON,
Maria Cecilia. Fon-Fon! – Um Registro Da Vida Mundana No Rio De Janeiro Da
Belle Époque. In: UNESP – FCLAs – CEDAP, v.1, n.2, 2005 p. 18. Disponível em:
< file:///C:/Users/user/Downloads/18-644-1-PB%20(1).pdf>.
Acesso em: 28/11/2018.] [LYRA, Hormino. Commentarios. Fon-Fon!, Rio de
Janeiro, ano XXVII, n. 6, 11 fev. 1933, p. 50.]
[3] A
primeira, de Teixeira de Freitas, em 1859, que não teria passado de um longo e
exaustivo esboço, com quase cinco mil artigos e, ainda assim, incompleto mesmo
em 1872, quando é dado por pronto. A segunda foi de Nabuco de Araújo, que
faleceu, deixando um rascunho que apenas ele poderia interpretar. A terceira,
de Felício dos Santos, e teria consistido em apontamentos oferecidos ao governo
em 1881, mas que, submetidos a exame, foram censurados por uma Comissão
Ministerial nomeada por Souza Dantas e composta, entre outros, por Lafayette
Rodrigues Pereira. Pelo parecer da comissão, o documento carecia de método
apropriado à codificação. Ainda assim, a tentativa de aprovação prossegue até
que o próprio Felício, em 1882, retira o projeto da comissão, oferecendo-o à
Câmara dos Deputados onde, apesar da aprovação de diversos deputados, morre
esquecida na Comissão de Justiça. Em 1889, Cândido de Oliveira, então Ministro
de Justiça, nomeia outra comissão para tratar do assunto, mas ela é dissolvida
com o advento da República. Assim, em julho de 1890, a tarefa é conferida a
Coelho Rodrigues, com prazo e três anos. Apresentado o projeto em 1893, o
projeto é rejeitado por Floriano Peixoto. No Senado, para onde foi por
oferecimento do autor, o projeto suscita debates que resultam em sua adoção,
porém, uma vez remetido à Câmara, não teve seguimento “dando pasto a discussões
azedas e a forte polemicas” (LACERDA, 1915, p. 3), em que pese a defesa de
Coelho Rodrigues “com energia e brilhantismo” (id., ibid.). O trabalho de 2.734
artigos teria sacrificado as tradições jurídicas do pai e assimilado direito
estrangeiro. Todavia, o cronista salienta que, caso submetido a cuidadoso
exame, poderia atender às reivindicações da crítica. Mas assim não foi e
“desfez-se a quarta tentativa, castigada sob os vagalhões da polemicas, não
raro, mais apaixonadas que sinceras” (id., ibid.). [LACERDA, Paulo de. O Codigo Civil (synthese). Jornal
do Commercio, Rio de Janeiro, ano 89, n. 358, 25 dez. 1915, p. 3.]