Sob o título provocante de La
fascination du crime: la jeunesse est pourri, a
edição dominical do extremista e provocador Le
Matin publica uma entrevista realizada com Scipio Sighele (1908, maio 5),
então de passagem por Paris para o lançamento de sua Littérature et criminalitté. O entrevistado começa por expor
preliminarmente que ainda havia quem se espantasse com o fascínio que o público
dedicava às narrativas criminais, delas buscando detalhes nos jornais com
mórbida curiosidade dia a dia crescente. “Todavia — adverte o entrevistado —,
um observador calmo e sincero da psicologia coletiva não partilha dessa opinião,
que se pretende moral, mas que é apenas ingênua” (id., ibid.). Para Sighele,
seria já conhecida a atração que a alma humana experimentava quando diante do
que chamou de o espetáculo do mal e por tudo aquilo que havia nisso de terrível
e de perverso, muito mais do que se mostrava atraída pelo que havia de simples
e honesto no mundo, confirmando a lenda bíblica segundo a qual os frutos da
árvore do mal seriam bem mais saborosos que aqueles da árvore do bem. E mesmo a
história pouco se deteria sobre as pessoas obscuramente calmas, tranquilas,
admiradas em silêncio talvez, mas não sem “esta leve tinta de ironia com a qual
se observa no mundo aquilo que é simples, normal e são” (id., ibid.). Porque —
explica —, a monotonia dessas figuras prosaicas não provocava nossa imaginação,
em busca de figuras mais ousadas, mais singulares, audazes, que provocassem
“por seu renome, a inveja; ou, por sua audácia, o frisson do medo; ou, por sua
perversidade, o espasmo do horror” (id., ibid.). Não se deveria, contudo,
deplorar esse fenômeno, mas antes estudá-lo, — recomenda —, buscando aí uma
razão nem mórbida nem vulgar para esse prestígio do mal, para esse apaixonado
interesse, ávido de detalhes, que despertam as narrativas criminais. Sighele aí
encontra um sentimento inconfessado que se teria ao estudar os crimes, porque
nestes estudaríamos a nós mesmos, tudo porque os crimes iluminariam a alma de
cada época, refletindo a vida e os costumes vigentes, como “símbolo patológico
de tudo aquilo que hurra no fundo de nosso coração, de tudo aquilo que freme
nas células de nosso cérebro” (id., ibid.). Bastaria, para convencer-se,
comparar a criminalidade antiga com a moderna para encontrar, nos culpados de
cada tempo, as influências de cada época manifestas na própria infâmia de seus
crimes. Assim, — explica —, as civilizações primitivas baseadas na força
comportavam crimes violentos; as que se desenvolviam na base da astúcia
estimulavam os embustes; as que se erguiam sobre o domínio econômico, sobre o
poder do dinheiro, desenvolveriam uma criminalidade antes cerebral que
muscular, procedendo “por meios insidiosos e obscuros: o roubo, a fraude e a
falsidade” (id., ibid). De modo que não seriam apenas os meios materiais que
mudariam com a criminalidade no tempo: mudaria também sua orientação moral. As
tintas religiosas que coloriam os delitos medievais cometidos sob o terror
inspirado pelo além, revelavam tendências criminais de desequilibrados e
loucos. Disso, porém, não se deveria concluir, — “como ousaria pretender algum
míope reacionário” (id. ibid.) —, pela responsabilidade da teologia ou da
Igreja. Antes seria mister constatar que “por um fenômeno natural e universal
de mimetismo, o crime conforma-se às diferentes épocas e às diferentes atitudes
do pensamento humano e sofre a influência das condições do meio histórico”
(id., ibid.). Feitas tais observações, Sighele se propôs a responder à pergunta
do Le Matin, que consistia em saber
qual era, naqueles dias, a característica mais evidente da criminalidade. Ele
respondeu que vinha a ser, para ele, não apenas na França como também em todo o
mundo tido por civilizado, o enorme e inacreditável aumento da delinquência de
menores, verdadeiro exército criminal composto de crianças com menos de dezoito
ou de vinte anos que aumentava dia a dia naquele início de século. Afirmou: “É
a juventude que está doente! É a juventude que apodrece! É essa doença que se
apodera de nossas crianças e que não se manifesta apenas no crime, mas também
no suicídio” (id., ibid). A última colocação se explicaria pelo incremento do
suicídio infantil, quando aos quinze, aos dez, e mesmo aos seis anos essa
prática crescente denunciava o indelével sofrimento daquelas almas levadas a
uma ação fatal. Sighele coloca não lhe ser possível, em um artigo de jornal,
examinar detidamente as causas desse fenômeno. A mais importante delas,
contudo, seria o fato de as crianças entrarem muito cedo na vida, vivendo como
adultos, desde logo experimentando o que chamou de contragolpes do destino,
experimentando preocupações de deveriam ignorar. Tudo enfim —, diz —, lhe
parecia abreviar-se no mundo físico e no mundo moral, de sorte que a própria
infância abreviava-se também debaixo da que seria a nossa lei soberana: a
pressa. Abolir o máximo possível e no que possível fosse “esses antigos
obstáculos que se chamam tempo e espaço, eis o objetivo rumo ao qual corremos
vertiginosamente, eis o ideal do qual nos orgulhamos” (id., ibid). E completa
dizendo que estaríamos “a caminho de abolir ou, no mínimo, castrar a infância”
(id., ibid). E assim como os adultos estariam ficando velhos antes do tempo,
também as crianças estariam se tornando homens cedo demais: impulsionadas por
sensações superiores à sua idade, “faziam-se homens pelos desejos e pelas
paixões, não pela força e pela constância” (id., ibid). Tal a antinomia que,
para Sighele, afetava a alma infantil, predispondo-a ao suicídio e ao crime em
um século, — afirma — onde não se teria mais tempo de ser jovem.
Referência: Sighele, S. (1908, maio 5). La fascination du crime: la
jeunesse est pourri . Le Matin :
derniers télégrammes de la nuit, ano 25, n. 8860, Paris, capa.
Imagem: BNF