sexta-feira, 19 de abril de 2019

A Fascinação do crime

Sob o título provocante de La fascination du crime: la jeunesse est pourri, a edição dominical do extremista e provocador Le Matin publica uma entrevista realizada com Scipio Sighele (1908, maio 5), então de passagem por Paris para o lançamento de sua Littérature et criminalitté. O entrevistado começa por expor preliminarmente que ainda havia quem se espantasse com o fascínio que o público dedicava às narrativas criminais, delas buscando detalhes nos jornais com mórbida curiosidade dia a dia crescente. “Todavia — adverte o entrevistado —, um observador calmo e sincero da psicologia coletiva não partilha dessa opinião, que se pretende moral, mas que é apenas ingênua” (id., ibid.). Para Sighele, seria já conhecida a atração que a alma humana experimentava quando diante do que chamou de o espetáculo do mal e por tudo aquilo que havia nisso de terrível e de perverso, muito mais do que se mostrava atraída pelo que havia de simples e honesto no mundo, confirmando a lenda bíblica segundo a qual os frutos da árvore do mal seriam bem mais saborosos que aqueles da árvore do bem. E mesmo a história pouco se deteria sobre as pessoas obscuramente calmas, tranquilas, admiradas em silêncio talvez, mas não sem “esta leve tinta de ironia com a qual se observa no mundo aquilo que é simples, normal e são” (id., ibid.). Porque — explica —, a monotonia dessas figuras prosaicas não provocava nossa imaginação, em busca de figuras mais ousadas, mais singulares, audazes, que provocassem “por seu renome, a inveja; ou, por sua audácia, o frisson do medo; ou, por sua perversidade, o espasmo do horror” (id., ibid.). Não se deveria, contudo, deplorar esse fenômeno, mas antes estudá-lo, — recomenda —, buscando aí uma razão nem mórbida nem vulgar para esse prestígio do mal, para esse apaixonado interesse, ávido de detalhes, que despertam as narrativas criminais. Sighele aí encontra um sentimento inconfessado que se teria ao estudar os crimes, porque nestes estudaríamos a nós mesmos, tudo porque os crimes iluminariam a alma de cada época, refletindo a vida e os costumes vigentes, como “símbolo patológico de tudo aquilo que hurra no fundo de nosso coração, de tudo aquilo que freme nas células de nosso cérebro” (id., ibid.). Bastaria, para convencer-se, comparar a criminalidade antiga com a moderna para encontrar, nos culpados de cada tempo, as influências de cada época manifestas na própria infâmia de seus crimes. Assim, — explica —, as civilizações primitivas baseadas na força comportavam crimes violentos; as que se desenvolviam na base da astúcia estimulavam os embustes; as que se erguiam sobre o domínio econômico, sobre o poder do dinheiro, desenvolveriam uma criminalidade antes cerebral que muscular, procedendo “por meios insidiosos e obscuros: o roubo, a fraude e a falsidade” (id., ibid). De modo que não seriam apenas os meios materiais que mudariam com a criminalidade no tempo: mudaria também sua orientação moral. As tintas religiosas que coloriam os delitos medievais cometidos sob o terror inspirado pelo além, revelavam tendências criminais de desequilibrados e loucos. Disso, porém, não se deveria concluir, — “como ousaria pretender algum míope reacionário” (id. ibid.) —, pela responsabilidade da teologia ou da Igreja. Antes seria mister constatar que “por um fenômeno natural e universal de mimetismo, o crime conforma-se às diferentes épocas e às diferentes atitudes do pensamento humano e sofre a influência das condições do meio histórico” (id., ibid.). Feitas tais observações, Sighele se propôs a responder à pergunta do Le Matin, que consistia em saber qual era, naqueles dias, a característica mais evidente da criminalidade. Ele respondeu que vinha a ser, para ele, não apenas na França como também em todo o mundo tido por civilizado, o enorme e inacreditável aumento da delinquência de menores, verdadeiro exército criminal composto de crianças com menos de dezoito ou de vinte anos que aumentava dia a dia naquele início de século. Afirmou: “É a juventude que está doente! É a juventude que apodrece! É essa doença que se apodera de nossas crianças e que não se manifesta apenas no crime, mas também no suicídio” (id., ibid). A última colocação se explicaria pelo incremento do suicídio infantil, quando aos quinze, aos dez, e mesmo aos seis anos essa prática crescente denunciava o indelével sofrimento daquelas almas levadas a uma ação fatal. Sighele coloca não lhe ser possível, em um artigo de jornal, examinar detidamente as causas desse fenômeno. A mais importante delas, contudo, seria o fato de as crianças entrarem muito cedo na vida, vivendo como adultos, desde logo experimentando o que chamou de contragolpes do destino, experimentando preocupações de deveriam ignorar. Tudo enfim —, diz —, lhe parecia abreviar-se no mundo físico e no mundo moral, de sorte que a própria infância abreviava-se também debaixo da que seria a nossa lei soberana: a pressa. Abolir o máximo possível e no que possível fosse “esses antigos obstáculos que se chamam tempo e espaço, eis o objetivo rumo ao qual corremos vertiginosamente, eis o ideal do qual nos orgulhamos” (id., ibid). E completa dizendo que estaríamos “a caminho de abolir ou, no mínimo, castrar a infância” (id., ibid). E assim como os adultos estariam ficando velhos antes do tempo, também as crianças estariam se tornando homens cedo demais: impulsionadas por sensações superiores à sua idade, “faziam-se homens pelos desejos e pelas paixões, não pela força e pela constância” (id., ibid). Tal a antinomia que, para Sighele, afetava a alma infantil, predispondo-a ao suicídio e ao crime em um século, — afirma — onde não se teria mais tempo de ser jovem.

ReferênciaSighele, S. (1908, maio 5). La fascination du crime: la jeunesse est pourri . Le Matin : derniers télégrammes de la nuit, ano 25, n. 8860, Paris, capa.

Imagem: BNF

domingo, 7 de abril de 2019

Morte de Scipio Sighele


Na sessão reservada às notícias internacionais, ao subtítulo de Italie, o conservador Journal des débats politiques et littéraires dedica espaço à Mort de M. Scipio Sighele (1913, outubro 24), apresentado como sociólogo e professor que morrera em Florença, aos 45 anos. Nascido no Trentino, ele passara sua juventude em Milão, onde seu pai desempenhava a função de Procurador Geral do Rei. Sua primeira obra fora La foule criminelle, sob o patrocínio de Cesare Lombroso, obra que, junto a alguns ensaios publicados no Mondo criminale italiano firmaram-lhe a reputação de psicólogo e de escritor. Seguiram-se ainda, entre outras, La copia criminalle, L’Inteligence de la foule, La complicité. Sighele foi um fervoroso adepto do nacionalismo, movimento que surge na Itália e que cresce com a guerra na África. Hostil à Áustria, chegou a ser proibido de ingressar no território daquele país. Em Florença, para onde fora por razões de saúde, a morte imprevista o surpreende. A notícia é finalizada com uma carta de Sighele, escrita de Turim, que teria chegado ao jornal no dia 22 de outubro, — a morte de Sighele é dada como ocorrida em 21 de junho de 1913 —, sob o título de “O irredentismo no Trentino”. Para uma melhor compreensão do homem que foi Scipio Sighele no contexto de uma criminologia nascente, sem falar em sua relevante, senão mesmo a mais fundamental, contribuição para com o nascimento da psicologia coletiva, a carta acima mencionada é traduzida na íntegra, tal como publicada no Journal des débats politiques et littéraires.

Ainda que estejam quase completamente absorvidos pelas eleições gerais, os jornais italianos de todos os partidos não negligenciam em registrar o dia a dia dos fatos que se desenrolam no Trentino e as perseguições das quais os elementos italianos são objeto. Esses fatos confirmam, aliás, os resultados e as previsões das pesquisas realizadas no local pelos enviados especiais de dois grandes jornais sempre desejosos de ver um bom acordo reinar entre as duas nações aliadas, o Corrieri della Sera e o Stampa, pesquisas que demonstram claramente que se tratava, da parte da Áustria, da realização de todo um projeto de desnacionalização. Os exemplares desses jornais foram sucessivamente sequestrados em território austríaco, da mesma forma que os jornais italianos que continham artigos que as autoridades do Tirol julgassem de natureza a excitar a opinião pública.
Enquanto quase não fala mais a respeito dos famosos decretos de Holenhole que permanecem intactos como se deveria esperar, notícias de Trento anunciam que reuniões populares tiveram lugar ontem e anteontem em toda a região do Trentino a propósito da eterna questão de uma universidade italiana na Áustria. Os diversos oradores pediram que Trieste fosse escolhida como sede da futura universidade. A agitação tende a estender-se. Ela terá, por certo, algumas repercussões na península.

Referência: Mort de Scipio Sighele (1913, outubro 24). Journal des débats politiques et littéraires, ano 126, n. 295, Paris, p. 2.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Carta de Henri Bergson a Gustave Le Bon


Leon Dauded (1923, setembro 14), na época em que era diretor político do nacionalista e antirrepublicano L'Action française, que circulou de 1906 a 1944, publicou um virulento artigo onde acusou Henri Bergson de parvoíce, utilizando-se de uma carta que este último escrevera a Gustave Le Bon, a propósito da obra Le déséquilibre du monde publicada naquele mesmo ano. Na carta, Bergson, embora questione o pessimismo de Le Bon, reconhece a considerável contribuição que ele teria aportado na fundação da psicologia coletiva.
Eis o documento traduzido na íntegra:

Escrevo-vos para dizer com que interesse li “O desequilíbrio do mundo”. O livro não é encorajador, ah, não! Não se poderia traçar um quadro mais impressionante das dificuldades da hora presente e da aparente impotência dos homens para superá-las. Não se poderia, não mais, mostrar com mais força a principal causa dessa impotência, que é o desconhecimento das condições materiais e morais da vida dos povos. O amanhã será bom, com efeito, para a psicologia coletiva, esta ciência para a qual tanto haveis contribuído para fundar. Resta saber se vós não levastes o pessimismo um pouco longe. Na raiz de vossa argumentação, eu creio perceber a ideia de que a humanidade não muda, de que os esforços que ela parece fazer há alguns anos para se modificar, para se “racionalizar” estão condenados à impotência: sois severo, por exemplo, para com a Sociedade das Nações. Estimo, aliás, como vós, que a humanidade não mudou até aqui senão bem pouco e muito lentamente. Mas quem sabe um grande esforço de vontade realizado em condições materiais inteiramente novas não daria resultados muito mais rápidos e consideráveis! Limito-me a colocar a questão. Não gastamos muito tempo lendo-vos, porque vosso livro (e este é o maior elogio que se pode fazer a um livro) obriga o leitor a pensar.
Deixai-me, caro amigo, endereçar-vos meus cumprimentos, com a expressão de meus sentimentos afetuosos.

Henri Bergson
da Academia Francesa

Referência: Bergson, H. (1923, setembro 14). Carta a Gustave Le Bon. In: Dauded, L. (1923, setembro 14). La nouvelle ídolo: Bergson-Nigaudinos. L'Action française : organe du nationalisme integral, ano 16, n. 256, Paris: capa.

A preguiça e a lei do menor esforço


Bordeau, J. (1914, janeiro 24) comenta, no Journal des débats politiques et littéraires,  edição então recente da Revue Philosophique, comandada por Ribot, que reunira, em um único número, uma série de ensaios dedicados à vida inconsciente e movimentos em psicologia. O destaque editorial foi dado ao artigo intitulado La paresse et le moindre effort. Obter a maior soma de prazer e bem estar com o mínimo de esforço possível consistiria na tendência ao menor esforço, seja no sentido da preguiça, seja no da economia de forças a serem despendidas na consecução de objetivos. O artigo diferencia a preguiça, que resulta da apatia e que se relacionaria aos tipos fleumáticos, daquela que vira a ser o resultado de uma ação fatigante, mas que jamais levaria alguém a morrer de fome. Deixando de lado as implicações de ordem moral, do ponto de vista da psicologia, Ribot teria aí procurado explicar a preguiça sem julgá-la. Ela seria, em geral, uma espécie de velhice antecipada. A inércia do preguiçoso, todavia, seria congênita; a do velho, adquirida: feita de causas anatômicas, da decadência física, do enfraquecimento da memória, do estreitamento da vida afetiva, do empobrecimento da imaginação, da submissão ao jugo de outrem, — enumera —, porque — explica: “O velho se incrusta no hábito” (id. ibid). O hábito, todavia, importa, porque é nele que se sustenta a lei do menor esforço, não apenas em relação à preguiça, mas ainda à economia. O hábito, atenuando o esforço, favoreceria a atividade humana, transformando o voluntário no involuntário, e até as virtudes — diz ele — seriam hábitos adquiridos. Todavia, — e aí vem o que nos importa referir aqui —, essa tendência quase universal nos indivíduos não se encontraria nas massas, onde o menor esforça se manifesta menos que nas individualidades. Daí o empenho da psicologia coletiva em estudar as tendências impulsivas, as boas e as más, as úteis e as inúteis, nas revoluções, revoltas, tumultos, lutas, assim como nas assembleias e suas deliberações. 

Nota: O Journal des débats politiques et littéraires , fundado por Baudouin em 1789, ocupava-se dos debates da Assembleia nacional. Dez anos depois, com os irmãos Bertin, torna-se o Journal de l'Empire, mas reencontra seu nome depois. Conservador, caracterizou-se pela qualidade da redação e pela diversidade de temas que iam da política à literatura. Circulou até 1944. (Fonte: Galliga, BNF).

Fonte: Bordeau, J. (1914, janeiro 24). Revue Philosophique. La paresse et le moindre effort, Journal des débats politiques et littéraires, ano 126, n. 23,  Paris, capa-2.