Ressaltando a importância da
materialidade dos artefatos do passado, Bezerra de Meneses (1983) define três
posturas comumente adotadas pelos historiadores dedicados à Antiguidade.
A
primeira se traduziria pela marginalização da cultura material, que seria
ignorada e como que abstraída do universo físico. Nem mesmo Jean-Pierre
Vernant, — historiador francês da Grécia Antiga, que aprofundou, entre outros
temas, a mitologia — teria fugido a isso, ao desconsiderar matrizes visuais[1],
fundamentais no universo das imagens, porque permitiriam o enriquecimento da
análise a que se quer proceder, observa Meneses (1983, p. 104), o que pode ser
explicitado in verbis:
Assim, no seu
estudo do mito (aliás percuciente e, sob muitos aspectos, inovador e de muita
densidade), ele utiliza apenas matéria prima literariamente processada; nunca
levou em consideração, por exemplo, a possibilidade de matrizes visuais para as
narrações míticas . Mesmo num estudo sobre, precisamente, o "nascimento
das imagens", o autor reduz a vastíssima problemática das
"phantasiai", aparições, aparências, "eidola", imitação e
outras categorias, às imagens mentais, com prejuízo para uma análise ainda mais
rica (MENESES, 1983, p. 104).
A segunda postura, que considera
a mais frequente, consistiria na instrumentalização da informação de matriz
arqueológica, vista como complementar à documentação textual.
A terceira
postura seria pautada no uso didático das informações inerentes ao universo
material, assinando-lhe o papel de ilustrar o discurso do historiador. Esta
última variante, todavia, comportaria resultados positivos sempre que fossem
evidenciadas relações de equivalência entre a produção literária e a produção
artística. Na cultura material reside um potencial imenso de informações não
verbais, mas, nem por isso, menos eloquentes no que concerne aos padrões que
podem revelar, porque “a cultura material constitui um código próprio, a ser
descriptado (sic) segundo sua natureza e não por redução aos códigos verbais”
(1983, p. 117), de sorte que, apesar dos desafios e das perguntas que
permanecerão sempre sem respostas, deve-se ao menos procurar correlacionar ao
máximo aspectos pertinentes a uma mesma cultura, que é simultaneamente material
e não material, não se podendo excluir nenhum desses dois aspectos sem prejuízo de uma melhor compreensão.
ENTREVISTA com Jean-Pierre
Vernant, O Estado de São Paulo – Caderno 2 – 05 ago 2001.
[1]
Jean-Pierre Vernant, a propósito, além de historiador, é referido como
antropólogo. Por ocasião da Entrevista
(2001) que concedeu ao jornal O Estado de São Paulo, foi apresentado aos
leitores como “o maior helenista vivo”. Nascido em 1914, Vernant é militante
político e foi membro ativo da Resistência francesa. Vários de seus livros
foram traduzidos para o português. Questionado pelo jornal sobre se concordava
com a fórmula comumente sintetizada na expressão “o milagre grego”, Vernant
manifesta sua absoluta discordância dessa ideia, que considera a Grécia como
berço da razão, do pensar científico e mesmo da filosofia, bem como de outros
grandes valores universais. Para Vernant, houve uma série de fenômenos
complexos, de natureza cultural e política, ocorridos na passagem da oralidade
à escrita, ou seja, da palavra profética, como ainda poética, de Homero e
Hesíodo até o discurso lógico de Platão. Simultaneamente a essa passagem,
ocorreram fenômenos sociais aí implicados: sucessivas passagens do poder da
realeza e dos grupos aristocráticos até a organização da pólis, com a
emergência da cidade e da cidadania. O triunfo do logos, na era clássica, não é
considerado por Vernant como favorável aos gregos. Sua civilização não seria
miraculosa, e os gregos teriam se mantido distantes da realidade física grega,
longe da experimentação e da aplicação do cálculo ao real concreto.
Com isso fica claro o ponto de
discordância que Meneses enfatiza em seu artigo, quando afirma a abstração do
universo físico na obra de Vernant, que teria desconsiderado a importância das
matrizes visuais nas narrativas míticas, reduzindo a problemática do nascimento
das imagens em prejuízo de uma análise mais rica. Meneses é bastante categórico
nesse sentido, quando observa que autores de máxima importância, dentre os
quais inclui Jean-Pierre Vernant “por vezes tanto ignoram a realidade física,
que descarnam os gregos antigos, quase os transformando em zumbis, que se
alimentam de puras estruturas mentais, as quais, por sua vez, dão ser à
realidade social, sempre algo estática” (MENESES, 1983, p. 104).