V. O sentimento de triunfo
As ações humanas não têm sempre um fim tão sombrio quanto a tristeza e a
angústia que examinamos por último. Elas terminam frequentemente pelo
sentimento de alegria ou, mais precisamente, pelo sentimento de satisfação e
gozo. Estes últimos são muito menos estudados que a angústia.
Como sempre, nossas observações, colocando-nos do ponto de vista da
consciência, serão pouco precisas, menos precisas mesmo que para os sentimentos
que estudamos ultimamente. À primeira vista, o sentimento de alegria
apresenta-se como alguma coisa de vago; como para a angústia, não se a conhece
a não ser que por comparações e por metáforas. Aproxima-se frequentemente a
alegria do prazer, mas o prazer é ainda menos preciso que a dor, que podemos ao
menos compreender como uma ação de distanciamento. Declara-se às vezes,
todavia, que o prazer é fácil de reconhecer, que ele é preciso, e que
corresponde muito exatamente a um estímulo da pele, a uma cócega. Produzir tal
hipótese parece-me bem audacioso: é ousado admitir que uma simples cócega
superficial na pele engendre o sentimento de prazer; e, aliás, a cócega é o
início o arranhão, que engendra dor.
De minha parte, tenho que a palavra prazer é um termo vago que se aplica
em muitas ações não tendo senão que um ponto em comum: todas essas ações são
opostas à reação à dor; são atos de aproximação e de introdução, como os atos
de alimentação ou os atos sexuais, ao invés de reações de afastamento.
Como sempre, em nos colocando do ponto de vista da consciência, não
chegamos a nada de muito preciso. Segundo nosso método, prosseguiremos
examinando os fenômenos viscerais e intelectuais que parecem acompanhar o
gozo.
Esses fenômenos são sempre quase os mesmos que nos sentimentos
precedentes. Há, todavia, alguns particulares, muitos curiosos, tocando a
circulação e a respiração.
Para a circulação, observam-se fenômenos de vasodilatação e de
vasoconstrição. Na tristeza, os fenômenos mais frequentes são de
vasoconstrição; ao contrário, aqueles de vasodilatação são mais frequentes na
alegria.
Dumas fez interessantes experiências sobre alterações no número de
glóbulos sanguíneos: na tristeza o número de hemácias aumenta; ele diminui a na
alegria (quatro milhões e mais na alegria; cinco milhões e mais na tristeza).
Esses experimentos se relacionam aos da vasoconstrição. O sangue é mais
concentrado nos vasos. Infelizmente essa observação não é geral. Assim Binet,
em suas obras, nota frequentemente fenômenos opostos.
Com relação à respiração, na tristeza, há frequentemente exagero,
aprofundamento do tórax, como na alegria.
Eu creio tratarem-se aí de fenômenos relacionados a condutas
elementares. Na tristeza detém-se muito frequentemente a ação, enquanto na
alegria há agitação, e os fenômenos viscerais são a consequência do aumento ou
da diminuição do movimento. Por exemplo: na agitação, o calor sanguíneo vai dos
vasos em direção à pele; do mesmo modo, quando se está triste, faz-se esforços,
malgrado a imobilidade, e infla-se o tórax. Em todos os casos as teorias
viscerais não dão resultados precisos.
Como sempre, não se pode fazer um estudo desses fenômenos a não ser pela
consideração da conduta que eles simplesmente resumem.
Pergunte-se primeiro: que gênero de ação se faz? A resposta é fácil:
trata-se de não fazer mais nada e a ação está terminada. A fadiga e o esforço
eram condutas do começo e do desenvolvimento da ação; a angústia e o gozo são
condutas do fim da ação. E esta questão do fim da ação é muito importante: é
ela que ocasiona o mais frequentemente problemas no indivíduo. O gozo nos
conduz ainda uma vez a esse fenômeno.
É, dizemos nós, um fim, um fim definitivo. Na fadiga, temos apenas uma
parada, uma pausa; nós não renunciamos à ação, nós conservamos o desejo. Ao
contrário, na angústia e na alegria, acabou, terminou de vez, e mesmo ainda
mais na alegria que na angústia, porque, na angústia, o estímulo, não vencido,
subsiste, enquanto, no gozo, não há mais estimulação, não há mais nada.
Mas então, se o gozo é um fim da ação, ele se aproxima da angústia. E
bem, sim: nossa linguagem, que é a expressão de nossa conduta, é uma linguagem
bem mal feita; o conjunto de todos os verbos de um dicionário é um tratado de
psicologia elementar, mas um tratado mal fabricado: os homens têm feito mesmo
uma má classificação dos sentimentos. Pensa-se frequentemente que a angústia e
a alegria correspondam a duas ações opostas. A menor observação, sobretudo nos
casos patológicos, nos leva a refletir sobre esse ponto: há entre todos os
doentes quase simultaneamente exagero de um ou outro sentimento? Eles passam de
um extremo a outro com grande facilidade. Kroepelin, em particular, insistiu
sobre esse fato e mostrou que alguns indivíduos alternam constante e facilmente
os dois fenômenos.
É que, em ambos os casos, se trata de um termo radical da ação que
separa esta última de todo o resto da vida, termo quase absurdo, aliás, quase
patológico, porque ninguém pode dizer que, definitivamente, uma ação teve
termo: é preciso sempre procurar ainda, trabalhar sempre, ir sempre adiante.
Os dois termos angústia e alegria aproximam-se, pois, pelo seu exagero.
Como, se isso é assim, um termo radical e definitivo pode implicar, na angústia
e na alegria, em consequências tão opostas?
Aqui intervém o problema tão importante da repartição de forças
psicológicas. Podemos comparar o homem a um pequeno banco. Ele recebe capitais
e os cede para fora (aliás, o banco, como todas as instituições humanas, é
apenas uma imitação do trabalho da natureza na pessoa humana). O problema que
nos ocupa chama-se, em termos técnicos, a questão da arbitragem, do emprego de
capitais. Quando se têm capitais é preciso fazer alguma coisa com eles.
Empregamos em certa direção muitas forças espirituais, muitos esforços
acrescentados a nossas tendências naturais. Que fazer agora desses capitais? É
no emprego desses capitais que o gozo se diferencia da tristeza.
Na angústia, o emprego dos capitais se faz no “medo da ação”. No gozo,
esse emprego de capitais se faz por uma conduta particular que chamaremos de
“triunfo”. Na angústia, não somos livres para fazermos o que quisermos: temos
uma fortuna, mas submissa ao reinvestimento legal. Primeiro é preciso deter a
ação primitiva, perigosa, culpável ou sacrílega, e essa brusca parada demanda
esforço. Além disso, o estimulante não desapareceu. Se, para dizer a verdade,
pode-se mudar a ação, a nova ação ainda deve responder a esse estímulo. Se, por
exemplo, fracassamos em um exame, é preciso prepará-lo outra vez ou preparar
uma nova carreira. Os atos que devemos praticar são comandados pelas
circunstâncias, e essas circunstâncias são quase sempre entediantes.
Ao contrário, a conduta que se deve seguir no triunfo pode se
caracterizar em uma única palavra: “liberdade”, e esse caráter é essencial.
Dai uma soma em dinheiro a uma criança pequena. “Tome, pequeno, eis
vinte francos. Tu irás à Larousse e comprarás um dicionário.” Você acredita que
a criança ficará contente? Nem um pouco. Diga-lhe, ao contrário: “Tome,
pequeno, eis vinte francos. Faze deles o que quiseres.” A criança ficará
contente, saltará de alegria. Possuir a força, possuir a fortuna e poder fazer
com isso não importa o que, eis o que todos desejamos, eis o que nos torna
felizes.
Mas por que desejamos fazer não importa o quê? Isso se relaciona, na
minha opinião, a toda uma conduta do espírito que é muito pouco conhecida e que
vou tratar de expor resumidamente. Nosso espírito se compõe de uma quantidade
de mecanismos que querem todos mais ou menos funcionar. Eu digo mais ou menos.
As tendências são mais ou menos boas. Algumas funcionam em déficit: são más
tendências que conduzem a uma diminuição de força e de vitalidade. Outras, ao
contrário, são muito boas: eles tem sempre forças de sobra e seus gastos não
nos esgotam. Por que isso? É que os bons organismos têm o hábito de bem se
nutrir. Desde que estejam vazios, se preenchem novamente. Vemos assim caixas
sempre vazias e caixas sempre cheias. É vantajoso servir-se destas últimas. Se
elas estão sempre cheias não servem; se são empregadas, enchem-se
indefinidamente. Sirvam-se das caixas cheias, pois elas pagam mais. Elas têm um
funcionamento vantajoso que é muito importante para a saúde do espírito.
Vejam, por exemplo, uma criança que se deseja que aprenda a ler ou a
escrever. O funcionamento dessas tendências é muito difícil quando elas se põem
a correr, a quebrar tudo, é extremamente proveitoso: deixe a criança fazer de
suas forças aquilo que ela quiser. Termine a lição e feche o livro. Vocês farão
funcionar as tendências vantajosas da criança, que aspira apenas isso, desde
que tenha liberdade. A criança não deixará de correr, de brincar, de jogar, de
dar cambalhotas, e não há nada melhor para ela.
Em resumo, a detenção da angústia é a utilização imediata e em uma
direção obrigatória de forças sob uma forma tediosa; a detenção do gozo é a
utilização livre de forças em uma circunstância fácil e vantajosa.
Faz-se, pois, movimentos dos membros para testemunhar alegria, colocando
assim em jogo tendências mais fortes do ser, as tendências primitivas:
grita-se, canta-se, pula-se, etc. Mas tais ações terminam também por se
organizarem: o próprio triunfo se torna uma tendência sistemática. Veja-se o
que acontece depois de uma grande guerra. Todo processo do triunfo é regrado de
antemão. É preciso fazer os soldados passarem sob o arco do triunfo; é preciso
soltar fogos de artifício sobre o Sena, depois é preciso comer e beber. Tente
fazer alguma coisa que não corresponda à vontade comum. Tente, por exemplo,
entrar tranquilamente em casa e ir para cama: você terá trabalho para dormir
com o ruído e a música da rua.
O triunfo, livre em teoria, organiza-se, pois, na realidade, e é isso
que aproxima a conduta do gozo daquela da angústia. Além disso, a ação
sistematizada tem, no gozo, outro caráter que sempre me surpreendeu. Examinemos
o que se passou depois da guerra. A guerra era cara. Não deveria, desde que
teve fim, antes de mais nada deter as despesas? Todavia, fez-se exatamente o
contrário. Fez-se uma festa que implicou em despesas com lampiões, iluminação
da cidade, que sei mais ainda? Esse fenômeno é muito curioso. Ele traz despesas
para o triunfo, porque é tão vantajoso que os homens procuram sistematizá-lo.
Na angústia, nos esforçamos por fazer o mínimo de despesas e, por esse
lado, a angústia se aproxima da fadiga. Ao contrário, se é preciso aproximar o
gozo de um dos sentimentos que acabamos de estudar, eu o aproximaria do
esforço. No gozo, corre-se, grita-se, faz-se esforços e continua-se a
despendê-los. É que não é fácil parar de imediato esse dispêndio. O esforço é
um despesa. O triunfo deveria ser a parada do esforço, mas se é levado por
aquilo que eu frequentemente chamo de “elã”, o elã de dispêndio contínuo.
Assim, no gozo existe ainda o esforço. Ultrapassa-se o obstáculo, vai-se
mais adiante. As tendências favoráveis colocadas em jogo vão desenvolver a
força e a saúde. A angústia esgota por despesas desnecessárias, o triunfo
enriquece porque coloca em ação tendências felizes. Assim alguns exercícios,
correspondendo a tendências mal construídas, esgotam o homem, enquanto outros,
correspondendo a tendências bem construídas, e livres, e que se recarregam
facilmente, o estimulam a prosseguir.
Todavia, aqui uma dificuldade se apresenta. Por que, ao fim de certas
ações, o sentimento de triunfo nasce e não o de angústia?
Teoricamente a resposta seria simples: há sentimento de triunfo quando
há sucesso; há sentimento de angústia quando há fracasso.
Mas, praticamente, o sucesso é ainda mais difícil de reconhecer que o
fracasso: é a ab-reação, tal como a definimos em nossa última lição, é a
conduta que modifica a estimulação exterior em sentido favorável. Quando
começamos uma ação, formulamos de antemão sua conclusão, esta ab-reação. Por
exemplo, quando nos apresentamos para um exame, pensamos no diploma. O sucesso
será a transformação da fórmula teórica e verbal em uma ação real. O sucesso
será a ab-reação total.
Entretanto, é raro obter o sucesso completo. O sucesso absoluto não
existe, a não ser para crianças ou para os espíritos simples, que são
insensíveis a uma multidão de estimulações exteriores novas. O sucesso é tanto
menos nítido quanto o esforço está mais distante de terminar e quanto nossa
vontade quer continuar. Sob qual signo, pois, reconhecer o sucesso? É preciso,
diremos, que haja para isso uma modificação da ação. Se detivermos a ação
porque ela caminha mal, a angústia chega com o reconhecimento. Se a ação
caminha bem, é o triunfo. Mas a questão é saber se chegou o momento de deter o
esforço. Isso é complexo, e leva a uma quantidade de erros que determinam as
variedades do triunfo e do gozo.
Essas variações dependem primeiro de ações anteriores. Escreve-se
uma carta insignificante. O triunfo é pequeno. Ao contrário, se a ação é
colocada em jogo por tendências violentas, produzirá um grande gozo. É o que se
produzirá, por exemplo, na detenção, pelo triunfo, das tendências
sexuais.
As variações dessas manifestações do triunfo dependem igualmente da
própria força dos indivíduos. Indivíduos fracos não triunfam muito. Há pessoas
que não sabem gozar do mesmo modo como elas não sabem sofrer.
Enfim, o fenômeno do triunfo, vantajoso por ele mesmo, conduzirá às
vezes a gastos inúteis. O gozo será caracterizado por um desejo: quer-se gozar
outra vez, porque isso produz felicidade. Como de outra parte as circunstâncias
são difíceis de apreciar, teremos uma segunda categoria de indivíduos: aqueles
que gozam o tempo todos. Eles detêm sem cessar a ação que acabam de começar,
para ter triunfos. Eles acreditam sempre obter sucesso.
Esta conduta organizada dá nascimento a um novo fenômeno: a brincadeira,
o prazer, a comédia da ação. Sabe-se o papel considerável que o brinquedo
desempenha na vida dos homens, pois ele está na origem de todas as artes. No
fundo, o que é a brincadeira, os jogos dos animais grandes e pequenos, dos
elefantes e dos homens também? Karl Groos definiu-o como uma preparação para
ações importantes. O gato que brinca com uma folha ou com um novelo de lã se exercita
para poder lutar com ratos. É a teoria dos jogos pelo exercício. Não nego a
exatidão dessa observação. Mas direi que se utilizam os jogos existindo como
exercício, e que este exercício é uma exploração da natureza primitiva dos
jogos.
Os jogos parecem-me uma exploração da ação triunfal. Uma conduta
fanfarrona que tira vantagem de triunfos imaginários. Escolhe-se para brincar
ações que não oferecem dificuldade. Ora, aquilo que torna a ação difícil sobre
esta pobre terra é que estamos no mundo real e, por isso mesmo, penoso. Nos
jogos, suprime-se a ação da realidade. Faz-se o simulacro do exame diante de um
examinador que não existe ou que aceitará, com certeza, algumas bobagens que
dissermos. Será bem mais divertido: está-se seguro de obter o diploma.
Tradução da parte V do capítulo I : Os sentimentos fundamentais
JANET, Pierre. L’amour et la haine. Notes de cours recueillies et rédigées par
M. Miron Epstein. Cours dispensé en 1924-1925 au Collège de France. Paris : Éditions médicales Norbert Maloine, 1932, 308 pp.