sábado, 31 de julho de 2021

REVISTA VIDA BRASIL


ALBERTO, O MULHERENGO

Eu o conheci há mais de 20 anos. Não no sentido bíblico, bem entendido, mas como uma boa amiga do querido Alberto. É claro que o nome dele não é este, mas serve perfeitamente para designar alguém que me impressionou como o tipo clássico do mulherengo, absolutamente romântico e invariavelmente infiel. O mais interessante, todavia, é que vim a descobrir esse traço tão vívido de sua personalidade só alguns anos depois de conhecê-lo. A princípio, Alberto foi sempre um elegante e educado cavalheiro. E continua sendo, porque recentemente conversei com ele e pudemos recordar um pouco dos velhos tempos. Inspirada na conversa, surgiu-me a ideia de dividir com os leitores minhas impressões sobre o que considero um clássico mulherengo, dos quais Alberto, sem dúvida, é por excelência um bom exemplo.

Embora muitos (e muitas) se perguntem se um mulherengo precisa ser bonitão, estou para lá de certa que não absolutamente. Alberto, por exemplo, não era, creio que nunca foi nem é agora tampouco. Ao vê-lo pela primeira vez, nenhuma mulher iria suspirar, porque se trata de um homem comum. Nada de olhos verdes, sorriso perfeito, corpo atlético. Sem ser feio, não chegava a ser bonito. Todavia, uma vez estabelecidas as relações sociais, e ultrapassadas as devidas apresentações, sabe-se estar diante de um cavalheiro: alguém que ultrapassa em muito os parâmetros médios da boa educação e que, do ponto de vista feminino, trata todas as mulheres como damas, independente da idade ou da condição social delas.

É importante explicar a ênfase que estou emprestando ao termo clássico. É para deixar bem claro que existem os mulherengos comuns, nada interessantes. São tão óbvios, os coitadinhos. Passam cantadas, dizem bobagens, elogiam demais. Integram a tribo dos galãs de parquinho ou paqueradores de ocasião. São muito chatos. Abordam mulheres na rua e até quando fazem compras em supermercados. Dizem gracinhas completamente inoportunas e não é raro que sua conduta ultrapasse os limites da tolerância média, ainda que não se comportem necessariamente como assediadores sexuais. Os mulherengos clássicos se conduzem de outra maneira. Mostram-se tão discretos que a gente deveria sempre suspeitar que, na verdade, são sonsos. Conseguem deixar claro seu interesse sem recorrer aos lugares comuns utilizados pelo paquerador vulgar. Valorizam a mulher, sabem como prestigiá-la, de sorte a fazer com que elas o julguem interessante exatamente porque parece quase desinteressado. Em resumo: o mulherengo clássico é um jogador de cartas, que investe muito em apostas crescentes com sucessivas rodadas. O paquerador vulgar, em compensação, não passa de um apostador que não vai além dos caça-níqueis.

 Conheci Alberto socialmente. A impressão deixada era de elegância, confiabilidade e discrição. Com o tempo, no círculo de amigos comuns, aos poucos ele foi revelando fatos sobre sua vida. Os laços de amizade se estreitaram, e ele jamais desmentiu aquela primeira impressão. Amigo de fé, absolutamente confiável nos negócios, excelente profissional e dono de um senso de humor capaz de transformar tardes de cafezinho no meu antigo escritório em grandes momentos sempre divertidos. Nosso pequeno e restrito grupo de amigos era, à época, bem fechado.

Com o passar dos anos, as tardes de café repetiam-se, e Alberto acabou falando mais de si próprio, no sentido íntimo mesmo, até que, em um dia qualquer que não tenho mais como precisar, o assunto recaiu nas coisas do coração. Até então eu tinha por certo que o pacato pai de família tivera uma vida comum, até porque vivia bem com esposa, filhos e um adorável poodle toy. Pensava eu que talvez houvesse casado como maioria, seguindo os protocolos: conhecer, apaixonar, namorar, noivar e casar. Depois é só seguir com a vida real e portar-se como todo mundo. Alberto não me pareceu nunca um tipo arrebatado. Quando me falou sobre amor e sobre uma paixão do passado, pensei comigo que se referia à mulher dele em tempos de namoro. Qual não foi porém a minha surpresa ao descobrir que a história ― uma longa e complexa história de paixão ― ele vivera com outra! O caso prolongou-se por muitos anos, mas houve desencontros e, por contingência, foram separados. No fim, ambos terminaram casados, com filhos, e mantiveram-se distantes, embora continuassem perdidamente apaixonados. Segundo Alberto, sofreram, choraram, mas mantiveram-se íntegros, como nos filmes de Hollywood, mesmo após um dramático reencontro que os colocou face a face.  Achei aquilo muito interessante, porque jamais teria imaginado um Alberto capaz de amores tão castos, quase heroicos.

Desde essa conversa, passei a prestar mais atenção àquele que começava a se revelar como um mulherengo, porém, a meu ver, do tipo clássico, porque, mesmo quando é infiel, não consegue ser cafajeste. Não! De modo algum! A traição deles é sempre compreensível, e acredito que mesmo a esposa o teria perdoado. Um mulherengo clássico é incapaz de uma traição. Ao contrário dos mulherengos comuns, ― que se confundem com os paqueradores vulgares e que chegam, no máximo, a cafajestes rodriguianos ―, os clássicos não mentem, não enganam nem simulam. Cafajestes, por exemplo, empenham-se muito na conquista da mulher só para abandoná-la depois. Gostam de lágrimas e se sentem homens quando fazem com que a mulher sofra. Agem como Dom Juan. Os mulherengos clássicos não. Eles sabem intuitivamente como evitar traumas, talvez porque seduzem sem mentir. Dizem a verdade, porque sentem de verdade aquilo que dizem, mesmo que seja mentira.

Nenhuma mulher se sente feia diante de um mulherengo clássico. Por algum feliz acidente que talvez só se explique pela combinação de planetas, eles gostam de mulheres e sabem bem como atiçar mesmo a mais inexpressiva das feminilidades. O romantismo é neles tão natural que a impressão que fica é a de que são os mais fiéis dos homens. Alberto revelou-se bem assim: fiel a todos os amores que colecionou ao longo da vida. Conquistava as mulheres, relacionava-se com elas, mas jamais permitia que a chama se apagasse. Para minha surpresa, aquele cavalheiro educado, respeitável pai de família, mantinha, além da esposa, vários relacionamentos amorosos, alguns com décadas já.  Apesar de surpresa, não havia como não rir daquela situação e da justificativa que ele dava ao seu comportamento: nunca se deve fechar uma porta atrás de si. Seja.

Contudo, apesar de cuidadoso, algo deu errado com seu casamento. Indiscretos comentários deram conta de que Alberto havia se separado da esposa, que o expulsara do lar conjugal, acusando-o de manter um caso com a mulher de um amigo da família recentemente falecido. Como eu soube do maldoso boato, na primeira oportunidade em que nos encontramos, não resisti à curiosidade e fui direto ao assunto:

― Então, Alberto. Ouvi dizer que você se separou. Fala sério! Verdade que você pegou a mulher de um amigo? ― perguntei.

Ao contrário do que se pode esperar da maioria dos homens, ele não estranhou a minha pergunta e tampouco se mostrou embaraçado com tamanha indiscrição. Apenas abriu seu sorriso mais simpático, balançou a cabeça e adotou a expressão da mais pura inocência:

― Mas eu jamais desrespeitaria a mulher de um amigo! Ainda mais a mulher do falecido João! Infelizmente, minha esposa — agora ex — se tornou uma mulher ciumenta e não entendeu o que nunca foi além de um gesto de solidariedade.

Embora achasse a história muito estranha, escutei a versão dele, que se sentia ainda injustiçado. A separação acontecera de modo dramático, com a expulsão de casa do suposto adúltero.

― Mas, então, e agora? Estás como? Morando onde?

― Estou morando com ela, respondeu-me.

― Com ela quem?

― Com ela…

Esse ela veio acompanhado de um sorrisinho, de sorte que compreendi então que a esposa efetivamente teve lá os seus motivos para enciumar-se. Ele, elegantemente, foi peremptório. Negou qualquer envolvimento com a mulher do amigo ao tempo da separação. ― Um cavalheiro jamais comprometeria uma dama! ― Passado algum tempo, porém, Alberto não teve como não se mostrar solidário com a viúva do amigo. Muito compreensível, naturalmente. Dessa solidariedade, então, teria nascido o novo relacionamento. Ou seja: ele permanecia inocente. Alberto e a viúva do amigo João foram ambos injustiçados. Se terminaram juntos, foi culpa do destino. Afinal, Deus sabe o que faz.

Assim, o irrepreensível cavalheiro mostrava enfim outros aspectos de sua personalidade. Devo confessar que me sentia absolutamente privilegiada. Afinal, eram confidências vedadas ao mundo feminino em geral. O mais interessante era observar que ele conseguia sempre permanecer com pleno domínio das circunstâncias: não se contradizia nunca, não se embaraçava nem se constrangia. Seu discurso, porém, sempre impecável, dava a entrever que se divertia muito entre amores e amadas.

O tempo passou. Minha vida mudou e também mudaram os amigos. Nesse ínterim, porém, aconteceu de nos encontrarmos uma vez apenas, e isso, seguramente, há uns oito anos atrás. Alberto ocupava então um cargo importante. Perguntei onde estava morando e ele me respondeu estar sem endereço certo, porque morava, simultaneamente, com três namoradas que não sabiam umas das outras e na casa das quais ele dormia. Elas acreditavam que ele viajava muito e que só dispunha de um, no máximo dois ou três dias de amor por semana. Com esse engenhoso arranjo, ele era sempre esperado por suas namoradas, uma por vez, em clima de romantismo e de saudade a cada retorno das cansativas viagens de trabalho. Mais uma vez me senti privilegiada. Afinal, um mulherengo não costuma se revelar com tanta clareza. A lamentar que não nos encontramos desde então, até alguns dias atrás, quando conversamos virtualmente durante um encontro com amigos. Conversa divertida sobre os velhos tempos que recaiu, naturalmente, sobre o assunto mulheres.

 ― Então, Alberto? Ainda com três namoradas? Não, disse ele, rindo.

Pelo que pude perceber, agora são apenas duas namoradas que dividem pacífica e insuspeitadamente a posse do glamuroso Alberto. Sorte dele que residem ambas em cidades, na verdade em estados diferentes.  Desde então venho me perguntando quem são as mulheres que os mulherengos conseguem deslumbrar ou mesmo cegar por completo? Belas adormecidas talvez, que o mulherengo faz sonhar. Assim como os libertinos, os mulherengos ― os clássicos notadamente ― são tipos em franca extinção. Com eles, vão desaparecer também as belas adormecidas, os cavalos brancos, o glamour dos envolvimentos amorosos, os cavalheiros gentis que entregam seu coração, jurando amor ardente. E enquanto tudo isso aos poucos cai no esquecimento, à medida que desaparecem os mulherengos e suas amadas, a vida lá fora corre apressada, com relógios, compromissos, prazos e boletos. 

Da conversa sobre os velhos tempos, uma bela impressão. Ao me ver pelo vídeo, Alberto não me poupou do clássico: você não mudou nada nesses anos todos. Na despedida, uma promessa de vir a Porto Alegre. Parece que ele virá em algumas semanas. Mulherengos! Eu, hein?


DISPONÍVEL NA REVISTA VIDA BRASIL

 

 

sexta-feira, 30 de julho de 2021

domingo, 25 de julho de 2021

Entrevista com Alain de Benoist

A luta ideológica faz hoje parte da “Guerra cultural”?


Karl Marx não errou ao dizer que a ideologia dominante é sempre a ideologia da classe dominante. Enquanto ela for dominante, impregna os espíritos sem que estes se deem conta disso (vê-se mal a ideologia quando se nos identificamos com ela), tornando-os sempre mais conformes, sempre mais dispostos a admitir exigências apresentadas como tão “evidentes” quanto “insuperáveis”, o que reforça sua legitimidade. No século XIX, ela fazia assim aparecer o proveito como a remuneração natural do capital, enquanto ele é, antes, o produto do trabalho. A ideologia dominante é hoje a ideologia do mercado, fundada sobre a ideologia econômica, sobre a ideologia dos direitos do homem e sobre a ideologia do progresso. A classe dominante é a Nova classe mundializada. 


Mas toda sociedade é um “campo ideológico”, como escrevia Louis Althuser, para o qual os aparelhos produtores da ideologia dominante colidem com outras ideologias que os contestam. É a relação de força entre essas diferentes ideologias que define o espírito do tempo e deixa prever suas transformações. “Não existe nada no mundo tão poderoso quanto uma ideia da qual é chegada a hora”, dizia Victor Hugo.


sábado, 24 de julho de 2021

Quando a fonte é muito pessoal...

 

A condição de produto de gente comum, que viveu uma vida comum e que produziu escritos que teriam por destino o lixo, remete a uma descartabilidade absoluta, e é isso o que vai conferir à fonte, em sua singularidade, a pertinência ao âmbito do que Perec chamou de infra-ordinário, algo que, não obstante sua trivialidade, mesmo sua futilidade,  pode ser perfeitamente bem compreendido na perspectiva literária que este autor soube tão bem descrever a partir de sentimentos colocados em primeira pessoa. Perspectiva de alguém que nos fala dos jornais que o entediam, que nada lhe ensinam. De alguém que se pergunta onde estaria todo o resto, todo o resto que vivemos: o banal, o cotidiano, o que é comum, evidente, habitual. Esses pequenos nadas, prosaicos, que não indagam nem respondem, teriam uma densidade talvez tão próxima de nós que, anestesiados, jamais somos levados a interrogá-los, pois aí vivemos sem pensar, como peixes que ignoram o aquário, sendo preciso dotá-los talvez de uma atenção especial que lhes permitisse a sua descoberta. E como deveríamos proceder então para interrogar este habitual que nos anestesia, como se dormíssemos nossa própria vida em um sono desprovido de sonhos? Onde estaria nossa vida, nosso corpo e nosso espaço? Como falar das coisas comuns? Como persegui-las, desalojá-las, desencravá-las da ganga na qual restam incrustadas? Como dar-lhes um sentido e uma linguagem, na medida em que elas falariam, enfim, daquilo que é e daquilo que seríamos? Talvez fosse o caso — arrisca Perec — de se fundar uma nova Antropologia capaz de falar de nós e de procurar em nós aquilo que, por tanto tempo, pilhamos aos outros, abandonando o exótico pelo endótico.

PEREC, Georges. L’Infra-Ordinaire. Paris: Editions du Seuil, 1989, p.10-11.


quinta-feira, 1 de julho de 2021

Uma reflexão de Alain de Benoist sobre arte e cultura

Eu não diria que cultura popular e alta cultura se equivalem. Pretender que não há diferença entre ambas seria impor verdadeira neutralização da arte e da literatura, nivelando-as ao gosto das massas. Arte, sobretudo, tem uma função incômoda. Eu diria que ela deve ser, no mínimo, perturbadora, senão mesmo corrosiva. A busca de estetizar o mundo vem banalizando a arte, que se aproxima do real, assumindo uma fealdade que a generaliza, expandindo-a diante de consciências que se estreitam e se uniformizam cada vez mais, ao gosto do prêt-à-porter ou do prêt-à-penser, onde parecido se torna igual. Autenticam-se as imitações e o artístico se aproxima do meramente artesanal. Observo uma aproximação que a  homogeneização forçada que mistura a arte, a política e o simples dia-a-dia, a prosaica realidade do cotidiano, aniquilando-se aí qualquer possibilidade de transcendência, apanágio da toda verdadeira arte, que é substituída pelos cenários vazios e superficiais produzidos pela propaganda.

Sentidos embriagados perdem em penetração o que ganham em aturdimento e euforia. O que conta é a embalagem, pois o conteúdo aqui é dispensável. Mais ou menos como a marca em detrimento do produto, adquirem-se gostos e opiniões para etiquetar o vazio deixado pela ausência dos significados que só a verdadeira arte nos faz descobrir, em um processo que não pode ser encenado por nenhuma dinâmica da indústria cultural, que desumaniza pelo consumo, que destrói a possibilidade de emergência de uma consciência crítica, que elimina cada vez mais a possibilidade de escolha. Acredita-se que qualquer coisa pode ser arte e que qualquer um pode ser artista, destruindo-se assim, também na estética, as barreiras que, em outros campos, separam a elegância da vulgaridade, a saúde de doença, o sagrado do profano, suprimindo-se qualquer possibilidade de assinar-se à beleza uma função transcendente, coisa que só a genuína obra de arte pode oferecer.

É que a verdadeira arte desiguala, na medida em que requer muito mais que a mera destreza artesanal e a sensibilidade de massa, embotada pela publicidade, que ratifica a fealdade imperdoável na qual mergulha o mundo moderno, onde proliferam bienais e aglomerações urbanas chocantes que vão de favelas a barueris, ambas amostras de padronização, seja da miséria, seja do mau gosto ostensivo que acompanha todo dinheiro novo em seu culto à vulgaridade praticado com todo fervor. Vivemos muito, é verdade, e com notável bem estar material, acesso à tecnologia, aos avanços da ciência. Mas nossas vidas são esterilizadas pela massificação da qual não se pode escapar. O mundo fica cada vez mais espetacularmente feio.

A Modernidade consiste neste movimento político e filosófico que vem acontecendo nos últimos três séculos da história ocidental e que, portanto, abrange nossas vidas.

Eis os cinco processos convergentes que caracterizam a modernidade:

a individualização, pela destruição das antigas comunidades de pertinência;

a massificação, pela adoção de comportamentos e de modos de vida estandardizados;

a dessacralização, pelo refluxo das grandes pregações religiosas em proveito de uma interpretação científica;

a racionalização, pela dominância da razão instrumental através da troca de mercadorias e da eficácia técnica,

a universalização, pela extensão planetária de um modelo de sociedade implicitamente colocada como único possível racionalmente, logo, como superior.

Dentro desses processos caracterizadores da modernidade, a humanidade é aí percebida como uma soma de indivíduos racionais que, por interesse, por convicção moral, por simpatia ou ainda por temor, são chamados a realizar sua unidade na história. Nesta perspectiva, a diversidade do mundo torna-se um obstáculo, e tudo aquilo que diferencia os homens é percebido como acessório ou contingente, ultrapassado ou perigoso.

Fonte: BENOIST, A. de, CHAMPETIER, C. La Nouvelle Droite de l’an 2000. Élements, 94, Février 1999.