"Conhecimento não se apoia apenas na verdade, mas também no erro."
JUNG, G. La psique y sus problemas actuales. Buenos Aires: Poblet, 1944, p. 71.
Espaço inicialmente reservado a produções relacionadas a meu Mestrado em Memória Social e Bens Culturais, Lasalle, 2012. Depois, em boa parte, direcionado a pesquisas vinculadas ao Doutorado em História Social, USP, 2017. Atualmente (2019), dará lugar a publicações conexas a meu pós-doc em Psicologia Social junto à UERJ, com estágio concluído em 2023. Além disso, contempla temas como memória, história, arquivos pessoais, cotidiano, arte, fotografia e outros saberes.
"Conhecimento não se apoia apenas na verdade, mas também no erro."
JUNG, G. La psique y sus problemas actuales. Buenos Aires: Poblet, 1944, p. 71.
GINZBURG,
Carlo. Huellas. Raíces de un paradigma indiciario. In: Tentativas. México: Universidade Michoacana de San Nicilás de
Hidalgo, 2003, p. 93-155, p. 154.
Gabriel Tarde
Temos aí, pois, um traço psicológico
destacado pelo jurista, qual seja, uma espécie de suscetibilidade individual ao
contágio, expressão, aliás, que se repete entre os autores. Indivíduos
suscetíveis são identificados por Clóvis como os reconhecidamente perversos e
os impressionáveis. Os primeiros “experimentados na pratica dos maleficios”
(id., ibidem) se deixariam arrebatar
“até o delirio sanguinario” (id., ibid.); os segundos, “espiritos
intensamente vibrateis, mas de conducta perfeitamente honesta, sentirão a
vertigem do abysmo que se cava tenebroso em torno da mente agitada e nelle se
precipitarão” (id., ibid.). Remetendo a exemplos citados por Sighele e Joly,
que se adequariam a esses temperamentos, não deixa de fazer alusão à literatura,
mencionando Là-Bas e fazendo referência à descrição grotesca de uma missa negra
que se encontra nesta obra, sobre a qual comenta: “sordido sacrilegio e abjecta
bacchanal, torcendo os espíritos, como se fossem frageis caniços e rojando os
corpos no pó, revolvendo-os raivosamente na lama infecta de uma volúpia
repellente” (id., p. 51).
Clóvis cita apenas o título: Là-bas.
Em que pese não explicitar a autoria da obra, dificilmente não se trataria de
outra que não o romance de Huysmans, publicado na França em 1891, que aborda o
satanismo contemporâneo. A cena à qual faz referência é, muito provavelmente,
esta:
Então Durtal sentiu-se estremecer, pois um vento de loucura sacudiu o salão. A aura de grande histeria seguiu o sacrilégio e curvou as mulheres; enquanto os meninos do coro incensavam a nudez do pontífice, algumas mulheres se precipitaram no Pão Eucarístico e, de rastros, agarraram-no, arrancaram-lhe pedaços úmidos, beberam e comeram essa divina imundície. [...] Era um barracão de hospício exasperado, uma estufa monstruosa de prostitutas e loucas. Então, enquanto as crianças do coro se aliavam aos homens, a dona da casa subia, retorcida, no altar, empunhando, com uma mão, a haste do crucifixo e, com a outra, o cálice, sob com as pernas nuas; ao fundo da capela, nas sombras, uma criança que ainda não se mexera, subitamente curvou-se para a frente e gritou até à morte, como um cão! (HUYSMANS, J.-K., 1895, p. 378-379)
Clóvis entende que a responsabilidade
do que fosse dominado por uma multidão é menor do que a dos diretores de uma
eventual ação criminosa que demandasse punição. Essa conclusão seria confirmada
tanto pela ciência quando pelo bom senso popular. Tal responsabilidade,
contudo, comportaria limites e gradações que poderiam ser encontrados mediante
a aplicação da teoria da identidade e da finalidade. Importaria, pois,
questionar se o indivíduo permaneceu o mesmo antes e depois do ato cometido,
coordenado este com suas tendências. Sua responsabilidade então seria plena.
Se, todavia, ele encontrasse na multidão apenas um estímulo, algo que agisse
nele como, por exemplo, o álcool, ainda assim, ter-se-ia responsabilidade
plena, embora não no mesmo grau da hipótese anterior. Já nos casos em que
houvesse completa alucinação do agente, transformado pela ação violenta do meio
circundante, a responsabilidade poderia ser inteiramente nula ou, conforme as
circunstâncias, muito restrita. Mas, nos casos em que houvesse uma combinação
de energias convergentes: de um lado, a sugestão de uma ação ilícita cinda do
exterior; de outro, a consonância dessa finalidade ilícita com as tendências
individuais, a responsabilidade do agente sofreria uma gradação, sendo “tanto
maior quanto mais harmonica fôr essa consonancia, quanto mais conservar o homem
a sua feição individual, a sua personalidade no torvelinho das paixões do
grande numero” (id., ibid.).
Referências
Bevilacqua, C. (1896). Criminologia e
Direito. Bahia: Livraria Magalhães.
Huysmans, J.-K. (1895). Là-bas. Paris: Tresse & Stock.
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Esta postagem é um recorte de pesquisa. Trata-se de saber como a chamada psicologia coletiva chegou no Brasil, quem se preocupou com ela, estudando seu funcionamento especialmente com relação aos crimes cometidos por multidões. Entender como se daria esse suposto "contágio", na ausência de vetores biológicos, físicos, concretos, que justificassem uma ação coletiva voltada para um fim ou objetivo específico. Enfim, perguntas sem resposta. O tema, contudo, é bem explorado por Clovis, especialmente porque se ocupa mais em saber quem seriam os suscetíveis, os mais sugestionáveis.
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Mas então,
eram outros os tempos e outros os cenários. Para apreciá-los adequadamente,
contudo, é preciso ter presente que o tempo histórico não é simultâneo nem
obedece à mecânica prosaica de um antes seguido de um depois. O tempo
histórico, cujo caráter narrativo é eminentemente temporal, é tão complexo
quanto o tempo dos homens. Ele pode tanto lançar-se às vanguardas como
petrificar-se sobre o que passou, o que explica a simultaneidade de ideias em
atrito que antecedem à formação de concepções, de conceitos e de categorias como tais, tanto quanto das
verdades que lhes vão servir de alicerce.
Além disso,
história e escrita acontecem simultaneamente, portanto, na temporalidade.
Assim, com razão Jean Kaempfer & Raphaël Micheli (2005) que, para estudar a
temporalidade narrativa, exploraram nossa noção de tempo, dividindo-a em cinco
categorias. Haveria um tempo apriorístico, conceitual, filosófico, portanto.
Haveria um tempo fenomenológico, o tempo de nossas emoções, fonte do passado
memorável que guarda lembranças e recordações. Haveria um tempo antropológico,
substrato rítmico que se alterna entre o sono e a vigília, organicamente
obediente ao corpo e a ele condicionado. Haveria um tempo objetivo, medido por
relógios e calendários e sinalado pelos antes e depois. Finalmente, um tempo
linguístico, fundamento de um não-presente que tem por pressuposto um passado
constituído, um momento de enunciação e uma posteridade situada além da
escrita. Dessa sorte, a temporalidade seria uma dimensão fundamental da conduta
narrativa, — da trama da história, observe-se —, conferindo à experiência
humana um caráter temporal.
E não há
também um tempo das paisagens? Um tempo das metrópoles, célere, apressado; um
tempo das províncias, lento, resistente, de sorte que as datações, embora
certas, porque impregnadas da objetividade dos números, é incerta e inconfiável
sempre que servir de marco histórico.
E é diante
desses ingredientes coletados in natura
em discursos e retratos que se quer descobrir uma psicologia coletiva ainda
nascente, embalada no berço, inconsciente de suas origens, sem dúvida,
jurídicas, mas ainda e, sobretudo, psicológicas, sociológicas, biológicas e,
consequentemente, políticas.
Seja como
for, fato é que o XIX foi marcado pelo poder do saber, que superara o poder da
crença, derrotando a fé, ao menos na prática. A razão, enfim, exultava. O mundo
mudara sua face. A máquina mecanizava também o espírito e recriava as cidades.
A velocidade encurtava as distâncias e, depois dos rios, as ferrovias exerceram
também a missão civilizadora. A produção aumentava e, com ela, o consumo. Os
homens se deslocavam. Arrancados aos lugares onde, por gerações, estiveram
fixados, passam a habitar as periferias das cidades que se hipertrofiam.
Mentalidades tornam-se outras. O próprio tempo se altera quando o apito das
fábricas regula rotinas antes pautadas pelos sinos dos campanários. Escravos de
Jó exercitam o zigue zigue zá na urbs, expostos não mais às forças da natureza,
mas às econômicas, novas regentes dos poderes políticos que, cada vez mais,
passam a sujeitar os homens, os reinos, os estados em suas novas bases. Porque
as antigas fizeram-se saudosamente românticas, ao sabor de Rousseaus e de
Beccarias já distantes. Era preciso repensar o mundo, destituindo-o — não sem
grandes resistências — de todos os resquícios metafísicos herdados da velha
escolástica. Era preciso expulsá-los das almas para poder-se apropriar dos
corpos.
Insista-se
nesse cenário. Ele é nossa introdução. É nosso fundo, ou o palco no qual vai
entrar em cena essa psicologia que nos interessa estudar. É preciso fazê-lo sem perder vista
que ela aparece no mundo suscitada pela emergência de multidões que assumiam um
caráter ameaçador diante daqueles que detinham não apenas a oportunidade de
observá-las, mas ainda a de descrevê-las e de analisá-las, como de fato o
fizeram, deixando-nos um valioso legado documental, tesouro que nos mostra o
nascimento de uma ciência para cuja formação contribuíram jornalistas e
literatos, além de historiadores e cientistas, simplesmente porque o assunto
interessava a todos.
Kaempfer J. & Micheli, R. (2005). La temporalité narrative. Lausanne:
Université de Lausanne. Recuperado de https://www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/tnarrative/tnintegr.html#tnsommar em 05/05/2019.
A Opinião de um Médico Alienista[1]
Nota de Silvio Venturi
A propósito da
discussão entre Sighele e Ferri a respeito da inteligência da multidão, tenho a
dizer que, em certo sentido, estou de acordo com um e com outro (mais com
Sighele que com Ferri), mas eu quero dizer também que considero a coisa de um
ponto de vista diferente.
Vou explicar-me.
O orador que fala a uma multidão encontra nesta multidão o eco
exato de suas próprias palavras, quando ele não faz senão exprimir — e eu
poderia dizer resumir e evocar — ideias e sentimentos que a multidão já possuía
mais ou menos confusos ou inconscientes. Nesse caso, a coletividade encontra no
orador, como no foco de um espelho, o ponto onde sua opinião se reflete e de
onde ela se propaga com uma intensidade multiplicada.
Se, ao contrário, o orador manifesta ideias ou sentimentos que vão
de encontro à opinião pública, ele não é aplaudido nem mesmo compreendido.
Quero lembrar, a propósito, a discussão que Mausdley fez entre os
homens de gênio: existem, de um lado, aqueles que farejam e exprimem as
tendências intelectuais e morais do momento histórico no qual eles vivem;
existem, de outro, os precursores, aqueles que pensam com uma novidade e uma
ousadia que chocam os hábitos comuns. Os primeiros podem obter a glória durante
sua vida, mas esta glória não irá além de sua morte, porque eles são os homens
de seu tempo e eles passam com ele. Os segundos terão uma glória de
além-túmulo, quando se houver chegado a compreender o homem que havia previsto
o amanhã.
Entre essas duas categorias de homens de gênio, existe aquela dos
utopistas, ou seja, a dos homens que, ainda que tenham talento, tem tido a
infelicidade de expor ideias às quais o progresso humano não aquiesce e que, em
conseqüência, permanecem fora da celebridade.
Todos os dias nós assistimos a demonstração prática daquilo que
acabo de dizer. Nas assembleias (sobretudo nas assembleias políticas) os
oradores mais estimados e que dominam como déspotas o seu público são aqueles
que, no fundo, não dizem nada de novo, mas que sabem se aproveitar das paixões
e manejar as ideias fundamentais e comuns[2].
Ao contrário, os verdadeiros inovadores, os pensadores profundos e originais
encontram, necessariamente, a hostilidade e a ironia.
Eis, pois, segundo penso, o erro da polêmica entre Ferri e
Sighele. Este último, reconhecendo que os sentimentos podem se propagar
e se adicionar numa multidão, parece não perceber que isso é devido ao fato de
que os sentimentos são um patrimônio comum, e que o orador não os cria, mas
tão-só os evoca. Em outras palavras, Sighele parece esquecer que, se o orador
arrasta atrás dele o seu público, é porque ele diz... aquilo que o público já
pensava.
Ferri, de seu lado, reconhecendo que não apenas os sentimentos,
mas também as ideias se adicionam e se reforçam numa multidão, é, em minha
opinião, — se ele se limita a constatar que as ideias dos indivíduos que formam
o público se ampliam pela sugestão de um orador de talento, — porque eles
consideram um problema qualquer de um modo menos unilateral e com muito mais de
amplidão e de objetividade.
Após cada discussão pública, podem-se constatar dois fatos
inegáveis: antes de tudo, que a ideia exposta pelo orador será modificada, e,
em segundo lugar, que ela será modificada na opinião de cada um, no sentido de
que não mais será uma ideia extrema e ousada, mas bem uma maneira mais exata e
mais positiva, ainda que menos geral, de ver as coisas. Ela terá ganhado em
extensão, quer dizer, em difusão, aquilo que perdeu em altura, ou seja, em
genialidade.
Eis por que, —
eu repito, — Sighele tem razão, quando diz que, em relação aos produtos
intelectuais, a troca de idéias diminui a intensidade da ideia inicial; e, de
outra parte, Ferri também tem razão, porque a discussão, eliminando o perigo
das utopias, eleva e mesmo corrige a ideia inicial.
Após isso, eu
penso que toda discussão entre sentimentos e idéias, — distinção feita por
Sighele e aceita em parte por Ferri, — é inútil. Tudo depende do grau de
cultura e de moralidade do público ou da multidão à qual o orador se endereça.
Segundo esse grau, um sentimento ou uma ideia podem ser compreendidos ou não,
podem criar o entusiasmo ou deixar os ouvintes indiferentes. Para limitar-me ao
exemplo relatado por Sighele e Ferri, é evidente que Garibaldi pôde arrastar
atrás dele seus compatriotas com a palavra mágica da “unidade da Itália”,
porque, em 1859, essa idéia da unidade de nosso país tornara-se um sentimento
comum. Alguns séculos antes, por exemplo, na época de Dante, e mesmo algumas
dezenas de anos mais cedo, por exemplo, na época napoleônica, essa idéia não
era senão o sonho de algumas individualidades geniais, e não teria conseguido
inflamar o público.
A propósito, para melhor esclarecer meu pensamento, quero lembrar
aqui a teoria do gênio que formulei alhures. O gênio, segundo penso, é um novo
ramo que, de tempos em tempos, se desprende da árvore colossal da atividade
humana. Do mesmo modo, cada variedade biológica provém de uma espécie
preexistente e pode ser considerada como o ponto de partida de uma outra
espécie que irá se desenvolvendo e que se afirmará no amanhã. É por isso que as
idéias do gênio não podem ter um sucesso imediato, da mesma maneira que a variedade
que se anuncia na ordem zoológica ou vegetal não pode ter imediatamente a honra
de ser classificada como uma espécie[3].
Hoje ninguém saberia entusiasmar uma tribo de hindus com a palavra igualdade. Esta mesma palavra encontrou muitos obstáculos, quando foi pronunciada pelos primeiros cristãos e, ao contrário, ela sublevou o mundo, quando foi proclamada pela Revolução Francesa; todavia, ela era o símbolo de uma ideia, assim como hoje. Mas, anteriormente, era a ideia de alguns precursores, ideia estranha e mesmo desconhecida do público; a seguir, esta ideia tornou-se comum e mais: a ideia foi transformada em sentimento.
Sílvio Venturi.
[1] SÍLVIO VENTURINI, o distinto
médico alienista italiano, acreditou, quando da polêmica entre SIGHELE, TARDE e
FERRI, dever intervir no debate por um artigo publicado na Critica Sociale
de 1º de dezembro de 1894. SIGHELE resumiu esse artigo que contém novos
apanhados.
[2] Ver a respeito SIGHELE, Psychologie
des sectes, Giard et Brière, Paris, 1898, p. 195 e seg.
[3] VENTURI, a seguir, desenvolveu
essa idéia em seu livro Le mostruosità dello spirito, Milão, 1899.