sábado, 6 de setembro de 2025

Uma greve em Paris (1907)

“Hoje, ao soar das cinco horas, apagaram-se as lâmpadas elétricas. As lojas, invadidas pela noite, abaixaram suas cortinas; os proprietários dos cafés correram em busca de velas; à noite, a Ópera e todas as salas de espetáculo, com raras exceções, permaneceram fechadas” (id., ibid). A descrição prossegue, falando dos bulevares parisienses que a escuridão tornara proibitivos, e que se enchiam de uma multidão de espectadores decepcionados que prolongavam a vigília refugiados, à luz de velas, nos cafés, mas rapidamente abandonando-os: “. . . à meia-noite, Paris, de ordinário tão viva e brilhante, rapidamente assume o triste aspecto de uma subprefeitura de terceira classe” (id., ibid.). A dramática descrição abre o artigo intitulado La greve des electriciens (1907, março 10), que aparece no Le Temps e, bem ao estilo deste último, lamenta o fato de a vontade de um sindicato haver mergulhado Paris nas trevas. Os interesses gerais seriam assim sacrificados aos interesses corporativos ou “à profundidade do egoísmo sindical” (id., ibid.). Argumentando sobre os prejuízos que teriam sido impostos pela greve aos pequenos artistas, aos cocheiros de fiacres, aos tipógrafos e outros, o artigo questiona como trabalhadores honestos não pensavam, antes de seguirem seus líderes, nos infelizes que padeceriam por conta de sua excitação. Haveria aí, — afirma o articulista —, “uma psicologia coletiva muito lamentável”. O artigo termina com um apelo — que soa patético, talvez —, e que diz: “A ordem está abalada, que ela seja restabelecida!” (id., ibid.).

Referência: La greve des électriciens (1907, março 10). Le Temps, ano 47, n. 16696, Paris, capa. 

--------------------------------------------- 

A notícia publicada pelo jornal Le Temps em 10 de março de 1907, sob o título La grève des électriciens, oferece um retrato ideologicamente carregado do impacto da greve dos eletricistas sobre a vida cotidiana parisiense. O tom dramático da matéria, que descreve uma Paris mergulhada nas trevas, operando à luz de velas e abandonada por sua vibrante vida noturna, revela mais do que uma simples preocupação com a normalidade urbana: escancara o medo burguês diante da força organizada da classe trabalhadora. A escuridão que toma Paris funciona como metáfora estratégia e retórica. Ao destacar que bulevares proibitivos, cafés esvaziados e a Ópera ficou fechada, o jornal descreve um verdadeiro colapso civilizacional. A cidade, símbolo da modernidade e do progresso, é devolvida à idade das trevas por conta da ação de um sindicato. Uma escuridão menos física do que simbólica representa, na visão editorial do Le Temps, o suposto perigo que o poder sindical representa para a ordem social.

A matéria acusa o movimento grevista de egoísmo sindical, expressão que inverte a lógica da ação coletiva. Os trabalhadores, ao reivindicarem melhores condições, não estariam, segundo o jornal, lutando por justiça social, mas sim prejudicando os pequenos artistas, os cocheiros, os tipógrafos — categorias evocadas com aparente compaixão, mas que servem, na verdade, como instrumento retórico para opor trabalhadores contra trabalhadores.

A ideia é patologizar a mobilização coletiva: uma “psychologie collective très fâcheuse”, que revela a maneira como a imprensa da época buscava deslegitimar a ação política da classe operária. O apelo final — “Que a ordem seja restabelecida!” — soa quase desesperado. Não é apenas um chamado à normalidade, mas à submissão. O Le Temps, porta-voz dos interesses da elite republicana e liberal, não admite sequer a possibilidade de negociação real com os sindicatos. A ordem que se deseja restaurar é aquela onde os trabalhadores produzem, consomem e obedecem — mas não falam, não param, e sobretudo, não apagam a luz.

Fundado em 1861 por Auguste NeffzerLe Temps consolidou-se como uma das publicações mais respeitadas da França, seja pelo rigor jornalístico, seja pelo amplo e bem estruturado corpo de correspondentes internacionais. Conservador, defensor da República como regime político e comprometido com a manutenção da ordem social e dos valores burgueses, ao longo das décadas ele foi “l’organe officieux de la diplomatie française”, ou seja, o canal extraoficial por onde circulavam as ideias, os valores e os interesses do Estado francês, especialmente em assuntos de política externa, mas também em relação à política interna, como vimos na cobertura da greve dos eletricistas. O autoencerramento em 1942, durante a ocupação alemã da França, é altamente simbólico. Incapaz de continuar mantendo sua linha editorial sob o jugo nazista e as pressões do regime de Vichy, o jornal opta por desaparecer — um gesto que pode ser visto tanto como resistência quanto como o esgotamento de um projeto político-cultural de longa duração. O Le Temps não foi apenas um jornal: era um instrumento ideológico de hegemonia, no sentido que Antonio Gramsci poderia descrever. Quando lemos a matéria sobre a greve de 1907 sob essa luz, entendemos melhor por que a defesa da “ordem” era tão visceral: tratava-se da defesa do modelo de mundo ao qual o Le Temps servia — um mundo iluminado, sim, mas para poucos.


quinta-feira, 14 de agosto de 2025

URBAIN J. J. LEVERRIER

Quinta-feira, 27 de setembro de 1877

Nossos leitores não terão ficado completamente surpresos com o anúncio da morte do Diretor do Observatório de Paris. Tivemos frequentes ocasiões recentemente para nos referir ao estado insatisfatório da saúde de M. Leverrier, e apenas quinze dias atrás anunciamos seu retorno ao cargo. Ele morreu, no entanto, no domingo passado, aos sessenta e seis anos de idade, curiosamente no trigésimo primeiro aniversário da descoberta de Netuno.

A extensão gigantesca e a utilidade do trabalho de Leverrier foram tais que não é possível, com tão pouco tempo, apresentar algo como uma avaliação digna dele. Portanto, nesta presente nota, contentar-nos-emos em nos referir a alguns dos principais eventos de sua carreira.

Urbain Jean Joseph Leverrier nasceu em St. Lô em 11 de março de 1811. Foi educado na École Polytechnique, onde se distinguiu tanto que lhe foi permitido escolher qual ramo do serviço público desejava ingressar. Ele selecionou um posto na "Administration des Tabacs", e enquanto ocupava essa posição publicou seu primeiro artigo — um artigo químico. Mas logo abandonou a química para se dedicar quase inteiramente à astronomia matemática. Em 1839, contribuiu com dois artigos para a Academia de Paris sobre as variações seculares das órbitas dos planetas. Estes artigos atraíram a atenção de Arago, que solicitou a Leverrier que calculasse novamente as perturbações de Mercúrio com referência à atração de outros corpos. Pode-se dizer que este foi o início do grande trabalho que ele levou adiante até sua morte, e com o qual seu nome será para sempre associado.

A natureza e a extensão estupenda deste trabalho foram admiravelmente declaradas pelo Prof. Adams, ao apresentar no ano passado a Leverrier a medalha de ouro da Sociedade Astronômica. Este discurso é referido em outro lugar. Embora desviado por um pouco para a arena política pelos eventos de 1848, ele nunca descontinuou seu trabalho em conexão com as órbitas planetárias. Enquanto estava na Assembleia Legislativa, como membro por seu departamento natal, La Manche, ele deu sua atenção principalmente a assuntos conectados com educação pública e descobertas científicas. Ele teve muita influência nessas direções, e é em grande parte devido a ele que a École Polytechnique atingiu sua presente alta organização. Em 1852, Leverrier foi Senador e Inspetor-Geral da Educação Superior. Com a morte de Arago, Leverrier, como era de se esperar, foi nomeado para sucedê-lo como chefe do Observatório de Paris. Aquela instituição ele encontrou em uma condição muito desorganizada e completamente insatisfatória, e Leverrier se dedicou seriamente a elevá-la ao nível que deveria ocupar. Um trabalho desse tipo ele não podia realizar sem ofender muitos interessados na continuação dos velhos métodos. Na verdade, o governo rígido de Leverrier causou tal descontentamento entre sua equipe, que o Governo foi realmente compelido a demitir o grande astrônomo de seu posto em 1870; ele foi, no entanto, restaurado novamente em 1873.

Embora o grande trabalho de Leverrier fosse na esfera da astronomia matemática, ele de modo algum negligenciou outros departamentos da ciência conectados com o trabalho de um observatório. A ele se deve principalmente a organização do serviço meteorológico existente na França, que depende largamente do esforço local. Ele estava sempre pronto a proporcionar facilidades para outros realizarem suas próprias pesquisas dentro dos recintos do Observatório, e ele viu com prazer a ereção de novos Observatórios tanto em Paris quanto nas províncias.

"Se não por outros motivos além dos egoístas", para citar a nota do Times, "a Inglaterra, como um país marítimo, não pode deixar de prestar uma homenagem de respeito a um homem cujo trabalho foi da maior importância prática na construção de tabelas usadas para guiar navios através dos mares. Nem a Inglaterra foi, de fato, mesquinha em prestar-lhe honra. Em quatro ocasiões, palavras vivas de respeito e amizade da Inglaterra foram dirigidas a M. Leverrier por presidentes da Royal Society e da Royal Astronomical Society ao apresentar medalhas, que são por tradição consideradas como a mais alta homenagem que as sociedades podem oferecer de sua apreciação do valor do trabalho feito. Em 1846, a Royal Society, sob a presidência de Lord Northampton, apresentou-lhe a medalha Copley. Em 1848, a Royal Astronomical Society, sob a presidência de Sir John Herschel, concedeu um testemunho; em 1868, sob a presidência do Professor Saviliano, a medalha de ouro; e novamente em 1876, sob a presidência do Prof. Adams, o 'rival' de M. Leverrier na descoberta de Netuno, uma segunda medalha de ouro. Há dois anos, a Universidade de Cambridge, por sugestão do Prof. Adams, conferiu-lhe o grau honorário de LLD. Talvez o reconhecimento mais valorizado, porque mais prático, que podia ser oferecido foi o fato de que por anos suas tabelas foram empregadas em nosso 'Nautical Almanac', substituindo todas as outras para o cálculo das posições dos planetas."

O trabalho de Leverrier foi de tal valor para uma nação marítima que uma marca de apreciação por parte de nosso Governo, assim como por parte de nossas sociedades, não teria sido fora de lugar. No funeral na terça-feira, a ciência inglesa foi representada pelo Sr. Hind, o distinto superintendente do Nautical Almanac — esperamos em uma capacidade oficial assim como em sua capacidade privada.

M. Leverrier foi Inspetor-Geral das Universidades, uma das mais altas dignidades na Legião de Honra, e membro de quase toda Academia e ordem de mérito no mundo. De seus dois filhos, um morreu há dois anos, e o outro é engenheiro na Ponts et Chaussées. Madame Leverrier não tem estado bem por um longo período, e sem dúvida o choque da morte de seu marido afetará sua constituição.

Devido à grande perda sofrida pela ciência na morte de Leverrier, a Academia de Ciências de Paris fechou sua sessão na segunda-feira imediatamente após a carta de M. Tresca anunciando o triste evento ter sido lida: M. Tresca foi capaz de declarar que o grande trabalho da vida de Leverrier havia acabado de ser completado.


Referência: Nature. (1877, September 27). Urban J. J. Leverrier. Nature, 16(41), 549-550. Disponível em: https://www.nature.com/articles/016453a0

domingo, 3 de agosto de 2025

INQUISIÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO SÉCULO XVII: o julgamento de Giulio Cesare Lucílio Vanini, o inimigo da fé

 


Em 1619, na cidade de Toulouse, um homem teve sua língua cortada antes de ser queimado pela Santa Inquisição. Seu crime? Defender ideias consideradas ateístas e questionar os dogmas estabelecidos. Este homem era Giulio Cesare Lucilio Vanini, filósofo italiano que se tornou símbolo da resistência intelectual contra o poder clerical.
INQUISIÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO SÉCULO XVII: O JULGAMENTO DE GIULIO CESARE LUCÍLIO VANINI, O INIMIGO DA FÉ conta a história deste pensador de quem não se fala muito atualmente. Seu martírio, contudo, mostra como técnicas de silenciamento, quase sempre seguidas do linchamento moral do suposto inimigo, foram usadas em tempos de tensões políticas, religiosas e sociais da França sob Luís XIII. Não se trata apenas da biografia de Vanini, mas de um estudo voltado ao contexto histórico de sua execução.
As dinâmicas de poder entre Igreja e Estado no século XVII apontavam para um período marcado pelas consequências da Reforma e da Contrarreforma. Vanini surge como figura emblemática de uma época em que o catolicismo lutava para manter sua hegemonia diante das novas correntes de pensamento que emergiam do Renascimento. Seu julgamento e execução exemplificam a "pedagogia do medo" utilizada pelas autoridades para controlar dissidentes e manter a ordem social estabelecida.
Como fontes, foram utilizados documentos como a Histoire véritable de tout ce qui s'est fait et passé depuis le premier janvier 1619 ― um relato anônimo contemporâneo ao julgamento ― e materiais do L'Archivio dei filosofi del Rinascimento. São as narrativas oficiais e populares, analisadas de perto neste livro, que construíram a imagem de Vanini como "inimigo da fé". Panfletos sensacionalistas da época contribuíram para demonizar o filósofo, associando-o a práticas heréticas e criando um clima de terror em Toulouse.
Para além do contexto biográfico, trata-se de um estudo dos mecanismos de controle social e repressão intelectual, que mostra como o século XVII lidava com questões fundamentais como liberdade de expressão, autoridade religiosa e pensamento crítico. O caso Vanini ilumina os conflitos entre razão e fé, individualidade e conformidade social.
Um livro para compreender:

  • As dinâmicas de poder no século XVII francês
  • Os mecanismos da Inquisição e do controle social
  • A biografia de um filósofo que morreu pela liberdade de pensamento
  • As tensões entre Igreja e Estado na França de Luís XIII
  • As origens históricas dos debates sobre liberdade de expressão

Homenagem à memória de um homem que morreu sem renunciar às suas convicções.

Disponível em:  https://www.amazon.com.br/dp/B0FJZGW15P

sexta-feira, 4 de julho de 2025

A Magia dos Almanaques

Eu amo almanaques! Se forem antigos, então, amo mais ainda. Especialmente quando examino a redação e o estilo dos textos publicitários ­— os reclames de antigamente — que me parecem encantadores em sua simplicidade. Almanaques são fontes preciosas, porque eles traduzem um modo de vida. Direcionados à sociedade em geral, neles se expressa a credulidade comum a vidas prosaicas, o apego às tradições e à sinceridade de intenções.

Mas, afinal, o que é um almanaque? Em termos literários, almanaque é um gênero textual que combina informações práticas, como calendários, palavras cruzadas, previsões, anedotas, astrologia, conselhos de saúde etc. Enfim, curiosidades frequentemente apresentadas de forma acessível e atraente. Historicamente, esses compêndios serviram como guias para a vida cotidiana, oferecendo desde dicas de jardinagem até previsões meteorológicas, passando por receitas, ditados populares e outras coisas.

O estilo é marcado por uma linguagem clara e direta, que busca estabelecer certa intimidade com o leitor, não apenas por uma escolha estética, mas também — e principalmente — porque se trata de algo que traduz o presente, que traduz a própria época, retratando hábitos e costumes. Por tudo isso, almanaques também desempenham um papel importante na memória coletiva. Eles dão testemunhos das respectivas épocas, preservando informações e também a forma como as pessoas pensavam e se relacionavam com o mundo. À medida que a sociedade evolui, a maneira como nos lembramos e registramos nossas experiências também muda. Os almanaques, com seu formato tão peculiar, abrem janelas para o passado.

Portanto, ao folhear um almanaque antigo, não estamos apenas revisitando informações; estamos diante de um fragmento real da história, de uma forma de arte literária que, apesar de sua simplicidade, carrega consigo a complexidade da experiência humana. Por isso é tão importante valorizar esses relicários do passado e aprender com as lições que eles nos oferecem.

Na foto, alguns exemplares da minha biblioteca: o muito popular “Almanaque d’A Saúde da Mulher”, 1938. Almanach Bertrand, 1917 e 1927, e Almanach Hachette, 1933.