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A notícia publicada pelo jornal Le Temps em 10 de março de 1907, sob o título La grève des électriciens, oferece um retrato ideologicamente carregado do impacto da greve dos eletricistas sobre a vida cotidiana parisiense. O tom dramático da matéria, que descreve uma Paris mergulhada nas trevas, operando à luz de velas e abandonada por sua vibrante vida noturna, revela mais do que uma simples preocupação com a normalidade urbana: escancara o medo burguês diante da força organizada da classe trabalhadora. A escuridão que toma Paris funciona como metáfora estratégia e retórica. Ao destacar que bulevares proibitivos, cafés esvaziados e a Ópera ficou fechada, o jornal descreve um verdadeiro colapso civilizacional. A cidade, símbolo da modernidade e do progresso, é devolvida à idade das trevas por conta da ação de um sindicato. Uma escuridão menos física do que simbólica representa, na visão editorial do Le Temps, o suposto perigo que o poder sindical representa para a ordem social.
A matéria acusa o movimento grevista de egoísmo sindical, expressão que inverte a lógica da ação coletiva. Os trabalhadores, ao reivindicarem melhores condições, não estariam, segundo o jornal, lutando por justiça social, mas sim prejudicando os pequenos artistas, os cocheiros, os tipógrafos — categorias evocadas com aparente compaixão, mas que servem, na verdade, como instrumento retórico para opor trabalhadores contra trabalhadores.
A ideia é patologizar a mobilização coletiva: uma “psychologie collective très fâcheuse”, que revela a maneira como a imprensa da época buscava deslegitimar a ação política da classe operária. O apelo final — “Que a ordem seja restabelecida!” — soa quase desesperado. Não é apenas um chamado à normalidade, mas à submissão. O Le Temps, porta-voz dos interesses da elite republicana e liberal, não admite sequer a possibilidade de negociação real com os sindicatos. A ordem que se deseja restaurar é aquela onde os trabalhadores produzem, consomem e obedecem — mas não falam, não param, e sobretudo, não apagam a luz.
Fundado em 1861 por Auguste Neffzer, Le Temps consolidou-se como uma das publicações mais respeitadas da França, seja pelo rigor jornalístico, seja pelo amplo e bem estruturado corpo de correspondentes internacionais. Conservador, defensor da República como regime político e comprometido com a manutenção da ordem social e dos valores burgueses, ao longo das décadas ele foi “l’organe officieux de la diplomatie française”, ou seja, o canal extraoficial por onde circulavam as ideias, os valores e os interesses do Estado francês, especialmente em assuntos de política externa, mas também em relação à política interna, como vimos na cobertura da greve dos eletricistas. O autoencerramento em 1942, durante a ocupação alemã da França, é altamente simbólico. Incapaz de continuar mantendo sua linha editorial sob o jugo nazista e as pressões do regime de Vichy, o jornal opta por desaparecer — um gesto que pode ser visto tanto como resistência quanto como o esgotamento de um projeto político-cultural de longa duração. O Le Temps não foi apenas um jornal: era um instrumento ideológico de hegemonia, no sentido que Antonio Gramsci poderia descrever. Quando lemos a matéria sobre a greve de 1907 sob essa luz, entendemos melhor por que a defesa da “ordem” era tão visceral: tratava-se da defesa do modelo de mundo ao qual o Le Temps servia — um mundo iluminado, sim, mas para poucos.