quinta-feira, 14 de agosto de 2025

URBAIN J. J. LEVERRIER

Quinta-feira, 27 de setembro de 1877

Nossos leitores não terão ficado completamente surpresos com o anúncio da morte do Diretor do Observatório de Paris. Tivemos frequentes ocasiões recentemente para nos referir ao estado insatisfatório da saúde de M. Leverrier, e apenas quinze dias atrás anunciamos seu retorno ao cargo. Ele morreu, no entanto, no domingo passado, aos sessenta e seis anos de idade, curiosamente no trigésimo primeiro aniversário da descoberta de Netuno.

A extensão gigantesca e a utilidade do trabalho de Leverrier foram tais que não é possível, com tão pouco tempo, apresentar algo como uma avaliação digna dele. Portanto, nesta presente nota, contentar-nos-emos em nos referir a alguns dos principais eventos de sua carreira.

Urbain Jean Joseph Leverrier nasceu em St. Lô em 11 de março de 1811. Foi educado na École Polytechnique, onde se distinguiu tanto que lhe foi permitido escolher qual ramo do serviço público desejava ingressar. Ele selecionou um posto na "Administration des Tabacs", e enquanto ocupava essa posição publicou seu primeiro artigo — um artigo químico. Mas logo abandonou a química para se dedicar quase inteiramente à astronomia matemática. Em 1839, contribuiu com dois artigos para a Academia de Paris sobre as variações seculares das órbitas dos planetas. Estes artigos atraíram a atenção de Arago, que solicitou a Leverrier que calculasse novamente as perturbações de Mercúrio com referência à atração de outros corpos. Pode-se dizer que este foi o início do grande trabalho que ele levou adiante até sua morte, e com o qual seu nome será para sempre associado.

A natureza e a extensão estupenda deste trabalho foram admiravelmente declaradas pelo Prof. Adams, ao apresentar no ano passado a Leverrier a medalha de ouro da Sociedade Astronômica. Este discurso é referido em outro lugar. Embora desviado por um pouco para a arena política pelos eventos de 1848, ele nunca descontinuou seu trabalho em conexão com as órbitas planetárias. Enquanto estava na Assembleia Legislativa, como membro por seu departamento natal, La Manche, ele deu sua atenção principalmente a assuntos conectados com educação pública e descobertas científicas. Ele teve muita influência nessas direções, e é em grande parte devido a ele que a École Polytechnique atingiu sua presente alta organização. Em 1852, Leverrier foi Senador e Inspetor-Geral da Educação Superior. Com a morte de Arago, Leverrier, como era de se esperar, foi nomeado para sucedê-lo como chefe do Observatório de Paris. Aquela instituição ele encontrou em uma condição muito desorganizada e completamente insatisfatória, e Leverrier se dedicou seriamente a elevá-la ao nível que deveria ocupar. Um trabalho desse tipo ele não podia realizar sem ofender muitos interessados na continuação dos velhos métodos. Na verdade, o governo rígido de Leverrier causou tal descontentamento entre sua equipe, que o Governo foi realmente compelido a demitir o grande astrônomo de seu posto em 1870; ele foi, no entanto, restaurado novamente em 1873.

Embora o grande trabalho de Leverrier fosse na esfera da astronomia matemática, ele de modo algum negligenciou outros departamentos da ciência conectados com o trabalho de um observatório. A ele se deve principalmente a organização do serviço meteorológico existente na França, que depende largamente do esforço local. Ele estava sempre pronto a proporcionar facilidades para outros realizarem suas próprias pesquisas dentro dos recintos do Observatório, e ele viu com prazer a ereção de novos Observatórios tanto em Paris quanto nas províncias.

"Se não por outros motivos além dos egoístas", para citar a nota do Times, "a Inglaterra, como um país marítimo, não pode deixar de prestar uma homenagem de respeito a um homem cujo trabalho foi da maior importância prática na construção de tabelas usadas para guiar navios através dos mares. Nem a Inglaterra foi, de fato, mesquinha em prestar-lhe honra. Em quatro ocasiões, palavras vivas de respeito e amizade da Inglaterra foram dirigidas a M. Leverrier por presidentes da Royal Society e da Royal Astronomical Society ao apresentar medalhas, que são por tradição consideradas como a mais alta homenagem que as sociedades podem oferecer de sua apreciação do valor do trabalho feito. Em 1846, a Royal Society, sob a presidência de Lord Northampton, apresentou-lhe a medalha Copley. Em 1848, a Royal Astronomical Society, sob a presidência de Sir John Herschel, concedeu um testemunho; em 1868, sob a presidência do Professor Saviliano, a medalha de ouro; e novamente em 1876, sob a presidência do Prof. Adams, o 'rival' de M. Leverrier na descoberta de Netuno, uma segunda medalha de ouro. Há dois anos, a Universidade de Cambridge, por sugestão do Prof. Adams, conferiu-lhe o grau honorário de LLD. Talvez o reconhecimento mais valorizado, porque mais prático, que podia ser oferecido foi o fato de que por anos suas tabelas foram empregadas em nosso 'Nautical Almanac', substituindo todas as outras para o cálculo das posições dos planetas."

O trabalho de Leverrier foi de tal valor para uma nação marítima que uma marca de apreciação por parte de nosso Governo, assim como por parte de nossas sociedades, não teria sido fora de lugar. No funeral na terça-feira, a ciência inglesa foi representada pelo Sr. Hind, o distinto superintendente do Nautical Almanac — esperamos em uma capacidade oficial assim como em sua capacidade privada.

M. Leverrier foi Inspetor-Geral das Universidades, uma das mais altas dignidades na Legião de Honra, e membro de quase toda Academia e ordem de mérito no mundo. De seus dois filhos, um morreu há dois anos, e o outro é engenheiro na Ponts et Chaussées. Madame Leverrier não tem estado bem por um longo período, e sem dúvida o choque da morte de seu marido afetará sua constituição.

Devido à grande perda sofrida pela ciência na morte de Leverrier, a Academia de Ciências de Paris fechou sua sessão na segunda-feira imediatamente após a carta de M. Tresca anunciando o triste evento ter sido lida: M. Tresca foi capaz de declarar que o grande trabalho da vida de Leverrier havia acabado de ser completado.


Referência: Nature. (1877, September 27). Urban J. J. Leverrier. Nature, 16(41), 549-550. Disponível em: https://www.nature.com/articles/016453a0

domingo, 3 de agosto de 2025

INQUISIÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO SÉCULO XVII: o julgamento de Giulio Cesare Lucílio Vanini, o inimigo da fé

 


Em 1619, na cidade de Toulouse, um homem teve sua língua cortada antes de ser queimado pela Santa Inquisição. Seu crime? Defender ideias consideradas ateístas e questionar os dogmas estabelecidos. Este homem era Giulio Cesare Lucilio Vanini, filósofo italiano que se tornou símbolo da resistência intelectual contra o poder clerical.
INQUISIÇÃO E CONTROLE SOCIAL NO SÉCULO XVII: O JULGAMENTO DE GIULIO CESARE LUCÍLIO VANINI, O INIMIGO DA FÉ conta a história deste pensador de quem não se fala muito atualmente. Seu martírio, contudo, mostra como técnicas de silenciamento, quase sempre seguidas do linchamento moral do suposto inimigo, foram usadas em tempos de tensões políticas, religiosas e sociais da França sob Luís XIII. Não se trata apenas da biografia de Vanini, mas de um estudo voltado ao contexto histórico de sua execução.
As dinâmicas de poder entre Igreja e Estado no século XVII apontavam para um período marcado pelas consequências da Reforma e da Contrarreforma. Vanini surge como figura emblemática de uma época em que o catolicismo lutava para manter sua hegemonia diante das novas correntes de pensamento que emergiam do Renascimento. Seu julgamento e execução exemplificam a "pedagogia do medo" utilizada pelas autoridades para controlar dissidentes e manter a ordem social estabelecida.
Como fontes, foram utilizados documentos como a Histoire véritable de tout ce qui s'est fait et passé depuis le premier janvier 1619 ― um relato anônimo contemporâneo ao julgamento ― e materiais do L'Archivio dei filosofi del Rinascimento. São as narrativas oficiais e populares, analisadas de perto neste livro, que construíram a imagem de Vanini como "inimigo da fé". Panfletos sensacionalistas da época contribuíram para demonizar o filósofo, associando-o a práticas heréticas e criando um clima de terror em Toulouse.
Para além do contexto biográfico, trata-se de um estudo dos mecanismos de controle social e repressão intelectual, que mostra como o século XVII lidava com questões fundamentais como liberdade de expressão, autoridade religiosa e pensamento crítico. O caso Vanini ilumina os conflitos entre razão e fé, individualidade e conformidade social.
Um livro para compreender:

  • As dinâmicas de poder no século XVII francês
  • Os mecanismos da Inquisição e do controle social
  • A biografia de um filósofo que morreu pela liberdade de pensamento
  • As tensões entre Igreja e Estado na França de Luís XIII
  • As origens históricas dos debates sobre liberdade de expressão

Homenagem à memória de um homem que morreu sem renunciar às suas convicções.

Disponível em:  https://www.amazon.com.br/dp/B0FJZGW15P

sexta-feira, 4 de julho de 2025

A Magia dos Almanaques

Eu amo almanaques! Se forem antigos, então, amo mais ainda. Especialmente quando examino a redação e o estilo dos textos publicitários ­— os reclames de antigamente — que me parecem encantadores em sua simplicidade. Almanaques são fontes preciosas, porque eles traduzem um modo de vida. Direcionados à sociedade em geral, neles se expressa a credulidade comum a vidas prosaicas, o apego às tradições e à sinceridade de intenções.

Mas, afinal, o que é um almanaque? Em termos literários, almanaque é um gênero textual que combina informações práticas, como calendários, palavras cruzadas, previsões, anedotas, astrologia, conselhos de saúde etc. Enfim, curiosidades frequentemente apresentadas de forma acessível e atraente. Historicamente, esses compêndios serviram como guias para a vida cotidiana, oferecendo desde dicas de jardinagem até previsões meteorológicas, passando por receitas, ditados populares e outras coisas.

O estilo é marcado por uma linguagem clara e direta, que busca estabelecer certa intimidade com o leitor, não apenas por uma escolha estética, mas também — e principalmente — porque se trata de algo que traduz o presente, que traduz a própria época, retratando hábitos e costumes. Por tudo isso, almanaques também desempenham um papel importante na memória coletiva. Eles dão testemunhos das respectivas épocas, preservando informações e também a forma como as pessoas pensavam e se relacionavam com o mundo. À medida que a sociedade evolui, a maneira como nos lembramos e registramos nossas experiências também muda. Os almanaques, com seu formato tão peculiar, abrem janelas para o passado.

Portanto, ao folhear um almanaque antigo, não estamos apenas revisitando informações; estamos diante de um fragmento real da história, de uma forma de arte literária que, apesar de sua simplicidade, carrega consigo a complexidade da experiência humana. Por isso é tão importante valorizar esses relicários do passado e aprender com as lições que eles nos oferecem.

Na foto, alguns exemplares da minha biblioteca: o muito popular “Almanaque d’A Saúde da Mulher”, 1938. Almanach Bertrand, 1917 e 1927, e Almanach Hachette, 1933.

domingo, 29 de junho de 2025

Competências Fora de Lugar: Victor Cousin e o julgamento de Lucilio Vanini

Uma reflexão sobre os perigos do ecletismo metodológico na pesquisa acadêmica

Em 1843, a prestigiosa Revue des Deux Mondes publicou um artigo sobre o filósofo italiano Lucilio Vanini, executado em Toulouse em 1619. O autor era Victor Cousin, um dos mais respeitados intelectuais franceses da época, fundador da Escola Eclética e futuro Ministro da Instrução Pública. O artigo era eloquente, erudito, bem estruturado, porém, problemático do ponto de vista metodológico. Cousin baseou suas conclusões em documentos de autenticidade duvidosa, incluindo o suposto manuscrito de um escrivão chamado Malenfant. Cousin também admitiu usar cópias de documentos sem questionar suas condições de produção, origem ou intencionalidade política.

Como um intelectual de tamanha envergadura cometeu erros tão elementares? O exemplo de Cousin ilustra uma prática que transcende sua época, qual seja, o do exercício de uma competência fora de lugar. Ele era, sem dúvida, um homem notável de formação eclética, que combinava idealismo alemão, racionalismo cartesiano e empirismo escocês. Excelente para uma síntese filosófica, mas desastroso para pesquisa histórica. O ecletismo filosófico busca harmonizar correntes diversas, encontrar sínteses conciliadoras, construir sistemas abrangentes. Já a pesquisa histórica exige o exercício de uma desconfiança sistemática, não despensa análise das condições de produção dos documentos, além de rigorosa verificação de autenticidade, em falar em sua contextualização. Portanto, está-se diante de áreas do saber que têm pressupostos teóricos e metodológicos completamente distintos.

Não há nada de errado com o ecletismo, desde que se mantenham claros os pressupostos teóricos e metodológicos de cada área. Um behaviorista e um fenomenólogo, por exemplo, não obstante ligados à psicologia, podem enriquecer mutuamente a compreensão do comportamento humano, mas não poderiam misturar suas abordagens sem critério, visto que cada um parte de pressupostos distintos que exigem metodologias específicas. O mesmo vale para outras áreas. Um economista pode se beneficiar da sociologia, mas não pode aplicar modelos matemáticos a fenômenos que exigem análise qualitativa.Um antropólogo pode dialogar com a neurociência, mas não pode reduzir cultura a sinapses. Portanto, um historiador pode se inspirar na literatura, mas não pode tratar ficção como documento.

Cousin se deixou seduzir pela eloquência dos documentos que analisou. O suposto manuscrito de Malenfant era dramaticamente perfeito: tinha vilões, heróis, reviravoltas, uma moral edificante. Encaixava-se perfeitamente na narrativa que Cousin queria contar sobre o conflito entre razão e fé. Mas pesquisa não é literatura, e eloquência retórica não substitui rigor argumentativo. Por mais belo que seja um texto, por mais que impressione pela eloquência, suas informações só podem ser utilizadas após determinarmos:

  • Tempo: quando foi produzido?
  • Circunstância: quem o produziu, com que interesse, em que contexto?
  • Método: que procedimentos foram seguidos?
  • Pressuposto: que visão de mundo orienta o texto?

Sem isso, como dizia minha professora, fazemos "buracos na água" e "damos pontos sem nó". O caso Cousin nos alerta para um problema muito atual: a era da informação multiplicou as possibilidades de ecletismo, mas também os riscos de confusão metodológica. Vivemos tempos em que dados quantitativos são tratados como verdades absolutas, independente da metodologia de coleta. Vemos correlações estatísticas apresentadas como relações causais, sem falar em opiniões pessoais equiparadas a análises técnicas.

A solução não é abandonar o diálogo entre áreas. Pelo contrário, ele é essencial ao avanço do conhecimento. Mas toda pesquisa, toda análise, toda afirmação que pretenda atingir status de validação acadêmica deve deixar claros dois pontos fundamentais, quais sejam, o pressuposto teórico que orientou a investigação e a metodologia que determinou as conclusões obtidas. Só assim evitamos que nossas competências sejam aplicadas fora de lugar.

Porque, no final das contas, não basta ser eloquente. É preciso ser rigoroso.

Instituto de Humanidades. (s.d.). Cousin, Victor. Instituto de Humanidades. http://www.institutodehumanidades.com.br/index.php/c/208-cousin-victor

Cousin, V. (1843) Vanini, ses écrits, sa vie et sa mort, pp. 674-728, in «Revue des Deux Mondes», 2 e pér., année XIII, nouvelle série, t. IV.Paris, Au Bureau de la Revue des Deux Mondes, 1843, 1038