
Pode-se também dizer que o cristianismo é a
“religião” do homem moderno e do homem histórico — daquele que descobriu
simultaneamente a liberdade pessoal e o tempo contínuo (em lugar do tempo
cíclico). Também é interessante notar que a existência de Deus se impunha com
muito maior urgência ao homem moderno — para quem a história existe como tal,
como história e não como repetição — do que ao homem das culturas arcaicas e
tradicionais, o qual, para se defender do terror da história, dispunha de todos
os mitos, ritos e comportamentos mencionados ao longo deste livro. Além disso,
ainda que a ideia de Deus e as experiências religiosas que ela implica
existissem desde os tempos mais remotos, puderam às vezes ser substituídas por
outras “formas” religiosas (totemismo, culto dos antepassados, grandes deusas
da fecundidade etc.), que respondiam com mais prontidão às necessidades
religiosas da humanidade “primitiva”. No horizonte dos arquétipos e da
repetição, o terror da história, quando se manifestava, podia ser suportado.
Desde a “invenção” da fé no sentido judaico-cristão do termo (isto é, a de que
para Deus tudo é possível), o homem, afastado do horizonte dos arquétipos e da
repetição, não pode defender-se desse terror senão por meio da ideia de Deus. Com
efeito, somente pressupondo a existência de Deus, o homem conquista, por um
lado, a liberdade (que lhe concede autonomia em um universo regido por leis —
ou, em outros termos, a “inauguração” de um modo de ser novo e único no
universo) e, por outro, a certeza de que as tragédias históricas possuem um
significado trans-histórico, ainda que esse significado nem sempre seja
evidente para a atual condição humana. Toda outra situação do homem moderno
conduz, em última instância, ao desespero — um desespero provocado não por sua
própria existencialidade humana, mas por sua presença em um universo histórico
no qual a quase totalidade dos seres humanos vive atormentada por um terror
contínuo (ainda que nem sempre consciente). Nesse aspecto, o cristianismo se
afirma sem discussão como a religião do “homem caído em desgraça”: e isso na
medida em que o homem moderno está irremediavelmente integrado à história e ao
progresso — e em que a história e o progresso são quedas que implicam o
abandono definitivo do paraíso dos arquétipos e da repetição.
Fonte: Eliade, M.
(1951). Le mythe de l’éternel retour:
Archétypes et répétitions (R. Anaya, Trad.). Edición digital:
epublibre (EPL). Conversión a PDF: FS, 2020. Editor digital: Mandius. (Obra
original publicada em 1949)
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Pode-se compreender, à luz do que diz Eliade, que
o chamado “destino histórico” surge como o fio condutor dos povos modernos —
uma forma de esperança projetada para o futuro. A história, entendida não mais
como repetição. E veja-se que repetir não é jamais fatal, porque tudo volta a ser. Todavia, a história, para o homem moderno, é irreversível e, pensada assim, torna-se um espaço
onde se inscreve a promessa de redenção. Já não importa o presente imediato, porquanto ele deve justificar o amanhã promissor. Há um sentido final que a história parece assinar: individualmente, a salvação;
coletivamente, a glória eterna. Sempre a esperança. Entre os antigos, o tempo mítico situava-se em
sentido oposto. O paraíso, a Idade do Ouro, o nascimento do primeiro herói —
tudo isso pertencia ao passado primordial, à origem luminosa que se buscava
reatualizar pelos ritos e mitos. O cristianismo, ao contrário, desloca o eixo:
o paraíso deixa de estar atrás de nós e passa a ser promessa, não lembrança. A
esperança substitui a repetição; o futuro toma o lugar do mito. Assim, a “queda
na história” que Eliade descreve é também a descoberta de um novo modo de ser —
trágico e, ao mesmo tempo, fecundo. Pois é no tempo linear, sob o
peso da ideia do progresso e diante da perda do eterno retorno, que o homem deve entrever a
possibilidade de uma salvação pessoal e de uma redenção universal.
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