sexta-feira, 27 de julho de 2012

Complicado

Tem horas que penso que tudo é linguagem, porque tudo, enfim, se interpreta, ainda que o meramente descritivo. Ando pela cidade e fotografo coisas, macros, segmentos que depois se revelam parte de mim, quando, através deles, alcanço significados e atribuo sentidos a pensamentos e sentimentos que adquirem assim alguma nitidez, algum inesperado brilho, surpresa, susto...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

PROVÍNCIAS & METRÓPOLES
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
O migrante às avessas está se preparando para reconhecer a si mesmo. Vai mudar de cidade. Sofrerá o doloroso processo de internalizar uma nova paisagem, e terá de ser hermeneuta de um simbolismo com o qual apenas sonhara de passagem. Espaços reduzidos nos tornam muito mais visíveis aos outros, como nos fazem também muito mais visíveis a nós mesmos. A província é assim, toda feita de casas de vidro, de transparências, de percepções marcadas pelo que é quase imperceptível.

“As pequenas cidades possuem uma realidade constrangedora que não é feita para pensar nem sentir, porque simplesmente é.”
As sensibilidades são atiladas, e nada passa despercebido, porque em tudo se põe reparo. Haverá discussões sobre o banheiro, e por certo a ousadia de mudar a forma do lavatório será assunto. A tal namorada do sul, que vai e vem, vem e volta, que não mora junto, que etc. Especula-se. Cogita-se. A província é toda curiosidade.
A casa é refeita. Portas, janelas, detalhes. Ousadias. Um computador. Um homem só, que não se sente só, porque sua solidão é iluminada. É bonito, desenvolto, alto e de um falar firme que sabe ser manso e carinhoso. Ele tem mãos bonitas e quentes. Tem olhos muito azuis que já viram tudo e que mediram os horizontes de terras e mares. Chegou com mania de alterar as pequenas coisas, logo estas, que são dentre todas as mais sagradas, porque as grandes não mudam nunca.
O homem que se passeia por aí de vez em quando, e que olha a cidade para onde vai, a casa, as pessoas, as coisas, a grande pedra. Vem de longe e olha. Estranha os hábitos, inquieta-se com as manias. Interioriza-se, assimilando o ambiente. Ele fala outra língua, sem dobras, sem ais, sem erres dobrados, sem singelezas, com letras pronunciadas uma por uma. Assim as roupas, os modos, as esquisitices. Assim ele próprio. Bem assim.
Ele tem dessa simplicidade ensaiada contraída como doença no viver por aí, se encontrando e se despedindo de tudo e de todos. O homem que construiu muitas casas imensas, mas que, de seu, só teve mesmo foram quartos de hotel e lembranças, memórias de coisas idas e de encontros desencontrados, porque as esquinas do mundo nunca se repetem, e tudo durou pouco, ainda o que durasse muito, demais.
E assim o migrante partiu sempre. Se foi. Agora se vem. Está chegando e parece que sente que nunca saiu.  O migrante se vê às avessas, porque as pequenas cidades têm a grandeza daquilo que é paradoxal. É a diferença de São Paulo, imensa, onde a gente se dilui completamente e desfruta do sentimento maravilhoso de ser ninguém. E pode-se sempre, quando se quer, tornar-se alguém, para quem se escolhe aparecer, com a urgência de tudo o que tem a eternidade do instante que não se repete, e que cicatriza a dor de qualquer separação.
O sentir-se desnecessário e inútil é a maior das realizações, porque gera a liberdade que se pensa conhecer muito bem, mas que é apenas interior e teórica. São Paulo é despedir-se de si, dos outros, de tudo. São Paulo tem o adeus dos grandes encontros de até nunca mais. Mas as cidadezinhas pequenas, estas são para sempre, e nelas não existe adeus, nem morte, porque os mortos apenas se
“A casa é refeita. Portas, janelas, detalhes. Ousadias. Um computador. Um homem só, que não se sente só, porque sua solidão é iluminada.”
mudam para bem perto, para logo ali, no cemitério onde cada família já tem reservado o seu terreno, a parte que lhe cabe naquele lugar onde a vida transcorreu com a regularidade das coisas previstas que absorvem todos os imponderáveis, tragados pelo cotidiano. No mais, continuam vivendo nos filhos, nos netos, nos negócios começados há décadas e mais décadas. Ninguém tem fim. Ninguém faz falta. Ninguém morre. É proibido, é pecado afrontar a eternidade.
Só as cidades grandes matam e deixam morrer. São esquecimento. Esquece-se o que se comeu pela manhã, e também se esquece a paixão louca e devoradora da noite, que apaga da mente o nome daquele que desperta ao lado, e que, constrangido, veste-se e vai embora. A vida lá é sempre nova a cada amanhecer. Sempre outra. E não se tem compromisso algum com o minuto que acabou. Há relógios que marcam o fim de todas as coisas. Nas pequenas cidades não há relógios, há sinos que embalam o sono do qual não se deve despertar.
Só os grandes centros têm também daquelas manadas que explodem por um triz, que aparecem na TV, incendiando ônibus, jogando pedras, uivando. Depois sossegam. Ordeiros, vão para casa e viram gente comum. Só as grandes cidades têm loucos varridos. Nas pequenas, só há os mansos, os loucos integrados, medicados pelo próprio ambiente que assimila tudo. Não há adeus. Só até logo, melhor: inté. Inté ali, que tudo é feito de esquinas e cruzamentos. Dá-se a volta ao mundo contornando a praça, e até os cães têm por lá uma solenidade envolvente, uma insolência conquistada no ocupar todo o espaço das calçadas estreitas, para onde as janelas e as portas se abrem. Onde não há passos silenciosos, porque todos fazem eco.
Nos grandes centros somos o que queremos ser. Nas pequenas cidades somos o que é feito de nós, uma referência, um nexo causal associado a qualquer coisa que faça parte daquela existência, e nos tornamos, no máximo, parte da paisagem, pois só como parte da paisagem, inseridos na rotina e na regularidade das coisas e dos acontecimentos, é que nos integramos.
Tudo ali na província toma uma importância e uma dimensão à qual aquele vem de longe não está acostumado. As pequenas cidades possuem uma realidade constrangedora que não é feita para pensar nem sentir, porque simplesmente é. Mesmo a linguagem dos monumentos é desnecessária, uma vez que a pedra grande já é bela e grande que chegue. Muita coisa é desnecessária por lá. Espaço principalmente, porque lá se troca espaço por tempo, que se tem demais. E cabe-se em nós. Cada um morando em si, que é justamente para onde o migrante vai migrar. Às avessas.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

domingo, 22 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


▼ MATÉRIAS
OS GRANDES HOMENS
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Nessa multidão servil, cega, ignorante, que foi a humanidade do passado e que é a humanidade do presente, às vezes algumas inteligências têm aparecido, serenas e audaciosas, antecipando o amanhã, descobrindo verdades novas, amando a justiça, vagos clarões esparsos que lançam alguma luz nas trevas de uma noite profunda. Esses benfeitores, grandes pela audácia e pelo gênio, têm sido, sem dúvida, recompensados pelos seus irmãos humanos? Vejamos o que nos diz a história.

Sócrates, o sábio dos sábios, ousou, em pleno paganismo, sustentar que as superstições mitológicas eram tradições ridículas; que se devia conhecer a si mesmo e não ter outra regra de conduta que a consciência e, como regra de crença, a razão. Mas ele foi vaiado pelas multidões. Aristófanes ridicularizou-o ultrajosamente no teatro. Pretensos juízes acusaram-no de corromper a juventude, e ele foi condenado à morte. A cicuta propiciou-lhe uma morte bastante suave, mas era a morte, de qualquer forma.
Jesus Cristo, alma terna e mística, inacessível ao ódio, pregou o perdão das injúrias, a piedade para com os infelizes e os pobres, a igualdade dos míseros humanos diante do Pai Celeste. Doutrinas novas que teriam devido mudar a face do mundo. Muito bem! Jesus Cristo foi condenado a uma morte ignominiosa e dolorosa. Muito jovem ainda, esse ser quase divino foi crucificado, metade como rebelde, metade como demente, sob os aplausos de uma multidão bárbara.
Cristóvão Colombo, sozinho contra todos, concebeu uma grande coisa. Em torno dele, todo mundo acreditava que a Terra era chata como um prato de sopa. Mas ele, ele compreendeu... Provido de alguns miseráveis navios, ele ousou aventurar-se a mares desconhecidos. Sua equipagem revoltou-se, mas ele se manteve firme frente aos motins e, ainda que parecesse ceder, obstinou-se em seu pensamento fecundo. Abordou, enfim, uma nova terra. Um Novo Mundo foi adquirido para a velha humanidade... E, como recompensa, ao seu retorno à Europa, ele foi acorrentado, colocado na prisão, ameaçado de morte. Por milagre, escapou aos suplícios. De qualquer sorte, morreu pobre, injuriado, exilado, vilipendiado, traído.
Galileu concebeu e executou coisas maravilhosas. Ele inventou o termômetro. Ele inventou o telescópio que lhe permitiu ver mundos imensos até então insuspeitos, e compreender que ínfimo lugar tem nosso planeta terrestre no vasto universo. Mas os homens têm um santo horror à verdade. Galileu foi obrigado a ajoelhar-se diante da estupidez triunfante, e ele arrastou ― cego ― os seus últimos dias numa prisão.
Gutenberg, que inventou a imprensa; Palissy, que criou a paleontologia e a cerâmica; Jenner, que descobriu a vacina; Harvey, o primeiro a realizar a verdadeira fisiologia experimental, tiveram todos as suas existências envenenadas pelas proscrições, as perseguições, os processos, as zombarias e a pobreza.
Michel Servet que, sem apoio, sem mestre, compreendeu que o sangue circula para ir do coração direito ao esquerdo, passando pelo pulmão, Michel Servet foi queimado.
Savonarola foi queimado. Queimado também o admirável Jean Huss. Ambos tiveram a audácia de pregar uma moral pura a corruptos.
Lavoisier que, sozinho, fez nascer as duas mais belas ciências abordáveis pelos mortais, toda a química e toda a fisiologia, Lavoisier, cujo nome deveria ser considerado como o maior nome da ciência, Lavoisier foi guilhotinado em praça pública em Paris.
Denis Papin viu sua embarcação incendiada e feita em pedaços pelos barqueiros do Reno.
Descartes que, como Sócrates, ousou falar dos direitos da razão humana, teve de fugir de sua pátria e morrer no estrangeiro. Espinosa, um genial e ousado pensador, foi vítima de perseguidores cruéis. O mais maravilhoso escritor francês, Victor Hugo, viveu vinte anos no exílio. O sublime escritor espanhol, Cervantes, passou a metade de sua vida no cárcere e nas prisões de forçados. O corpo de Molière foi jogado no lixo.
Um dos mais encantadores poetas latinos, Ovídio, foi condenado a um longo exílio entre os bárbaros. Como Eurípides, André Chénier pereceu no cadafalso, Chatterton morreu de fome. Voltaire, Sílvio Pellico, Mickieviez conheceram, eles também, as prisões e o exílio. Sêneca foi obrigado a matar-se. Um soldado bêbado matou Arquimedes.
Demóstenes e Cícero, ou seja, os maiores oradores de todos os tempos foram assassinados pela soldadesca.
E está é apenas uma enumeração incompleta.
Tais são as recompensas que os homens reservam aos mais nobres representantes da espécie humana.
Quanto mais a multidão é medíocre e estúpida, mais ela persegue com seu ódio aqueles que, ingenuamente, procuram atenuar sua mediocridade e sua estupidez.








Da obra O Homem Estúpido ― L’homme stupide, Ernest Flammarion Éditeur, Paris, 1919. Tradução : Maristela Bleggi Tomasini.

Autor: Charles Richet-Tradução : Maristela Bleggi Tomasini 

terça-feira, 17 de julho de 2012

Raridade

Pouca gente sabe que a filha de César Lombroso, Paola, escreveu um livro sobre os sinais reveladores da personalidade. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

O DIA DA MORTE DE REBECA 
quarta-feira, 18 de julho de 2012
Rebeca ia morrer. Ela ainda não sabia, mas não tinha mais que algumas horas de vida. Naquele instante pensava apenas em pegar suas coisas e deixar o apartamento de Klaus o mais rápido possível, antes que ele chegasse e a encontrasse naquele estado. Rebeca sofria. Era orgulhosa, porém, e silenciava.Sua fuga era o diário, onde consumia páginas e mais paginas com a letra regular, entremeando o texto com desenhos. Sentia a presença da outra como um espectro, reinando do exílio.

Rainha deposta, se não perde a cabeça, permanece coroada.
Até que alguém lhe mostrou a foto: Klaus ao lado da outra, muito alta, decotada, segurando um ramalhete de rosas vermelhas, como se houvesse sido homenageada. Aquilo feriu Rebeca profundamente. Ela decidiu que era o fim. Deixou a foto sob o travesseiro dele e continuou a buscar por suas coisas.
Lembrava-se bem de como tudo começara. De como se deixara encantar por Klaus, por sua persistência, por seus galanteios, ferozmente empenhado em conquistá-la. E quando Rebeca estava mais fragilizada, foi nele que encontrou a serenidade que desconhecia. Percebeu então que era capaz de uma ternura sem limites por aquela estranha criatura que a fizera repensar sua vida, esta mesma vida da qual se sentia por vezes tão cansada e apática. Com ele, dava-se ao luxo de deixar-se levar por suas inconsequências e impulsos. Entregava-se aos sentidos e percebia o mundo com intensidade. Com ele, podia virar criança, fazer-se irresponsável, atirar-se ao ato de gostar por gostar. Podia pisar em falso e afrontar o abismo, pois sabia que ele não a deixaria jamais sofrer os efeitos dessa queda. Podia desejar com aquele desejo primário que descobriu que ocultava em alguma instância misteriosa de sua alma ou de seu útero. Diante dele, levava seus pensamentos e desejos ao absurdo. Ele a escutava, ora interessado, ora encantado em alguma coisa que não era exatamente nem sua voz, nem suas palavras, mas ela mesma. Klaus adivinhava cada pequeno desejo seu, que satisfazia antes mesmo que ela pensasse em mencioná-lo.
Rebeca, que já cansara de reinventar-se, e que poucos encantos encontrava na tarefa de existir, não tinha motivo algum para impedir-se de viver o que ele lhe propunha. E vivia isso minuto a minuto, deixando-se impregnar pelo intenso misticismo dele. Eram um par insólito. Ela, pequena, frágil, delicada de formas, pulsos muito finos, mãos e péspequenos; ele, imenso, grotesco em sua obesidade, mãos e pés enormes. Mais forte do que gordo, era de uma carnadura sólida. Coberto de pelos, lembrava, à meia-luz, uma figura mítica, sensual, capaz de um erotismo inaudito, que deliciava Rebeca, tornando-a cada vez mais atraída por essas instâncias ocultas de Klaus, das quais se tornara extremamente possessiva e ciumenta. Descobriu que o desejava como seu, e agia como proprietária, como dona absoluta daquele corpo sobre o qual imperava. Isso a fez desejar ser o que ele queria que ela fosse, tornando-se inteiramente dele, carne de sua carne e osso de seus ossos.
Fizeram-se espírito e matéria, num estranho paradigma alquímico. Ela deixou de ser quem era para entregar-se à experiência de tornar-se todo o mundo dele. A brutal diferença física que existia entre ambos fazia deles uma espécie nova de par, onde masculino e feminino contrapunham-se com meridiana clareza. Ele a tratava como sua Grande Obra. O misticismo de Klaus não permitia que sua paixão tivesse lugar num cenário restrito ao meramente existencial. Era uma presença sempre atenta, intensa, pulsante, que impressionava Rebeca profundamente. Ele era sagaz e determinado, mas dava lugar à fantasia e à imaginação. De Rebeca, desejava a alma e, pressentindo que ela, agnóstica, se recusava a ter uma, sentia-se cada vez mais instigado a buscar suas instâncias mais ocultas e obscuras. Atraídos mais pelas diferenças do que por alguma eventual identidade, viram-se vítimas do que Rebeca pensava ser, afinal, aquilo a que todos chamavam paixão.  Não hesitou em mudar-se para o apartamento de Klaus, levando algumas de suas coisas para lá, na maioria, livros. Fez uma exigência, todavia. Não queria saber de Derlene por perto. Foi clara:
 — Não quero vê-la cruzar o meu caminho ― dissera.         ― Rebeca, eu quero você. Não preciso de outras mulheres.

Preciso de uma que 
contenha todas as outras, mas que não se assemelhe a nenhuma delas. E esta, minha cara, é você. Inclusiva e excludente, santa e prostituta, iniciada e profana. Eu prometo viver para você, Rebeca. Sempre quis isso, sempre quis dar um sentido mágico à minha existência, e homem algum existe sem o seu oposto. A natureza repudia os solitários. O simbólico é a verdade intuída em sua essência mais profunda. Prometo-lhe que não haverá nenhuma outra mulher além de você.
 ― Não minta para mim, Klaus. Nunca ― disse-lhe Rebeca.
        
― A verdade tem muitas faces, para que possa ser o que é.

Se formos capazes de 
olhar apenas um para o outro, nada será capaz de romper nossa unidade. Olhe sempre para mim, porque você não será capaz de me reconhecer através das máscaras que emprego para lidar com o mundo. Para você, Rebeca, eu prometo ser quem sou.
 ― Você é poético. Em certos momentos, me encanta.
             Em outros, me assusta 
― disse ela.
 Eram diferentes, sim, de naturezas singularmente opostas. Juntos, contudo, assimilavam-se, formando um casal olhado com espanto e desdém. De algum modo misterioso, ela sabia quem ele era, conseguia penetrar-lhe a natureza bem além da fachada de bizarria mística, e encontrava aí um homem capaz de intensas paixões.
Por algum tempo, permaneceram absorvidos pelo que lhes sucedeu na noite em que Rebeca foi para cama com ele, descobrindo outro homem dentro de Klaus. Teve, contudo, de enfrentar também a descoberta de outra Rebeca dentro dela. Uma mulher lúbrica, inquieta, tão desejosa quanto desejada. Rompeu-se uma barreira e, para surpresa de ambos, eram reféns de algo que os empurrava um para o outro, como se fosse uma terceira vontade, irresistível. Rebeca não queria admitir, a princípio, mas ele a atraía mais que qualquer outro homem que conhecera.
Até que as coisas começaram a mudar. Não se via mais refletida nos olhos dele, como antes. Foi aos poucos, lentamente. E agora...
Há lugares que não nos pertencem, assim como há histórias que não são a nossa. É preciso retirar-se, enfiar-se por dentro da pele, secar os olhos e gelar o sangue. Não ia disputar um homem a tapas, embora pudesse arrancar com as unhas os olhos melosos e lacrimejantes da outra, seus cabelos ressecados e vermelhos, apagando daquele rosto macilento o ar de beatitude cristã que simulava quando queria. Ele não se desligaria daquela mulher nem que quisesse. E ele sequer queria.
 — Chega! ― disse ela em voz alta.
 Hora do adeus. Ia embora dali, para sempre, agora mesmo. Pegou seus livros, o diário, as poucas roupas que trouxera. Arrumou tudo às pressas numa sacola. Lembrou-se então de seus objetos pessoais no banheiro do quarto do casal. Lembrou-se dos banhos quentes que ele lhe dava, tratando-a com delicadeza e carinho, chamando-a de sua femeazinha, protestando quando não se secava direito. Corria atrás dela com toalhas quentes e levava-a para cama, toda enrolada, protegendo-a de um frio imaginário. Mimava-a como uma criança, enquanto sorria e brincava que, descabelada, sem maquilagem e com os cabelos molhados, ela era muito mais Rebeca.

― Talvez faça isso também com aquela outra
― pensou, magoada. Os objetos eram-lhe todos familiares.

Tocou no sabonete e na colônia de rosas Gallet, no batom rosado que deixava ali.
Sentiu raiva então. Um ciúme profundo, e muita raiva. Teve vontade de riscar o espelho ao olhar-se. Estava lívida, os lábios contraídos, com olheiras marcadas, profundas e escuras. Não queria chorar mais, não queria. Pegou o batom e escreveu no espelho, com letras enormes um palavrão e uma citação obscena. Depois, consternada e envergonhada, esmurrou com toda força o próprio reflexo, como que punindo a si mesma, lambuzando as mãos de batom e chorando como chorava quando era criança. Soluçava, sem conseguir respirar direito, sacudida por espasmos. Estava patética. O nariz corria, e depressa ela procurou consolar-se, apagando com toda força, cada vez mais, o palavrão e as obscenidades. Cortou-se assim no pesado espelho trincado que se quebrou em parte, despencando de um lado.
sangue foi aparecendo, abundante, brotando dos cortes nos braços e pulsos de Rebeca. Ela lambeu-se. Sentiu o gosto de ferro e o ponto do sal. Olhava-se sangrar, como que absorta na cor vermelha, intensa, que sabia a paixão. Abriu as torneiras e depressa lavou o rosto e os braços que não paravam de sangrar. Chorava. Lavou mais, cada vez mais, até sentir o bem que a água lhe fazia. Pensou então em todos os líquidos que dissolvem todas as coisas. Pensou em alquimia, em senhas, em sinas, em magias, em tudo aquilo em que ela nunca acreditara. Pensou no mar, em todas as águas do mundo, lembrou-se das praias, de como era bom deixar-se levar pela correnteza. Flutuava em pensamento, e daí quis chorar tudo aquilo até o fim. Ritualizou todas as águas que conhecia, quase quebrando as torneiras a custa de abri-las cada vez mais, enquanto procurava fazer-se sarar da dor e dos cortes. Sangrou até o fim, misturando o seu sangue na água. Sangrou até a última gota de seu orgulho, e voltou a olhar-se no espelho.  Sui caederes. Só viu a parede e a porta que ficavam atrás dela, do outro lado de onde estivera seu corpo. Não entendeu. Olhou novamente. Ela não estava mais lá nem em parte alguma. Só havia o espelho quebrado pela metade. De Rebeca restou apenas a dor.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os Sistemas Orgânicos de Produção e a Legislação


Sistemas orgânicos de produção animal e vegetal são regulamentados pela legislação. Isso significa que um produto, para que seja considerado orgânico e como tal fazer jus à certificação, deve ser produzido segundo regras recentemente editadas pelo Ministério da Agricultura:  a Instrução Normativa n° 46 de 6 de outubro de 2011.
Quando se pensa em produtos orgânicos, o que nos ocorre é alguma coisa produzida sem o uso de agrotóxicos, que tanta polêmica geram pelos efeitos maléficos que sabidamente podem causar. Entretanto, fertilizantes podem ser usados na produção orgânica, desde que se insiram na categoria de agentes biológicos ou sejam produto de um sistema de compostagem.
A conformidade orgânica deve ser avaliada a cada etapa da produção, e os sistemas devem buscar sempre preservação ambiental, atenuação de seus efeitos sobre os ecossistemas, sejam eles naturais ou modificados, o uso racional dos recursos naturais, o incremento da biodiversidade e a regeneração das áreas degradadas. Do ponto de vista econômico, os sistemas orgânicos devem buscar melhorias genéticas, a manutenção das variedades, sejam elas locais, tradicionais ou crioulas, que se encontrem sob ameaça de erosão genética, promovendo a sanidade das espécies animais e vegetais e valorizando aspectos culturais, especialmente no que concerne à regionalização dos produtos. Do ponto de vista social, são valorizadas as relações de trabalho, sempre com vistas à melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, com sua capacitação continuada dos agentes envolvidos em cada etapa da produção.
Há exigência de registro de todos os procedimentos inerentes às etapas de produção, e que devem permanecer disponíveis por no mínimo cinco anos. Além disso, deve existir um plano de manejo que contemple o histórico de utilização da área, manutenção da biodiversidade, manejo de resíduos, conservação do solo e da água.
De fato, não é fácil cumprir com todas as exigências impostas pela legislação, observando ainda uma série de proibições e restrições, como por exemplo o uso praticamente exclusivo de sementes também oriundas de sistemas orgânicos, a proibição de utilização de organismos geneticamente modificados, de agrotóxicos sintéticos. O manejo das pragas, nos sistemas orgânicos, é bastante complexo. A limpeza dos locais só pode ser efetivada mediante o emprego de determinados produtos, sempre biodegradáveis. Da mesma forma, a prevenção e tratamento de enfermidades sofre restrições, bem como o tipo de alimentação destinada aos animais. Por exemplo, para tratamento de doenças, são priorizados preparados homeopáticos ou fitoterápicos; a alimentação dos animais é natural, com uso de melado, farinha de algas — para redução do teor de iodo — pós e extratos de plantas.
Enfim, não é simples produzir dentro do sistema, e os produtos, sejam eles de origem animal ou vegetal, obtidos a partir de tal prática possuem um diferencial que os torna, ao menos em tese, senão mais saudáveis, por certo menos nocivos à saúde. A certificação depende dessa conformidade, e quem se propõe a alcançá-la deve cumprir rigorosas exigências. Ao menos é isso que o consumidor, certamente, espera quando confia que o produto que adquire, pagando inclusive mais por ele, seja, de fato, orgânico.