"Mas não é um favor, objetam nossos filósofos, evocar as
forças profundas (fosse para reintegrá-las no sistema tão pobre de garantias)?
“Libertem-se da censura! Frustrem seus superegos! Tenham a coragem de seus
desejos!” Logo, solicitem-se verdadeiramente essas forças profundas para
permitir-lhes que se articulem em uma linguagem? Esse sistema de significações
permite levar a um sentido, e a qual sentido, zonas até aqui ocultas da pessoa?
Ouçamos agora Martineau: “É naturalmente preferível utilizar termos aceitáveis,
estereotipados: é a própria essência da metáfora (!)... Se eu peço um cigarro
‘suave’ ou um ‘belo’ carro, ― ainda que incapaz de definir literalmente tais
atributos ―, sei que eles indicam alguma coisa de desejável. O motorista mediano
não sabe o que é o octano em sua gasolina, mas ele sabe vagamente que é alguma
coisa favorável. Assim, pede gasolina com alto índice de octanagem, porque é
esta qualidade favorável e essencial que ele reclama em um jargão ininteligível”
(p. 142). Em outras palavras, o discurso publicitário não faz senão suscitar o
desejo para generalizá-lo nos termos mais vagos. As “forças profundas”,
reduzidas a sua mais simples expressão, são indexadas sobre um código
institucional de conotações e de “escolhas” não podem, no fundo, senão
chancelar o conluio entre esta ordem moral
e minhas veleidades profundas: tal é a alquimia da “garantia psicológica”[1].
Essa evocação estereotipada das “forças profundas” equivale
muito simplesmente a uma censura. Essa
ideologia da realização pessoal, o ilogismo triunfante das pulsões
desculpabilizadas, é, de fato, um gigantesco empreendimento de materialização
do superego. Aquilo que é “personalizado”
no objeto é, primeiro, uma censura. Os filósofos do consumo costumam falar
de “forças profundas” como de possibilidades imediatas de felicidade que é o
bastante liberar. Todo inconsciente é conflitante e, na medida em que a
publicidade o mobiliza, ela o mobiliza como conflito. Ela não libera as
pulsões, ela, antes, mobiliza os fantasmas que bloqueiam essas pulsões. Daí a
ambiguidade do objeto, daí a pessoa jamais se superar, podendo apenas
recolher-se contraditoriamente: nos desejos e nas forças que o censuram.
Encontramos aí um esquema global de gratificação/frustração analisada mais acima:
o objeto veicula sempre, sob uma resolução formal de tensões, sob uma regressão
nunca exitosa, a recondução perpétua dos conflitos. Estaria aí talvez uma
definição da forma específica da alienação contemporânea: os próprios conflitos
interiores, as “forças profundas” são mobilizadas como o é a força de trabalho
nos processos de produção.
Nada mudou, ou antes, se : as restrições à realização
pessoal não se exercem mais através de leis repressivas, de normas de
obediência : a censura se exerce através das condutas “livres” (compra,
escolha, consumo), através de um investimento espontâneo, ela se interioriza de
qualquer sorte no próprio gozo."
BAUDRILLARD, Jean. Le sistème des objets. Paris: Gallimard, 1968, p. 269-270.
[1] De
fato, é fazer muita honra à publicidade compará-la a uma magia: o léxico nominalista dos alquimistas tem, ele, algo de uma
verdadeira linguagem, estruturada por uma práxis de procura e de decifração. O
nominalismo da “marca”, ele, é puramente imanente e fixado pelo imperativo
econômico.
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