"Une histoire qui sert est une histoire serve" (1919).
Lucien Febvre
Espaço inicialmente reservado a produções relacionadas a meu Mestrado em Memória Social e Bens Culturais, Lasalle, 2012. Depois, em boa parte, direcionado a pesquisas vinculadas ao Doutorado em História Social, USP, 2017. Atualmente (2019), dará lugar a publicações conexas a meu pós-doc em Psicologia Social junto à UERJ, com estágio concluído em 2023. Além disso, contempla temas como memória, história, arquivos pessoais, cotidiano, arte, fotografia e outros saberes.
domingo, 11 de dezembro de 2016
sábado, 12 de novembro de 2016
Fotografia
quarta-feira, 9 de novembro de 2016
Memória
Hélice resgatada do naufrágio e agora colocada em lugar de honra no Cisne Branco, barco que há décadas realiza passeios pelo Guaíba, em Porto Alegre. |
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Porto Alegre
sábado, 22 de outubro de 2016
Etiqueta Epistolar
Modelos de cartas sobre diferentes assuntos, escolhidos entre os melhores autores epistolares. Com uma breve instrução à frente de cada espécie de cartas. Precedidas de de algumas reflexões sobre o estilo epistolar em geral, sobre o caráter dos autores nesse gênero, e do cerimonial das cartas, 1767.
quarta-feira, 19 de outubro de 2016
Poder pode mas... não deve
"Ao escrever cartas de
amor, cuidado!” — enfatiza Bárbara Virgínia em seu livro sobre etiqueta social[1].
E prossegue, explicando: “Há um ditado que diz: Tudo o que está escrevendo agora, um dia poderá ser lido num tribunal."
Pois, se o amor é cego, a
sociedade não o é, e parece vigiar os amantes incautos que não raramente
documentam sua paixão. A confissão dessas indiscrições, contudo, documentada em
cartas de amor, dão a ver bem mais que uma lúdica ou trágica paixão. Materializam
hábitos, costumes e práticas sociais.
Isso importa? Mas é claro que sim. Até porque a era dos romances
epistolares já não acontece, ao menos não com uso de papel e envelopes. O
correio eletrônico, as redes sociais, o telefone substituíram as velhas cartas
de amor...
[1]
VIRGINIA,
Bárbara. Poder pode mas... não deve. Manual ilustrado do bem-receber,
elegância, charme e etiqueta. São Paulo: Coleções Loyola, 1993, p. 39.
quarta-feira, 12 de outubro de 2016
Fotografia
domingo, 9 de outubro de 2016
Medo, reverência, terror
"Vivemos
num mundo em que os Estados ameaçam com o terror, exercitam-no e às vezes o
sofrem. É o mundo de quem procura se apoderar das armas, veneráveis e potentes,
da religião, e de quem empunha a religião como uma arma. Um mundo no qual
gigantescos Leviatãs se debatem convulsamente ou ficam de tocaia, esperando. Um
mundo semelhante àquele pensado e investigado por Hobbes.
Mas
alguém poderia sustentar que Hobbes nos ajuda a imaginar não só o presente,
como também o futuro: um futuro remoto, não inevitável, e contudo talvez não
impossível.48 Suponhamos que a degradação
do ambiente aumente até alcançar níveis hoje impensáveis. A poluição do ar, da água
e da terra acabaria por ameaçar a sobrevivência de muitas espécies animais,
inclusive aquela denominada Homo sapiens
sapiens. A essa altura, um controle global,
minucioso, sobre o mundo e seus habitantes se tornaria inevitável. A sobrevivência
do gênero humano imporia um pacto semelhante àquele postulado por Hobbes: os
indivíduos renunciariam às próprias liberdades em favor de um super Estado opressor,
de um Leviatã infinitamente mais potente que os passados. O grilhão social
estreitaria os mortais num nó férreo, já não contra a “ímpia natureza”, como
escrevia Leopardi em La Ginestra [A
giesta], mas em socorro a uma natureza frágil, deteriorada, precária.
Um
futuro hipotético, que esperamos não se verifique jamais."
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/233115318/Carlo-Ginzburg-Medo-Reverencia-e-Terror >. Acesso em: 09/10/2016.
sábado, 1 de outubro de 2016
Porto Alegre
domingo, 25 de setembro de 2016
Porto Alegre
sexta-feira, 9 de setembro de 2016
quinta-feira, 1 de setembro de 2016
The love letter
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
Lettre de Josephine a Napoleon, 1809
Lettre de Josephine a Napoleon, 1809. |
Avec la permission de notre auguste et cher époux, je dois déclarer que ne conservant aucun espoir d'avoir des enfants qui puissent satisfaire les besoins de sa politique et l'intérêt de la France, je me plais à lui donner la plus grande preuve d'attachement et de dévouement qui ait jamais été donnée sur la terre. Je tiens tout de ses bontés ; c'est sa main qui m'a couronnée, et du haut de ce trône, je n'ai reçu que des témoignages d'affection et d'amour du peuple français.
Je crois reconnaître tous ces sentiments en consentant à la dissolution d'un mariage qui désormais est un obstacle au bien de la France, qui la prive du bonheur d'être un jour gouvernée par les descendants d'un grand homme si évidemment suscité par la Providence pour effacer les maux d'une terrible révolution et rétablir l'autel, le trône, et l'ordre social. Mais la dissolution de mon mariage ne changera rien aux sentiments de mon coeur : l'empereur aura toujours en moi sa meilleure amie. Je sais combien cet acte commandé par la politique et par de si grands intérêts a froissé son coeur ; mais l'un et l'autre nous sommes glorieux du sacrifice que nous faisons au bien de la patrie.
JOSEPHINE, le 15 décembre 1809.
Fonte: Wikimedia Commons
Marcadores
Cartas de Amor,
Coletânea Iconográfica
La lettre d’amour
Isidore Ducasse
Fonte: Wikimedia Commons
Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont)
sábado, 27 de agosto de 2016
sábado, 20 de agosto de 2016
Sobre espécies e tipos documentais
"Para introduzir os estudos tipológicos é preciso relembrar, uma vez mais, que a espécie documental é a configuração que o documento assume de acordo com a disposição e a natureza de sua informação (e é objeto da diplomática), bem como que o tipo documental é a espécie documental, não mais como 'fórmula' e sim já imbuído da atividade que o gerou (e é objeto da tipologia). Assim é possível estabelecer dois pontos de partida para a análise tipológica: o da diplomática ou o da arquivística."
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Diplomática e tipologia documental em arquivos. Brasília: Briquet de Lemos, 2008.
___________________________________________________
Espécie documental
Divisão de gênero documental que reúne tipos documentais por seu formato. São exemplos de espécies documentais: ata, carta, decreto, disco, filme, folheto, fotografia,memorando, ofício, planta, relatório.
ARQUIVO NACIONAL(Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 85.
Tipo documental Divisão de espécie documental que reúne documentos por suas características comuns no que diz respeito à fórmula diplomática, natureza de conteúdo ou técnica do registro. São exemplos de tipos documentais: cartas precatórias, cartas régias, cartas-patentes, decretos sem número, decretos-leis, decretos legislativos, daguerreótipos, litogravuras, serigrafias, xilogravuras.
Equivalente em espanhol: tipo documental; francês: typologie documentaire; em inglês, record type, em português, tipologia documental.
Idem, p. 163.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Diplomática e tipologia documental em arquivos. Brasília: Briquet de Lemos, 2008.
___________________________________________________
Espécie documental
Divisão de gênero documental que reúne tipos documentais por seu formato. São exemplos de espécies documentais: ata, carta, decreto, disco, filme, folheto, fotografia,memorando, ofício, planta, relatório.
ARQUIVO NACIONAL(Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 85.
Tipo documental Divisão de espécie documental que reúne documentos por suas características comuns no que diz respeito à fórmula diplomática, natureza de conteúdo ou técnica do registro. São exemplos de tipos documentais: cartas precatórias, cartas régias, cartas-patentes, decretos sem número, decretos-leis, decretos legislativos, daguerreótipos, litogravuras, serigrafias, xilogravuras.
Equivalente em espanhol: tipo documental; francês: typologie documentaire; em inglês, record type, em português, tipologia documental.
Idem, p. 163.
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
A propósito do descarte
Do próprio fato de se tratar de material descartado
poder-se-ia deduzir que se está diante de algo inaproveitável, pois a utilidade
(proveito) dos arquivos deveria ser encontrada, de regra, quase sempre à luz do
prestigio de seus protagonistas, titulares ou sujeitos. Não sendo este o caso,
consequentemente, as cartas de Francisco, ― bem como todo o resto do arquivo de
Lysia ―, nada representariam, ao menos do ponto de vista da História Social. Isso
é paradoxal. De um lado vê-se desaparecerem as hierarquias. Cada vez mais as
diferenças são eliminadas e a igualdade se torna uma espécie de exigência
política em termos de correção. Se todos são importantes, então tudo que lhes
diz respeito é, da mesma forma, importante. À parte essa discussão a propósito
do que é ou não relevante em matéria de arquivos pessoais, verdade é que muita
coisa vem sendo acumulada, guardada com avidez, sob o pretexto de servir à
memória.
segunda-feira, 15 de agosto de 2016
Coleção Thereza Christinha Maria
domingo, 14 de agosto de 2016
Fotografia
sábado, 13 de agosto de 2016
Sobre o Pragmatismo em Willian James
Verdade e
Realidade[1]
Como falar do
pragmatismo depois de William James? E o que poderíamos dizer sobre isso que já
não se encontre dito, e bem melhor dito, no livro surpreendente e encantador do
qual temos a tradução fiel? Nós evitaríamos tomar a palavra, se o pensamento de
James não fosse o mais freqüentemente diminuído, ou alterado, ou falseado pelas
interpretações que lhe são dadas. Muitas idéias circulam que arriscam a se
interpor entre o leitor e o livro, e a difundir uma obscuridade artificial
sobre uma obra que é a própria claridade.
Compreender-se-ia mal
o pragmatismo de James, se não se começasse por modificar a idéia que se faz,
de modo corrente, da realidade em geral. Fala-se do “mundo” ou do “cosmos”, e essas
palavras, de acordo com sua origem, designam alguma coisa de simples ou, ao
menos, de bem composto. Diz-se “o universo”, e a palavra faz pensar em uma
unificação possível das coisas. Pode-se ser espiritualista, materialista,
panteísta, como se pode ser indiferente à filosofia e satisfeito com o senso
comum: sempre se concebe um ou muitos princípios simples pelos quais se
explicaria o conjunto das coisas materiais e morais.
É que nossa
inteligência é apaixonada pela simplicidade. Ela economiza o esforço, e quer
que a natureza seja arranjada de modo a reclamar de nós, para ser pensada,
apenas a menor soma possível de trabalho. Ela dá como justo o que é necessário
em matéria de elementos ou de princípios para recompor com eles a série
indefinida de objetos e de eventos.
Mas se, em lugar de
reconstruir idealmente as coisas para maior satisfação de nossa razão, nós nos
ativéssemos pura e simplesmente àquilo que a experiência nos dá, pensaríamos e
nos exprimiríamos de maneira inteiramente diferente. Enquanto nossa
inteligência, com seus hábitos de economia, concebe os efeitos como
estritamente proporcionais às suas causas, a natureza, — que é pródiga —,
coloca em causa muito mais do que é requerido para produzir o efeito. Enquanto
nossa divisa é: “Apenas o que é preciso”, a da natureza é: “Mais do
que é preciso”, — muito disso, muito daquilo, muito de tudo. — A realidade,
tal como James a vê, é redundante e superabundante. Entre essa realidade e
aquela que os filósofos reconstroem, eu creio que foi estabelecida a mesma
relação que entre a vida que nós vivemos todos os dias e aquela que os atores
nos representam, à noite, sobre o palco. No teatro, cada um diz apenas aquilo
que é preciso dizer e faz apenas aquilo que é preciso fazer; há cenas bem
recortadas; a peça tem um começo, um meio e um fim; e tudo está disposto da
maneira mais parcimoniosa possível à vista de um desfecho que será feliz ou
trágico. Mas, na vida, diz-se uma multidão de coisas inúteis, faz-se uma
multidão de gestos supérfluos, não há situações nítidas; nada se passa tão
simplesmente, nem tão completamente, nem tão agradavelmente quanto quereríamos;
as cenas apropriam-se umas das outras; as coisas não começam nem terminam; não
há desfecho inteiramente satisfatório nem gesto absolutamente decisivo, nem dessas
palavras decisivas e sobre as quais se permanece: todos os efeitos são
deteriorados. Assim é a vida humana. Assim é, sem dúvida também, aos olhos de
James, a realidade em geral.
Certamente, nossa experiência não é
incoerente. Ao mesmo tempo em que ela nos apresenta coisas e fatos, ela nos
mostra parentescos entre as coisas e relações entre os fatos: essas relações
são tão reais, tão diretamente observáveis, segundo Willian James, quanto as
coisas e os fatos, eles próprios. Mas as relações são flutuantes, e as coisas
são fluidas. Está longe daí esse universo árido que os filósofos compõem com
elementos bem recortados, bem arranjados, e onde cada parte não está mais
somente ligada a uma outra parte, como nos diz a experiência, mas ainda, como
quereria nossa razão, coordenada ao Todo.
O “pluralismo” de
William James não significa outra coisa. A Antiguidade concebia um mundo
fechado, parado, finito: é uma hipótese que responde a certas exigências de
nossa razão. Os modernos pensam, de preferência, em um infinito: é outra
hipótese que satisfaz outras necessidades de nossa razão. Do ponto de vista
onde James se coloca, — que é aquele da experiência pura ou do “empirismo
radical” —, a realidade não aparece mais como finita nem como infinita, mas
simplesmente como indefinida. Ela corre, sem que nós possamos dizer se é em uma
direção única, nem mesmo se é sempre e em toda parte o mesmo rio que corre.
Nossa razão está
menos satisfeita. Ela se sente menos à vontade em um mundo onde ela não
encontra mais, como num espelho, sua própria imagem. E, sem nenhuma dúvida, a
importância da razão humana está diminuída. Mas o quanto a importância do
próprio homem, ele mesmo, — do homem inteiro, vontade e sensibilidade, tanto
quanto inteligência —, vai se encontrar aumentada!
O universo que nossa
razão concebe é, com efeito, um universo que ultrapassa infinitamente a
experiência humana, sendo próprio da razão prolongar os dados da experiência,
estendê-los pela via da generalização, enfim, fazer-nos conceber muito mais coisas
do que jamais perceberíamos. Em semelhante universo, o homem é considerado como
fazendo pouca coisa e ocupando pouco espaço: o que ele concede à sua
inteligência, ele retira de sua vontade. Sobretudo, havendo atribuído ao seu
pensamento o poder de tudo abraçar, ele está obrigado a conceber todas as
coisas em termos de pensamento: suas aspirações, seus desejos, seus
entusiasmos, ele não pode pedir esclarecimentos sobre um mundo onde tudo aquilo
que lhe é acessível foi considerado por ele, de antemão, como traduzível em
idéias puras. Sua sensibilidade não saberia esclarecer sua inteligência, da
qual ele faz a própria luz.
As filosofias, em sua
maior parte, restringem, pois, a nossa experiência no lado sentimento e vontade,
ao mesmo tempo em que a prolongam indefinidamente no lado pensamento. O que
James nos pede é não mais prolongar a experiência pelas vias hipotéticas, é
também não a mutilar naquilo que ela tem de sólido. Nós não estamos
inteiramente seguros daquilo que a experiência nos dá; mas nós devemos aceitar
a experiência integralmente, e nossos sentimentos fazem parte disso ao mesmo
título que nossas percepções, ao mesmo título, por consequência, que as
“coisas”. Aos olhos de Willian James, o homem inteiro conta.
Ele conta muito mesmo
em um mundo que não o esmaga mais com sua imensidade. Fica-se espantado com a
importância que James atribui, em um de seus livros[2], à curiosa teoria de Fechner que
faz da Terra um ser independente dotado de uma alma divina. É que ele vê aí um
meio cômodo de simbolizar, — talvez mesmo de exprimir —, seu próprio
pensamento. As coisas e os fatos dos quais se compõe nossa experiência
constituem para nós um mundo humano[3], ligado sem dúvida a outros, mas
tão distanciado deles e tão perto de nós que devemos considerá-lo, na prática,
como suficiente para o homem e suficiente para si mesmo. Com essas coisas e
esses eventos nós fazemos corpos, — nós, quer dizer, tudo aquilo que nós temos
consciência de ser, tudo aquilo que nós experimentamos. Os sentimentos
poderosos que agitam a alma em certos momentos privilegiados são forças tão
reais quanto aqueles das quais se ocupa o físico; o homem não as cria, não mais
do que ele não cria o calor ou a luz. Banhamo-nos, de acordo com James, em uma
atmosfera atravessada por grandes correntes espirituais. Se muitos dentre nós
aí se obstinam, outros se deixam levar. E existem almas que se abrem inteiras
ao sopro benfazejo. Estas são as almas místicas. Sabe-se com que simpatia James
as estudou. Quando apareceu seu livro sobre A Experiência Religiosa, muitos
aí não viram senão uma série de descrições muito vivas e de análises muito
penetrantes, — uma psicologia, diziam eles, do sentimento religioso. — Quão enganados
estavam sobre o pensamento do autor! A verdade é que James debruçava-se sobre a
alma mística como nós saímos, em um dia de primavera, para sentir a carícia da
brisa, ou como, à beira-mar, olhamos os pássaros e vemos os barcos e o inchaço
de suas velas para saber de onde sopra o vento. As almas que o entusiasmo
religioso preenche são verdadeiramente elevadas e transportadas: como não nos
levariam elas a perceber o real, assim como numa experiência científica, a
força que transporta e que eleva? Aí está, sem dúvida, a origem, aí está a
idéia inspiradora do “pragmatismo” de William James. As verdades que ele mais
nos induz a conhecer são, para ele, verdades que foram sentidas e vividas antes
de serem pensadas[4].
Em todos os tempos
diz-se que há verdades que despertam o sentimento tanto quanto a razão; e em
todos os tempos também se diz que, ao lado das verdades que nós encontramos
feitas, existem outras que nós ajudamos a formar, que dependem em parte de
nossa vontade. Mas é preciso observar que, em James, esta idéia toma uma força
e uma significação novas. Ela desabrocha, graças à concepção da realidade que é
peculiar a esse filósofo numa teoria geral da verdade.
O que é um julgamento
verdadeiro? Nós chamamos verdadeira a afirmação que concorda com a realidade.
Mas em que pode consistir esta concordância? Nós gostamos de ver aí algo como a
semelhança do retrato ao modelo: a afirmação verdadeira seria aquela que
copiaria a realidade. Reflitamos sobre isso, todavia: nós veremos que é
unicamente em raros casos, excepcionais, que esta definição do verdadeiro
encontra sua aplicação. Aquilo que é real é tal ou qual fato determinado,
acontecendo em tal ou qual ponto do espaço e do tempo, é do singular, é do
inconstante. Ao contrário, a maior parte de nossas afirmações são gerais e
implicam numa certa estabilidade de seu objeto. Tomemos uma verdade tão vizinha
quanto possível da experiência. Esta por exemplo: “o calor dilata os corpos”.
De que poderia ela ser a reprodução? É possível, em certo sentido, reproduzir a
dilatação de um corpo determinado em momentos determinados, fotografando-o em
suas diversas fases. Mesmo, por metáfora, eu posso ainda dizer que a afirmação
“esta barra de ferro se dilata” é a reprodução daquilo que se passa quando eu
assisto à dilatação da barra de ferro. Mas uma verdade que se aplica a todos os
corpos, sem concernir especialmente a algum daqueles que eu vi, não copia nada,
não reproduz nada. Nós queremos, todavia, que ela reproduza alguma coisa e, em
todos os tempos, a filosofia procurou nos dar satisfação sobre esse ponto. Para
os filósofos antigos, havia, acima do tempo e do espaço, um mundo onde tinham
sede, por toda eternidade, todas as verdades possíveis. As afirmações humanas
eram, para eles, tanto mais verdadeiras quanto mais fielmente copiavam essas
verdades eternas. Os modernos fizeram descer a verdade do céu sobre a terra.
Mas eles a vêem ainda como alguma coisa que preexistiria às nossas afirmações.
A verdade estaria depositada nas coisas e nos fatos: nossa ciência iria aí procurá-la,
retirando-a de seu esconderijo, trazendo-a para a luz. Uma afirmação tal como
“o calor dilata os corpos” seria uma lei que governa os fatos, que reina, senão
acima deles, ao menos em meio a eles, uma lei verdadeiramente contida em nossa
experiência e que nós nos limitaríamos a extrair dela. Mesmo uma filosofia como
aquela de Kant, — que quer que toda verdade científica seja relativa ao
espírito humano —, considera as afirmações verdadeiras como dadas por
antecipação na experiência humana. Uma vez esta experiência organizada pelo
pensamento humano em geral, todo o trabalho da ciência consistiria em
atravessar o invólucro resistente dos fatos no interior dos quais a verdade
está alojada, como uma noz em sua casca.
Esta concepção da
verdade é natural ao nosso espírito e natural também à filosofia, porque é
natural conceber-se a realidade como um todo perfeitamente coerente e
sistematizado sustentado por uma armadura lógica. Esta armadura seria a própria
verdade. Nossa ciência não faria senão encontrá-la. Mas a experiência pura e
simples não nos diz nada de semelhante, e James atém-se à experiência. A
experiência nos apresenta um fluxo de fenômenos. Se tal ou qual afirmação
relativa a um deles nos permite dominar aqueles que se seguirão, ou mesmo
simplesmente prevê-los, nós dizemos desta afirmação que ela é verdadeira. Uma
proposição tal como “o calor dilata os corpos”, proposição sugerida pela vista
da dilatação de certo corpo, faz com que nós prevejamos como outros corpos se
comportarão em presença do calor; ela nos ajuda a passar de uma experiência
antiga a experiências novas, é um fio condutor, nada mais. A realidade corre,
nós corremos com ela. E nós chamamos verdade a toda afirmação que, guiando-nos
através da realidade móvel, nos dá domínio sobre ela e nos coloca em melhores
condições para agir.
Vê-se a diferença
entre esta concepção da verdade e a concepção tradicional. Nós definimos, de
ordinário, a verdade por sua conformidade àquilo que já existe; James define-a
por sua relação com aquilo que não existe ainda. O verdadeiro, segundo William
James, não copia alguma coisa que foi ou que é: ele anuncia aquilo que será ou,
de preferência, prepara nossa ação sobre aquilo que vai ser. A filosofia tem
uma tendência natural a querer que a verdade olhe para trás. Para James, ela
olha para frente.
Mais precisamente, as
outras doutrinas fazem da verdade alguma coisa de anterior à ação bem
determinada do homem que a formula pela primeira vez. Ele foi o primeiro a
vê-la, dizemos nós, mas ela esperava-o, como a América esperava Cristóvão
Colombo. Alguma coisa a escondia de todos os olhares e, por assim dizer,
encobria-a. Ele a descobriu. Muito diferente é a concepção de William James.
Ele não nega que a realidade seja independente, em grande parte ao menos,
daquilo que nós dizemos ou pensamos dela; mas a verdade, que não pode ligar-se
senão àquilo que nós afirmamos da realidade, parece-lhe ser criada por nossa
afirmação. Nós inventamos a verdade para utilizar a realidade, como nós criamos
dispositivos mecânicos para utilizar as forças da natureza. Poder-se-ia,
parece-me, resumir todo o essencial da concepção pragmatista da verdade em uma
fórmula tal como esta: enquanto para as outras doutrinas uma verdade nova é
uma descoberta, para o pragmatismo ela é uma invenção[5].
Não se segue daí que
a verdade seja arbitrária. Uma invenção mecânica vale apenas por sua utilidade
prática. Do mesmo modo, uma afirmação, para ser verdadeira, deve aumentar nosso
império sobre as coisas. Ela não é menos a criação de certo espírito
individual, e ela não preexistia, não mais, ao esforço desse espírito, como o
fonógrafo, por exemplo, não preexistia a Edison. Sem dúvida, o inventor do
fonógrafo precisou estudar as propriedades do som, que é uma realidade. Mas sua
invenção sobrepôs-se a esta realidade como uma coisa absolutamente nova, que
não seria talvez jamais produzida, caso ele não houvesse existido. Assim, uma
verdade, para ser viável, deve ter sua raiz nas realidades; mas essas
realidades são apenas o terreno sobre o qual esta verdade brota, e outras
flores bem poderiam brotar, se o vento para aí trouxesse outras sementes.
A verdade, de acordo
com o pragmatismo, é, pois, feita pouco a pouco, graças aos aportes individuais
de um grande número de inventores. Se esses inventores não houvessem existido,
se outros houvessem existido em seu lugar, nós teríamos tido um corpo de verdades
inteiramente diferente. A realidade foi, e evidentemente permanece, aquilo que
ela é, ou quase; mas outros teriam sido os caminhos que haveríamos de traçar
para a comodidade de nossa circulação. E não se tratam aqui somente de verdades
científicas. Nós não podemos construir uma frase, nós não podemos mesmo hoje
pronunciar uma palavra, sem aceitar certas hipóteses que foram criadas por
nossos ancestrais e que poderiam ter sido diferentes daquilo que elas são.
Quando eu digo: “meu lápis acaba de cair debaixo da mesa”, eu não enuncio,
certamente, um fato da experiência, porque aquilo que a visão e o tato me
mostram é simplesmente que minha mão se abriu e deixou escapar o que segurava.
O bebê fixado em sua cadeira que vê cair o objeto com o qual brinca, não imagina,
provavelmente, que este objeto continua a existir; ou, de preferência, ele não
tem a idéia nítida de um “objeto”, quer dizer, de qualquer coisa que subsista,
invariável e independente, através da diversidade e da mobilidade das
aparências que passam. O primeiro que ousou acreditar nesta invariabilidade e
nesta independência elaborou uma hipótese: é esta hipótese que nós adotamos de
modo corrente todas as vezes que empregamos um substantivo, todas as vezes que
falamos. Nossa gramática teria sido outra, outras teriam sido as articulações
de nosso pensamento, se a humanidade, no decorrer de sua evolução, houvesse
preferido adotar hipóteses de outro gênero.
A estrutura de nosso
espírito é, pois, em grande parte, nossa obra ou, ao menos, a obra de alguns dentre
nós. Aí está, se me parece, a tese mais importante do pragmatismo, ainda que
ela não tenha sido explicitamente destacada. É por aí que o pragmatismo
continua o Kantismo. Kant havia dito que a verdade depende da estrutura geral
do espírito humano. O pragmatismo acrescenta, ou ao menos implica, em que a
estrutura do espírito humano é o efeito da livre iniciativa de certo número de
espíritos individuais.
Isso não quer dizer,
ainda uma vez, que a verdade depende de cada um de nós: o mesmo equivaleria a
crer que qualquer um de nós poderia inventar o fonógrafo. Mas isso quer dizer
que, das diversas espécies de verdade, aquela que está mais perto de coincidir
com seu objeto não é a verdade científica, nem a verdade do senso comum, nem,
mais geralmente, a verdade de ordem intelectual. Toda verdade é um caminho
traçado através da realidade; mas, entre esses caminhos, existem aqueles aos
quais nós poderíamos dar uma direção muito diferente, caso nossa atenção fosse
orientada em um sentido diferente ou se houvéssemos visado a outro gênero de
utilidade; isso é o contrário de a direção ser marcada pela própria realidade:
isso é o que corresponde, caso seja permitido dizer, a correntes de realidade.
Sem dúvida, estas dependem ainda de nós em certa medida, porque nós somos
livres para resistir à corrente ou para segui-la; e, mesmo que nós a sigamos,
podemos inflecti-la diversamente, estando associados, ao mesmo tempo em que
submetidos, à força que aí se manifesta. Não é menos verdade que essas
correntes não são criadas por nós; elas fazem parte integrante da realidade. O
pragmatismo chega assim a inverter a ordem na qual temos o costume de colocar
as diversas espécies de verdade. Fora verdades que traduzem sensações brutas,
seriam as verdades de sentimento que teriam, na realidade, as raízes mais
profundas. Se convencionamos dizer que toda verdade é uma invenção, será
preciso, eu creio, para permanecer fiel ao pensamento de William James,
estabelecer entre as verdades de sentimento e as verdades científicas o mesmo
gênero de diferença que entre o barco à vela, por exemplo, e o barco a vapor.
Um e outro são invenções humanas, mas o primeiro dá ao artifício apenas uma
fraca parte. Ele toma a direção do vento e torna sensível aos olhos a força
natural que utiliza. No segundo, ao contrário, é o mecanismo artificial que
predomina. Ele encobre a força que coloca em jogo e assina-lhe uma direção que
escolhemos por nós mesmos.
A definição que James
dá da verdade integra sua definição da realidade. Se a realidade não é esse
universo econômico e sistemático que nossa lógica gosta de conceber, se ela não
é sustentada por uma armadura de intelectualidade, a verdade de ordem
intelectual é uma invenção humana que tem por efeito utilizar a realidade de
preferência a nos introduzir nela. E, se a realidade não forma um conjunto, se
ela é múltipla e móvel, feita de correntes que se entrecruzam, a verdade que
nasce de uma tomada de contato com qualquer uma dessas correntes, — verdade
sentida antes de ser concebida —, é mais capaz que a verdade simplesmente
pensada de perceber e de armazenar a própria realidade.
É, pois, enfim, a
esta teoria da realidade que deveria fixar-se primeiramente uma crítica do
pragmatismo. Poder-se-á erguer objeções contra ela, e o faríamos nós mesmos, no
que lhe concerne, certas reservas, mas ninguém contestará sua profundidade e
originalidade. Ninguém, não mais, após haver examinado de perto a concepção da
verdade que aí se correlaciona, desconhecerá sua elevação moral. Diz-se que o
pragmatismo de James é apenas uma forma de ceticismo, que ele rebaixaria a
verdade, que ele a subordinaria à utilidade material, que ele desaconselharia,
que ele desencorajaria a pesquisa científica desinteressada. Tal interpretação
não viria jamais ao espírito daqueles que leram atentamente a obra. E ela
surpreenderá profundamente aqueles que tiverem a oportunidade de conhecer o
homem. Ninguém amou a verdade com mais ardente amor. Ninguém a procurou com
mais paixão. Uma imensa inquietude o incitava, e, de ciência em ciência, da
anatomia à psicologia, da psicologia à filosofia, ele ia, atento aos grandes
problemas, descuidado do resto, esquecido de si mesmo. Toda sua vida ele
observou, experimentou, meditou. E, como se não houvesse feito o bastante, ele
almejava ainda, embalando seu último sono, experiências extraordinárias e
esforços mais que humanos pelos quais ele poderia continuar, — depois da morte
—, a trabalhar conosco, para o maior bem da ciência, para a maior glória da
verdade.
BERGSON,
Henri. Sur le pragmatisme de William James. Vérite et réalité. La pensée et le mouvant. Essais et
conférences. Paris: Presses Universitaires de France, 27ª edição, 1950,
pág. 239-251.
Tradução:
Maristela Bleggi Tomasini
[1] Este
ensaio foi composto para servir de prefácio à obra de William JAMES sobre o
Pragmatismo, tradução de E. LE BRUN (Paris, Flammarion, 1911). [2] A
Pluralilistic Universe, Londres,
1900. Traduzido para o francês na “Bibliothèque de Philosophie scientiphique”
sob o título de Philosophie de
l’Expérience.
[3] Muito
engenhosamente, André Chaumeix sinalou semelhanças entre a personalidade de
James e aquela de Sócrates (Revue des Deux Mondes, 15 outubro de 1910).
O cuidado de levar o homem à consideração de coisas humanas para ele mesmo tem
algo de socrático.
[4] No
belo estudo que consagrou a William James, — Revue de métaphysique et de
morale, novembro de 1910 —, Émile Boutroux faz ressaltar o sentido todo
particular do verbo inglês to experience, que quer dizer, não constatar
friamente uma coisa que se passa fora de nós, mas provar, sentir em si, viver
por si mesmo tal ou qual maneira de ser.
[5]
Eu
não estou seguro de que James tenha empregado a palavra “invenção”, nem de que
ele tenha explicitamente comparado a verdade teórica a um dispositivo mecânico;
mas eu creio que essa aproximação é conforme ao espírito da doutrina, e que ela
pode nos ajudar a compreender o pragmatismo.
sexta-feira, 12 de agosto de 2016
Porto Alegre
Alain de Benoist: Digam o que disserem os liberais, a ideologia é inerente à natureza humana
Entrevista
realizada por Nicolas Gauthier[1]
Exceto para você, aparentemente, o
termo “ideólogo” é doravante quase um palavrão. Aquele de “doutrinador” também.
Esses dois termos são sinônimos?
Na origem,
quando o termo foi criado em 1798 por Destutt de Tracy, a ideologia era apenas
a disciplina voltada ao estudo das ideias por si mesmas. Muito depressa, a
palavra passou a designar um sistema de ideias, de normas e de valores com
vistas a propor, sob uma forma coerente, e em oposição ao único conhecimento
intuitivo da realidade, certo modo de se representar e compreender o mundo. A
ideologia, pois, tem um alcance mais amplo que a doutrina, que procura, de
preferência, fornecer um programa de ação. Necessariamente coletiva (não existe
ideologia individual). Ela pode, além disso, revestir-se das mais diferentes
formas: ideologias políticas, econômicas, sociais, religiosas, etc.
Aqueles que
não utilizam a palavra senão que de maneira pejorativa aí encontram um prisma
deformador, que engendraria, inevitavelmente, uma “falsa consciência”.
Trata-se, na realidade, de um filtro. Para a espécie humana, os fatos brutos
são por si mesmos desprovidos de sentido. O homem é um animal hermenêutico, ou
seja, ele tem necessidade de interpretar os fatos em função de uma trama que
possa lhes dar sentido. É por isso que a ideologia se revela ao mesmo tempo
útil e onipresente. Bem entendido, as ideologias podem ser boas ou más,
pertinentes ou errôneas, mas de um erro ideológico não se pode deduzir que
todas as ideologias sejam nefastas. Qualquer um que não seja ideologicamente
estruturado, que não disponha de uma concepção global do mundo, é, ao contrário,
ao mesmo tempo vulnerável e impotente.
Esse papel
positivo da ideologia aparece muito mais nitidamente ainda ao se tomar a
palavra no sentido de sua etnologia. Um antropólogo como Clifford Geertz, por
exemplo, mostrou bem que a ideologia é potencialmente fundadora da identidade
dos grupos humanos. Longe de ser um fator de desconhecimento, ela desempenha um
papel de integração positiva e contribui para a auto definição das sociedades,
particularmente nos momentos históricos em que, como hoje, os referenciais
anteriores se desagregam. Ela aparece desde então como um dado básico da vida
social. Pareto pensava mesmo que ela “faz parte integrante do caráter do homem
civilizado”.
É-nos regularmente
dito que o último século foi aquele do advento das ideologias, mas também de
sua morte. Esse diagnóstico lhe parece fundado?
No momento em
que se vê eclodir a ideologia islâmica, parece-me de preferência maluco!
Aqueles que, no passado, anunciaram o “fim” ou o “crepúsculo das ideologias”
(esse foi o caso de Daniel Bell em 1963, de Gonzalo Fernández de la Mora em
1964) revelaram-se tão maus profetas quanto aqueles que, no dia seguinte ao colapso
do sistema soviético, arriscaram-se a predizer o “fim da história” (Francis
Fukuyama em 1992). Eles não viram que a ideologia é inerente à natureza humana.
Mas são sobretudo os liberais que têm estigmatizado a ideologia, ainda que
pretendendo, seguramente, estarem eles próprios isentos dela. Sua trajetória se
situa no prolongamento desta filosofia das Luzes que pretendia fazer
desaparecer as “superstições”, fundando unicamente sobre a razão uma ordem
social anteriormente fundada sobre a tradição. Ela evoca também a tese de
Augusto Comte, segundo a qual a humanidade se dirigiria inelutavelmente da era
teológica à era científica, ou às visões de um Saint-Simon, desejoso de
“substituir o governo dos homens pela administração das coisas”. O positivismo
cientista não está longe. Trata-se de esquecer, não apenas que há uma ideologia
liberal, mas também uma ideologia da ciência...
É nesse espírito que, junto a muitos
outros, Jean-Louis Beffa, chefe de Saint-Gobain, opunha recentemente o “partido
dos realistas” ao “amplo e compósito clã dos ideólogos”. As ideologias seriam
apenas paixões emocionais sem valor científico, do imaginário sem relação com a
realidade, da ilusão e do sectarismo. Denunciar as ideias adversas como
ideologias permite, pois, desacreditá-las. Esse refrão é comumente retomado pelos
tecnocratas e pelos experts, para quem os problemas políticos são, em última
análise, problemas técnicos para os quais existe apenas uma única solução
“racional”. O fantasma da organização científica (ou racional) da humanidade é
apenas uma maneira entre outras de negar a essência do político. Opor as
ideologias às “ciências positivas” não é mais inteligente.
A luta ideológica faz hoje parte da “Guerra cultural”?
Karl Marx não errou ao dizer que a
ideologia dominante é sempre a ideologia da classe dominante. Enquanto ela for
dominante, impregna os espíritos sem que estes se deem conta disso (vê-se mal a
ideologia quando se nos identificamos com ela), tornando-os sempre mais
conformes, sempre mais dispostos a admitir exigências apresentadas como tão “evidentes”
quanto “insuperáveis”, o que reforça sua legitimidade. No século XIX, ela fazia
assim aparecer o proveito como a remuneração natural do capital, enquanto ele
é, antes, o produto do trabalho. A ideologia dominante é hoje a ideologia do
mercado, fundada sobre a ideologia econômica, sobre a ideologia dos direitos do
homem e sobre a ideologia do progresso. A classe dominante é a Nova classe
mundializada.
Mas toda sociedade é um “campo
ideológico”, como escrevia Louis Althuser, para o qual os aparelhos produtores
da ideologia dominante colidem com outras ideologias que os contestam. É a
relação de força entre essas diferentes ideologias que define o espírito do
tempo e deixa prever suas transformações. “Não existe nada no mundo tão
poderoso quanto uma ideia da qual é chegada a hora”, dizia Victor Hugo.
Émile Durkheim. Confrontation avec Tarde
"A sociologia deve continuar a ser uma especulação filosófica que abraça a vida social em uma fórmula sintética? Deve ela, ao contrário, fragmentar-se em diferentes ciências e, se ela deve especializar-se, como esta especialização se faria? A sociologia puramente filosófica repousa inteiramente sobre esta ideia de que os fenômenos sociais estão submetidos a leis necessárias. Os fatos sociais têm entre si ligações que a vontade humana não pode arbitrariamente romper. Essa verdade supunha uma mentalidade avançada e não podia ser senão o fruto de especulações filosóficas. A sociologia é a filha do pensamento filosófico, ela nasceu no seio da filosofia comtista e não é dela senão o coroamento lógico. Mas, para Comte, a sociologia não consiste na pluralidade de problemas definidos que os sábios estudam separadamente; ela atém-se a um problema único e deve abraçar, num instante indivisível, a seqüência do desenvolvimento histórico para perceber a lei que o domina em seu conjunto. Os estudos de detalhe são perigosos, dizia Comte, porque eles desviam a atenção do sociólogo do problema fundamental que é o todo da sociologia. Os fatos sociais são solidários, e não se pode estudá-los isoladamente, senão que em alterando gravemente sua natureza. Os discípulos de Comte não fazem senão reproduzir o pensamento do mestre, e as mesmas fórmulas têm sido repetidas sem que a sociologia tenha progredido. Mas por que a sociologia consistiria em um único problema? A realidade social é essencialmente complexa, não ininteligível, mas apenas refratária às formas simples. A sociologia não é uma ciência unitária e, ainda que respeitando a solidariedade e a interdependência dos fatos sociais, ela deve estudar cada categoria separadamente. Todavia, a concepção que conduz a sociologia a um só e único problema é ainda a mais geral, mesmo entre os autores contemporâneos. Trata-se sempre de descobrir a lei geral da sociedade. Todos os fatos estudados pelas ciências sociais distintas teriam um caráter comum, pois que sociais, e a sociologia teria por objeto estudar o fato social em sua abstração. Em comparando os fatos sociais, ver-se-ão quais são os elementos que se encontram em todas as espécies e destacar-se-ão os caracteres gerais da sociabilidade. Mas onde e como alcançar essa abstração? Os fatos dados são concretos, complexos; mesmo as civilizações mais inferiores são de uma extrema complexidade. Como destacar o fato elementar com seus caracteres abstratos, se não se começa por estudar os fenômenos concretos onde ele se realiza? Se, pois, a sociologia quiser viver, ela deverá renunciar ao caráter filosófico ao qual ela deve sua origem e aproximar-se das realidades concretas por meio de pesquisas especiais. Há interesse em que o público saiba que a sociologia não é puramente filosófica, e que ela pede precisão e objetividade. Mas isso não quer dizer que as disciplinas especiais não devam, — para se tornarem ciências verdadeiramente sociológicas, — senão permanecerem aquilo que elas são atualmente. Elas não têm sido ainda suficientemente penetradas pelas idéias que a filosofia social destacou. Elas têm necessidade de se transformar, de orientarem-se em um sentido expressamente sociológico. No momento atual, não se pode senão formular o problema".
Fonte: Citação extraída da edição eletrônica realizada a partir de um texto de Émile Durkheim (1903), La sociologie et les sciences sociales. Confrontation avec Tarde. Texto disponível na coleção produzida por Jean-Marie Tremblay, Professor de Sociologia em Chicoutini, Les classiques des sciences sociales.
Foto: Wikipedia Creative Commons.
Foto: Wikipedia Creative Commons.
sábado, 6 de agosto de 2016
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
A Ordem Moral
Robert
de Herte[1]
Numerosos
espíritos tristes queixam-se hoje de que "não existe mais moral".
Curiosa queixa. Mais moral? Mas ela existe hoje mais do que nunca. A moral
invade tudo em nossos dias. Mas não é mais a mesma.
É
verdade que muitos de nossos contemporâneos se consideram libertos de toda
regra moral. Aqueles que lhes fazem a lição evitam "fazer a moral".
Eles se exprimem tomando a precaução de dizer que seus julgamentos não são
inspirados pela moral. Ao termo "moral", que traz com ele conotações
religiosas que muitos julgam envelhecidas, prefere-se, aliás, o termo
"ética", que parece melhor convir a uma sociedade laica, ainda que a
origem etimológica de ambas as palavras seja a mesma (mores e ethos) e ainda
que, a rigor, a ética não saberia ter um alcance individual.
Não
há dúvida de que a moral tradicional se perde. Mas outra a substitui. A antiga
moral prescrevia regras individuais de comportamento: a sociedade se portaria
melhor se os indivíduos que a compõem se comportassem bem. A nova moral quer
moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos. A antiga moral
dizia às pessoas aquilo que elas deveriam fazer; a nova moral descreve aquilo
que a sociedade deve se tornar. Não são mais os indivíduos que devem se conduzir
de modo direito, mas é a sociedade que deve se tornar mais "justa". É
que antiga moral era subordinada ao bem, enquanto a nova é subordinada ao
justo. O bem realça a ética das virtudes; o justo, uma concepção de Justiça,
ela mesma colorida de uma forte impregnação moral. Mesmo quando elas pretendem
permanecer "neutras" quanto à escolha de valores, as sociedades
modernas aderem a esta nova moral. Elas são simultaneamente ultrapermissivas e
hipermorais.
O
fundo das coisas é o que Max Weber chamava de a lógica do dever-ser. A
Antiguidade vivia em comunhão do Ser, a modernidade nascente reclama-se a do
dever ser. Em termos simples: o mundo deve se tornar uma coisa diferente
daquilo que ele foi até agora. Ele deve ser transformado para se tornar
"mais justo". Ele deve ser reconstruído segundo um projeto saído de
uma crença antiga ou da razão moderna. A justiça e o direito não definem mais
uma relação de equidade entre as pessoas, mas exprimem eles também um
dever-ser. Todo social é assim reinterpretado à luz desse dever-ser, que não
faz nenhum caso da natureza das coisas e dos seres.
Na
base do dever-ser, encontra-se uma recusa tal e qual ele é. Essa recusa, de
certa maneira é também um "não" à vida. "Mundus est
imuuundus", dizia Santo Agostinho, é preciso pois transformá-lo,
corrigi-lo, para satisfazer às exigências divinas dizem uns, para fazer frente
à necessidade histórica pretendem outros. Esta vontade de reconstruir o mundo,
ou ainda de restaurá-lo (tikkun[2]),
remonta à Bíblia, que nos diz que o mundo é imperfeito, que ele é atingido por
uma menos valia. Toda a ideologia do progresso, todo o utopismo das Luzes
representam disso a versão profana: sob hábitos seculares (a felicidade
substitui a salvação, o além cede lugar ao amanhã), é ainda e sempre a velha fé
messiânica e quiliástica[3]
na marcha irresistível da história em direção ao seu final (movimento calcado
sobre uma auto supressão) que está em construção. O Progresso é esta lenta
melhora do mundo, chamado a progredir de maneira unitária em direção a dias
melhores. "Substituí a salvação cristã pela fé no progresso, diz Pierre
Legendre, e obtereis o credo comercial do ocidente planetário".
A religião cristã é,
desde o início, desejada como constitutiva de uma "comunhão universal
real" (Pierre Manent), a república Cristã. Os teóricos das Luzes asseguram
que é apoiando-se sobre suas próprias faculdades, e não observando os preceitos
de Deus, que os homens asseguraram sua salvação e chegaram a criar a sociedade
perfeita, ao menos a sociedade definitiva, "final". Mas a própria ideia
de um movimento da história que se oriente nessa direção lhes vem de uma
religião que eles acreditam haverem abolido, ainda que não percebam que ela se
torna assim mais operante que nunca. Como diz John Gray após muitos outros, a
começar por Karl Löwith, as Luzes se limitam a reciclar a crença segundo a qual
a história é a narrativa da salvação da humanidade. Gray mostra que esta crença
se encontra tanto no comunismo stalinista quanto no neoconservadorismo
americano, que acredita que se pode chegar à sociedade perfeita "dando
livre curso à magia do mercado". "A despeito de suas pretensões a uma
racionalidade científica, o neoliberalismo tem raízes em uma interpretação
teleológica da história enquanto processo com um objetivo predeterminado, e
nisso, como em outras regiões, ele apresenta forte semelhança com o
Marxismo" (Black Mass. Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, Allen
Lane, London 2007).
Fundada sobre os
direitos subjetivos que os indivíduos teriam sobre o estado da natureza, a
ideologia dos direitos do homem, tornada a religião do nosso tempo, é antes de
tudo uma doutrina moral. Sua principal característica, escreve Marcel Gauchet, é
a de "enraizar-se naquilo que constitui efetivamente a pedra de toque do
legítimo e do ilegítimo no seio de nosso mundo, a fim de extrair daí, ao mesmo
tempo, uma grade de leitura e um programa para a ação coletiva [...]. A
ideologia dos direitos do homem decifra a realidade social à luz daquilo que
ela deveria ser [...] O único inconveniente desse imperialismo do dever-ser é
que ele não favorece a compreensão dos obstáculos que encontra em seu caminho,
ainda quando eles respondem manifestamente a fortes necessidades do ponto de
vista da existência comum. A única coisa que ele tem a dizer é que eles não
deveriam existir. Onde buscar sua finalidade? O afastamento da norma é
rejeitado nas trevas exteriores como um mal cuja condenação enquanto mal
supõe-se esgotar a compreensão. A ideologia dos direitos do homem traduz-se, em
outros termos, por uma invasão de moralismo, um moralismo ainda mais implacável
quando mobiliza as molas íntimas da afetividade” (« De la critique à
l’autocritique », in Le Débat, mai-août 2008, p. 159).
A nova ordem moral é
aquilo que Philippe Muray chama de o império do bem. Esse bem não é senão que
um bem derivado da prioridade do justo, um bem “objeto do desejo justo”. Esse
bem degenerou hoje em um novo moralismo — uma “moralina”, diria Nietzsche.
Paralelamente, o mal é negado como fazendo parte intrinsecamente da natureza do
homem, ainda que sendo reconhecido sob a forma extrema do “mal absoluto”, como
negação radical do bem dos direitos do homem.
A direita tem
frequentemente uma visão fundamentalmente ética da política, a esquerda, uma
visão moral. De um lado, Excalibur; de outro, as Beatitudes. Dois universos de
valores muito diferentes, mas também impolíticos (impróprios à compreensão daquilo
que é a política) um quanto outro. Hoje é a visão moral que domina. E é assim
que esta sociedade, que muitos julgam desprovida de toda moral, pode, em
realidade, achar-se portadora de uma moral de outro gênero, de um moralismo
onipresente que propagam os seus devotos, seus missionários e suas ligas da
virtude. Procuram-se libertinos.
Robert de Herte,
Éléments n°130, 2009.
Disponível em: http://grece-fr.com/?p=1550
[1] Pseudônimo de Alain de Benoist
quando assinava editorias da revista Éléments pour la civilisation
européenne (N. da T.).
[2] Tikkun significa
“correção”. Assim a chamada Tradição cabalística designa o caminho mais
benéfico para nosso crescimento espiritual (N. da T.).
[3] Milenarismo. Doutrina que
assegura que os predestinados ainda permaneceriam na Terra durante mil anos
após o julgamento final, no gozo de todos os prazeres (N. da T.).
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Divulgação
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