segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Dedicatória

Resumo do Curso de Psychologia de W. Radecki autografado pelo autor.
Exemplar de Rogério Centofanti. 


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Defesa Social


Essa expressão, quando empregada no contexto social do final do século XIX início do XX, deve ser compreendida em contexto bastante específico. Embora merecendo análise mais detalhada, pode-se, muito resumidamente, dizer que a defesa social tornara-se o fundamento da penalidade, quando, graças à antropologia criminal e à escola positiva que ela inspirara, o livre arbítrio foi questionado e colocado em dúvida, abalando assim a viga mestra da chamada escola clássica, que condicionava a aplicação da pena ao indivíduo apenas quando este tivesse consciência do caráter deletério das ações criminosas que eventualmente praticasse.

Lei da unidade mental coletiva


Na primeira parte de sua obra clássica intitulada “Psicologia das multidões”, Gustave Le Bom (1909, p. 12) emprega, com grifos, aliás, essa expressão: lei da unidade mental das multidões. A tal lei estariam submetidas as multidões, eis que formariam um único ser, porque, — dirá ele —, em determinadas circunstâncias, e apenas nessas certas circunstâncias, — acentua —, uma aglomeração humana adquiriria características novas, que se mostrariam muito diferentes daquelas particulares aos indivíduos que compusessem a aglomeração. Suas personalidades conscientes como que se desvaneceriam, enquanto seus sentimentos e ideias se orientariam rumo a uma mesma direção. Formar-se-ia assim “uma alma coletiva, transitória sem dúvida, mas apresentando características muito nítidas” — afirma, acrescentando a seguir que, na ausência de expressão mais adequada, haveria aí uma multidão organizada, ou, preferindo-se, “uma multidão psicológica” (id. Ibid.).

Fonte: Le Bon, G. (1909). Psychologie des foules. Paris: Alcan.



terça-feira, 11 de dezembro de 2018

REVISTA VIDA BRASIL

Coisas que só acontecem com bibliófilos

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

C’est la vie! Chegou o dia em que o desapego se impôs. Tive de me desfazer da metade de minha biblioteca. Imposição cruel. Sacrifiquei boa parte da literatura, todas as enciclopédias ― a literária, inclusive, com seus mais de vinte volumes ―, e todos os livros dedicados a temas, digamos assim, mais leves. Foram diversos carregamentos de pesadas caixas que vi sendo levadas para longe de mim, deixando-me desolada. Em compensação, ― porque parece que sempre é preciso buscar desesperadamente recompensas aos nossos sacrifícios ―, a renúncia me impôs uma revisão geral de tudo. 

Coisas que só acontecem com bibliófilos


Procedi a um verdadeiro inventário do que possuo. Disputando o espaço centímetro a centímetro, cada um dos livros que me restaram teve de encontrar um lugar certo e inteiramente seu, vizinhando com seus pares, uma vez que tudo agora precisa estar muito organizado.
Essa dolorosa perda de muitos deles só reforçou minha ligação com os remanescentes. Há livros em praticamente todas as peças da casa. São os sobreviventes, brinco. E, se eu já mantinha grande proximidade com eles, agora essa relação se tornou absolutamente promíscua. Retomei-os. Rever, reler, reparar, colar lombadas, encapar, redescobrir. A separação de uns provocou a reaproximação dos demais e ainda felizes reencontros. Como o de hoje, por exemplo, com um livro adquirido em São Paulo, 2007, mês de julho. ― Já faz tanto tempo? Sim. ― Presente do Rogério, que me levara então ao sebo doSeu Luis, gentilíssimo cavalheiro português, com todas as suas décadas como livreiro. Foi ele próprio que, tomando da escada, buscou, no alto de uma das muitas prateleiras de seu enorme estabelecimento, um livro bastante antigo na aparência, talvez adivinhando em mim alguém capaz de dar valor a algo tão anacrônico, definitivamente.


O livro é de 1864 e foi editado na França. Trata-se do segundo volume de Vies des saints avec le martyrologe romain et réflexions morales en forme de lecture de piété pour chaque jour de l’année.Traduzindo: Vidas dos santos com o martirológio romano e reflexões morais em forma de leitura de piedade para cada dia do ano.  A obra foi aprovada pelo bispado, e é de autoria do Abade Caillet, antigo professor do Seminário de Langres. Esse segundo volume, com suas 680 páginas, é dedicado aos mártires cristãos que marcam cada dia do calendário dos meses de abril, maio e junho. Naturalmente, na prática, inencontráveis os outros volumes da mesma obra. Mas a este, é possível consultá-lo como a um calendário, ainda que incompleto. É sempre tentador também abri-lo ao acaso, como se fora um oráculo, e realizar  ― por que não? ― leituras edificantes ou, no mínimo, lúdicas.
Foi assim, ao sabor do acaso, que encontrei uma referência a São Bonifácio, apontado como o mártir cristão festejado no dia 14 de maio. Descubro que ele foi supliciado em Tarso, na antiga Cicília romana, — atual Turquia —, sob Diocleciano. Levado às portas de Roma, foi enterrado na via Latina. Sua história, ainda que sob o estatuto da lenda, me pareceu muito interessante. Divido-a com vocês.
Pois bem. O ano é 304 de nossa era, e a cidade é Roma, onde então vivia Aglaia, uma linda mulher. Uma mulher, aliás, cujas qualidades não se limitavam à beleza, porque era de origem ilustre e também muito, muito, muito rica. Para administrar sua imensa fortuna, valia-se de mais de sessenta intendentes, todos comandados por Bonifácio que, como eles, era também servo de Aglaia. Tão poderosa era ela que, por três vezes, patrocinara jogos públicos naquela cidade. Aglaia vivia, enfim, em meio ao luxo e à opulência que excitam as paixões.
Luxo e opulência na Roma antiga dos anos 300? Instigante, penso eu, até porque em seguida descubro que Bonifácio e Aglaia mantinham entre eles um comércio carnal em tudo reprovável. Sei... Impossível não pensar que, sob alguns aspectos, o mundo mudou bem pouco. Bonifácio, enfim, era amante de sua senhora. Além disso, ele costumava entregar-se também ao jogo, ao vinho e a todas as depravações. Divago por um instante, e me imagino uma leitora do século XIX, com o martirológio nas mãos, num convento talvez, descobrindo o mundo antigo e as tais depravações no livro que se propõe como leitura piedosa. Mas volto, em seguida, às páginas que agora me prendem. Diz ali que, não obstante lúbrico, apesar de voltado aos prazeres da carne e do vinho, a Bonifácio não faltavam boas qualidades. Era hospitaleiro, liberal e generoso. Se algum estrangeiro chegasse a Roma, podia contar com sua pronta acolhida, um dos encantos da hospitalidade. Sensível aos males alheios, muitas vezes ele percorria as ruas de Roma para socorrer e recolher indigentes. Era, pois, um homem de bom coração. E, muito provavelmente, bonito, penso eu, ou Aglaia não teria se interessado por ele.
Saibamos mais dessa mulher. Aglaia, apesar da fartura e dos prazeres em meio aos quais vivia, experimentava o vazio que estes, sempre transitórios, deixam na alma. — Bem, já era hora de a leitura tornar-se edificante. — Nossa heroína, entedia-se. E ela cede a uma graça interior, uma espécie de apelo divino. Por conta disso, chama Bonifácio à sua presença e lhe diz, textualmente: “Vê em que pecados caímos sem pensar que será preciso aparecer diante de Deus. Ouvi dizer dos cristãos que aquele que honrar os santos que combatem por Jesus Cristo partilharão de sua glória. Ouvi também que os servidores de Deus combatem no Oriente contra o demônio e que eles entregam seus corpos aos tormentos para não renunciarem à sua fé. Vá, pois, e traga-nos relíquias de alguns santos mártires, para que nós os honremos e para que sejamos salvos por sua intercessão.” Bonifácio, então, — pelo visto muito obediente aos desejos de sua senhora —, toma boa quantidade de ouro “para adquirir as relíquias e para dar aos pobres” e dispõe-se a partir.

Foram doze cavalos, três liteiras e muitos perfumes para honrar com eles as santas relíquias. Assim equipado, ele parte, dizendo antes a Aglaia: “Senhora, se eu encontrar relíquias, eu as trarei. Mas se as minhas vos chegarem, sob o nome de mártires, vós as recebereis?” Ao que ela lhe respondeu: “Deixa teus prazeres e pensa que vais procurar as relíquias dos santos. Para mim, pobre pecadora, espero pouco. Rogo ao Deus todo-poderoso que tomou a forma de escravo e derramou seu sangue por nós, que envie seu anjo diante de ti, te conduza, e realize meus desejos sem olhar meus pecados.”
Bonifácio partiu. Penso nos caminhos do Império, nos cavalos e nas liteiras. E percebo uma rápida, quase instantânea, transformação em nosso herói. Ao longo do caminho, ele dizia: “É justo que eu não beba vinho nem coma carne, porque, por indigno que eu seja, devo portar as relíquias dos santos.” A seguir, erguendo os olhos aos céus, acrescentou: “Senhor Deus todo-poderoso, pai de vosso único filho, dirigi minha viagem, a fim de que vosso santo nome seja glorificado por todos os séculos.” Enfim, chegaram a Tarso, onde a perseguição aos cristãos se mostrava particularmente violenta. Dirigindo-se aos seus companheiros, Bonifácio pede-lhes que procurem abrigo e que façam repousar os cavalos, porque ele iria imediatamente ao encontro do que mais desejava. E vai sozinho, então, ao lugar dos combates. O espetáculo que se ofereceu a seus olhos era, porém aterrador: santos mártires supliciados.
Um, pendurado pelo pé, sofria com o fogo aceso sob sua cabeça. Outro, amarrado pelos membros, era esticado em quatro direções. Outro ainda era serrado pelos carrascos. Havia o que teve as mãos cortadas, e o que fora colado na terra com um pé na garganta. Havia também o que tivera os membros torcidos e atados nas costas, enquanto era incessantemente espancado. Vinte cristãos eram assim atormentados. Todavia, enquanto esse espetáculo sangrento e aterrador horrorizava os espectadores, os mártires, eles mesmos aos quais se impunham tais tormentos, mantinham uma tranquilidade inalterável.

Aproximando-se de um deles, Bonifácio beijou respeitosamente suas feridas e exclamou: “Como é grande o Deus dos cristãos! Servidores de Jesus Cristo, rogai por mim, para que eu me una a vós e partilhe de vosso combate contra os demônios.” Disse-lhes ainda: “Coragem, santos mártires! Combatei generosamente! O combate é breve, e a recompensa é eterna.”
Simplício, o governador, percebendo a presença de Bonifácio, perguntou-lhe: “Quem é este que zomba dos deuses e de mim? Que ele seja capturado e conduzido a meu tribunal.” E assim foi. Acrescentou depois: “Quem és tu que desprezas a grandeza de meu tribunal?” Bonifácio: “Já vos disse. Sou cristão. Se perguntais meu nome, chamam-me Bonifácio.” Disse-lhe o juiz: “Antes que eu te faça atormentar, aproxima-te e sacrifica aos deuses.” Bonifácio: “Eu vos digo ainda que sou cristão e que não sacrifico a vossos demônios.” O juiz, enfurecido, afiou ferros e os fez introduzir por debaixo das unhas das mãos de Bonifácio, que sofreu pacientemente olhando para o céu. Ele não cede. Ordenam-lhe que abra a boca, para que nela fosse vertido chumbo derretido. Inútil. Bonifácio diz então: “Senhor Jesus, filho do Deus vivo, vinde em meu socorro e não sofrais porque fui derrotado.” Leio assombrada que o chumbo derretido não lhe causou mal algum, e que tampouco Bonifácio sofreu quando foi atirado para dentro de uma caldeira de breu. E, — garante-nos o livro —, depois de diversos outros suplícios que duraram todo o dia até a manhã seguinte, o juiz, espantado diante dos poderes de Jesus Cristo assim como da constância do agora mártir Bonifácio, ordenou que lhe cortassem a cabeça.

Interrompo a leitura por um momento. Reflito acerca da natureza das pregações cristãs. E penso até que ponto a vida real, material, humana, deveria enfrentar esses implacáveis desafios em nome da salvação. Prossigo. Descubro que os companheiros de viagem de Bonifácio, preocupados com sua prolongada ausência, procuravam-no por toda parte, dizendo uns aos outros: “Sem dúvida está em algum lugar mal frequentado, divertindo-se, enquanto nos atormentamos a procurá-lo.” Nisso, encontram o irmão do carcereiro, ao qual indagam se acaso não vira um estrangeiro vindo de Roma, ao que ele lhes respondeu que um fora martirizado naquela manhã, sofrendo por Jesus Cristo. Ouvindo isso, os companheiros de Bonifácio retrucaram, dizendo que aquele a quem procuravam era um devasso, um bêbado, que nada tinha em comum com os mártires. Todavia, a descrição do martirizado fora exata: um homem firme, forte, de cabelos crespos e louros, que usava um manto escarlate. Conduzidos para diante do corpo, qual não foi a surpresa dos companheiros que nele reconheceram Bonifácio.  “Servidor de Deus!” ― exclamaram chorando. — “Perdoai-nos o mal que pensamos de vós!”. Embalsamaram-no depois, e, envolvendo-o em linhos preciosos, retomaram o caminho de volta.

Enquanto isso, longe dali, um anjo aparece a Aglaia e lhe diz: “Aquele que era vosso escravo é agora vosso irmão. Recebe-o como vosso senhor e coloca-o dignamente. Vossos pecados serão perdoados por sua intercessão.” E assim foi. Aglaia, tocada pela mensagem, prontamente convidou eclesiásticos piedosos que trouxeram círios e perfumes. Cumprira-se o pedido profético de Bonifácio. As santas relíquias chegaram e foram colocadas em cinquenta locais ao longo da via Latina. Aglaia constrói também um oratório digno do santo mártir e, desde então, renunciou ao mundo, distribuiu suas riquezas entre os pobres e consagrou-se inteiramente a Jesus. Viveu por mais treze anos ainda, em exercício de piedade. Ela foi sepultada ao lado de Bonifácio.
Termino de ler a história e volto à realidade, depois de ter viajado no tempo e experimentado emoções que me são estranhas, a mim e a você talvez. Os livros têm esse poder de nos abstrair de nosso espaço, de nosso tempo, de nossos hábitos. Nesses percursos, todavia, a imaginação é refinada: ela pode nos levar a Roma e nos aproximar de Aglaias e de Bonifácios, em que pese os mais de mil e setecentos anos que nos separam. Fecho o martirológio, e é como se a Roma antiga por onde viajei há pouco se recolhesse, absorvida pelas páginas amareladas.  O livro volta para a estante e eu, para essa minha escrita e para você, desconhecido leitor, a quem eu confidencio que essas coisas, — acredite —, só acontecem com bibliófilos.


Autor: Maristela Bleggi Tomasini

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Clóvis Bevilacqua e o Código Civil Brasileiro de 1916

Fon-Fon! Rio de Janeiro, ano X, n. 1, 1° jan. 1916, p. 49


Clovis Bevilacqua


Clovis Bevilacqua nasceu em 4 de outubro de 1859, em Vila Viçosa, Ceará. O destino, que lhe reservou a imortalidade na cadeira n. 14 da Academia Brasileira de Letras, da qual foi um dos 40 fundadores, fez dele um destacado jurista. Coube-lhe, ― talvez como feito de maior alcance histórico , na gestão de Campos Sales, por convite do então Ministro da Justiça Epitácio Pessoa, em 1899, a autoria do projeto do primeiro Código Civil Brasileiro, concluído em 1900, mas que só viria à luz em 1916. A demora merece algumas considerações, justificadas, mesmo aqui, tanto pela relevância dos personagens implicados quanto pela dimensão que o assunto tomou.


O projeto do Código Civil e a polêmica com Rui Barbosa


É que o projeto, encaminhado ao Congresso Nacional, teve como relator, no Senado, Rui Barbosa, que demorou longo tempo para concluir seu parecer, ocupando-se, ao que parece, menos da matéria jurídica do que da gramatical, a ponto de essa circunstância ter sido considerada “um mistério para o historiador” (MAGNE, 1949, p. XV). Examinando seu parecer, tomado às suas obras completas publicadas em 1902, encontra-se que, dirigindo-se aos senadores da Comissão, se disse impressionado pela negligência da forma, que se interpunha entre ele e o legislador como um véu ou mesmo um tropeço:


Quando a frase é simples e pura, através dela penetra diretamente a inteligência ao encontro do pensamento escrito. Mas se ele se desvia da expressão natural e correta, forçosamente se há-de transformar a leitura em tedioso esforço de crítica e decifração, a que a redação das leis não deve expô-las, se as quer entendidas e obedecidas.
Aos meus primeiros reparos, supus não passassem de leves e raras jaças na superfície de imensa gema despolida. Mas tanto se repetiam, que principiei a assinalá-las para orientação minha, e afinal não sei se houve página da brochura, onde não tivesse que notar. Compreendi então que ao trabalho jurídico, vasto e notável, bem que defeituoso e incompleto, da câmara trienal, estava por dar ainda, quase inteiramente, a mão-d'obra literária. (BARBOSA, 1949, p. 1-2).

Mesmo as discussões a propósito da forma chegavam à imprensa. Assim a manifestação de Candido de Figueiredo (1913, p. 8) no Jornal do Comércio, sobre adjetivos advérbios na língua portuguesa. Ele relata-nos que Ruy teria observado não ser razoável a substituição do adjetivo adverbial independente por independentemente pretendida por Clovis, evitando-se a forma puramente adverbial.
As críticas de Ruy repercutiam, portanto. Clóvis, inconformado, chega a escrever um livro a propósito das críticas, em cujo prólogo, registra:

Por um lamentavel desvio da critica, versou a discussão muitas vezes entre nós, sobre questões de estylo e grammatica. Fugi o mais possivel de envolver-me nessa contenda bysantina que um só resultado poderia ter: ― o de perdermos um tempo consideravel e precioso, si não a opportunidade de obter a passagem do Codigo civil no Congresso. Mas era impossivel ficar quieto, imperturbavel, quando a picareta impiedosa, derrubando a caliça e levantando nuvens de poeira fingia estar solapando a construcção (BEVILACQUA, 1906, p. X).

Todavia, se aproximarmos bem os fatos, não parece razoável supor que a oposição ferrenha de Ruy à aprovação do projeto tenha se devido, exclusivamente, às suas discordâncias quanto à forma. Considere-se, a propósito que “Clovis Bevilacqua recusou ser ministro do Supremo (por duas vezes), ser governador de seu Estado e, por fim, a representar o Brasil em Haia. Rui Barbosa acabou sendo o representante do Brasil naquela conferência” (NEDER, 2002, p. 7). Tentador, então, especular se “tal fato, também seguido do convite e aceitação por parte de Rui Barbosa para comparecer ao Congresso de Haia, servem-nos como indícios desses sentimentos e ressentimentos aqui analisados” (RODRIGUES, 2011, p.4).
Seja como for, ao menos é preciso considerar que houve ainda obstáculos de outra ordem, que não a gramatical, que Ruy não hesita em arguir. Assim, por exemplo, a publicação no matutino carioca “A Época”[1], de circulação diária, lemos sobre o que teria sido a formidável oração de Rui proferida véspera, diante do Senado, a propósito do Código, ao analisar e apreciar a situação política. O título da matéria é longo. Dir-se-ia pomposo, tão ao gosto da época: “No Senado o sr. Ruy Barbosa conclue sua formidavel oração. A proposito do Codigo Civil, analysa e aprecia á situação politica, perorando brilhantemente” (NO SENADO, 1912, p.5). Rui, que se atrasara, inicia seu discurso de duas horas, criticando a “celeridade com que se procura fazer votar o projecto” (id., Ibid.). Ele também teria analisado a situação que considera anárquica e que o país vinha atravessando, imprópria, portanto, à codificação de leis. A longa fala detém-se sobre as experiências históricas de outras nações relativas à codificação de suas leis civis: a da França, menos demorada, com Napoleão; as melhores, Alemanha e Suíça. Rui insiste no fato de que a celeridade que se desejava então dar à votação era absurda. “Cada um dos codigos civis custou destarte ao seu paiz quase um quarto de seculo de assiduo e continuo labor” (id., ibid.). Ele não hesita em qualificar a pressa como obsessão, ideia fixa, mesmo uma monomania de celeridade.
Mas havia, na contramão, interesse na celeridade. Em 7 de fevereiro de 1913 lia-se no Correio Paulistano que o marechal Hermes da Fonseca assinara, naquela mesma data decreto para convocação extraordinária do Congresso Nacional para reunir-se no dia 2 de abril vindouro, em sessões extraordinárias provocadas pela “urgencia que tem o Congresso de ver discutido e approvado o Codigo Civil Brasileiro” (CONVOCAÇÃO, 1913). Nas muitas sessões públicas que se seguiram, Clóvis defendeu seu trabalho.
Dias antes da transformação do anteprojeto no Código Civil Brasileiro que vigorou até 2002, em 1º de janeiro de 1916, Paulo de Lacerda (1915, p. 3), publica, no dia de Natal, artigo que repercutiu mesmo passadas quase duas décadas de sua publicação[2]. Tratou-se de uma longa síntese que enfatiza o estado no qual se encontrava a legislação civil: “Afogada no accumulo, cada vez maior, de uma legislação polychroma, confusa e contradictoria, que se vinha amontoando desde seculos, em sahir da tão mortificate balburdia consistia uma das suas arentes aspirações” (id., ibid.). O articulista trata então das quatro tentativas anteriores de codificação[3], até que, em fins de janeiro de 1899, Campos Salles retoma a ideia do Código e nomeia, para redigir o projeto que lhe serviria de base, o jurista Clóvis Bevilacqua “que desde alguns anos vinha logrando saliente posição entre os juristas patrios” (id., ibid.). Sua escolha, assim, teria sido acertada, porque

[...] o eminente professor da Faculdade de Direito do Recife, alem de possuir, já naquella época, vasto cabedal de estudos, cimentado pela argamassa preciosa do traquejo adquirido em assíduo magisterio, é de alma refractaria ás vanglorias do espirito, ao mesmo tempo combativo e tolerante, sem arestas ferinas e sem opiniões irreductiveis, e carater que não se sente apoucado reconhecendo o melhor (LACERDA, 1915, p. 3).

Muitos elogios, sim. E merecidamente, diga-se.



[1] Bruno Brasil (2014), conta-nos que “A Época” circulou no Rio de Janeiro de 1910 a 1919 e se posicionava contra hábitos que considerava provincianos e que atribuía à imprensa de então. Refinada e galante, não apenas publicava artigos sobre moda e cultura, mas ainda tratava de questões sociais e trabalhistas. Fazia oposição ao governo de Hermes da Fonseca e do PCR (Partido Republicano Conervador), particularmente em 1913, quanto intensifica os ataques ao PRC. Em 1914, já sob o governo de Wenceslau Brás, aplaudia a atuação de Rui Barbosa. [BRASIL, Bruno. A Época (Rio de Janeiro, 1912). BNDiginal, Artigos. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/artigos/a-epoca/>. Acesso em: 25 nov. 2018.]

[2] A Revista Fon-Fon! ― semanário que circulou no Rio de Janeiro de 1907 a 1945, de amplo repertório temático para registro de hábitos socioculturais do que fora a belle époque brasileira (ZANNON, 2005, p. 18) ― publicou, em 1933, artigo no qual Hormino Lyra (1933, p. 50) qualifica como magistral esse artigo que Paulo Lacerda escrevera em 1915.[ZANON, Maria Cecilia. Fon-Fon! – Um Registro Da Vida Mundana No Rio De Janeiro Da Belle Époque. In: UNESP – FCLAs – CEDAP, v.1, n.2, 2005 p. 18. Disponível em: < file:///C:/Users/user/Downloads/18-644-1-PB%20(1).pdf>. Acesso em: 28/11/2018.] [LYRA, Hormino. Commentarios. Fon-Fon!, Rio de Janeiro, ano XXVII, n. 6, 11 fev. 1933, p. 50.]

[3] A primeira, de Teixeira de Freitas, em 1859, que não teria passado de um longo e exaustivo esboço, com quase cinco mil artigos e, ainda assim, incompleto mesmo em 1872, quando é dado por pronto. A segunda foi de Nabuco de Araújo, que faleceu, deixando um rascunho que apenas ele poderia interpretar. A terceira, de Felício dos Santos, e teria consistido em apontamentos oferecidos ao governo em 1881, mas que, submetidos a exame, foram censurados por uma Comissão Ministerial nomeada por Souza Dantas e composta, entre outros, por Lafayette Rodrigues Pereira. Pelo parecer da comissão, o documento carecia de método apropriado à codificação. Ainda assim, a tentativa de aprovação prossegue até que o próprio Felício, em 1882, retira o projeto da comissão, oferecendo-o à Câmara dos Deputados onde, apesar da aprovação de diversos deputados, morre esquecida na Comissão de Justiça. Em 1889, Cândido de Oliveira, então Ministro de Justiça, nomeia outra comissão para tratar do assunto, mas ela é dissolvida com o advento da República. Assim, em julho de 1890, a tarefa é conferida a Coelho Rodrigues, com prazo e três anos. Apresentado o projeto em 1893, o projeto é rejeitado por Floriano Peixoto. No Senado, para onde foi por oferecimento do autor, o projeto suscita debates que resultam em sua adoção, porém, uma vez remetido à Câmara, não teve seguimento “dando pasto a discussões azedas e a forte polemicas” (LACERDA, 1915, p. 3), em que pese a defesa de Coelho Rodrigues “com energia e brilhantismo” (id., ibid.). O trabalho de 2.734 artigos teria sacrificado as tradições jurídicas do pai e assimilado direito estrangeiro. Todavia, o cronista salienta que, caso submetido a cuidadoso exame, poderia atender às reivindicações da crítica. Mas assim não foi e “desfez-se a quarta tentativa, castigada sob os vagalhões da polemicas, não raro, mais apaixonadas que sinceras” (id., ibid.). [LACERDA, Paulo de. O Codigo Civil (synthese). Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 89, n. 358, 25 dez. 1915, p. 3.]

sábado, 24 de novembro de 2018

Um problema de pesquisa

“A philosophia da historia d’um povo qualquer é o mais temeroso problema que possa occupar a intelligencia humana. São conhecidas as difficuldades quasi insuperáveis dos estudos sociologicos. Uma theoria da evolução histórica do Brasil deveria elucidar entre nós a acção do meio physico, por todas as suas faces, com factos positivos e não por simples phrases feitas; estudar as qualidades etimológicas das raças que nos constituiram ; consignar as condições biológicas e económicas em que se acharam os povos para aqui immígrados nos primeiros tempos da conquista ; determinar quaes os hábitos antigos que se estiolaram por inúteis e irrealisaveis, como orgãos atrophiados por falta de funcção ; acompanhar 0 advento das populações cruzadas e suas predisposições ; descobrir assim as qualidades e tendências recentes que foram despertando ; descrever os novos incentivos de psychologia nacional que se iniciaram no organismo social e determinaram-lhe a marcha futura. De todas as theorias propostas a de Spencer é a que mais se aproxima do alvo por mais lacunosa
que ainda seja
ROMÉRO, Sylvio. Historia da litteratura brasileira. 2ª edição, tomo I. Rio de Janeiro: Garnier, 1902, p. 21.
Imagem: Silvio Romero. Fonte: Wikimedia Commons

sábado, 17 de novembro de 2018

Imprensa como fonte


A utilização de fontes produzidas pela imprensa, ― revistas e jornais, dentre outras ―, tem como regra a prévia análise da linha editorial. O que orienta os temas, os assuntos, daquela determinada publicação que se pretende usar? É possível descobrir ali uma estética editorial? Caso positivo, o que ela nos informa ou quer significar como visão de mundo ali refletida? Considere-se ainda que qualquer publicação impressa se dirige a um público determinado: um sujeito leitor. Esse conjunto de fatores nos fornece as condições de produção daquele material, algo que pode revelar tendências ditadas pelos interesses ali implicados e seu maior ou menor poder de influência. Tais tendências, se e quando corretamente identificadas, podem mesmo ultrapassar em importância os fatos registrados. Há um ideário que atravessa a produção impressa. Ele se mostra tão segmentado quanto os sujeitos leitores, que podem manter pertinências entre eles, interesses comuns. O resultado desse ideário é o aparelhamento da informação que se relativiza. O historiador, se souber ficar atento a essa relativização, colhe dela mais do que o fato revelado, podendo alcançar o próprio interesse ali implicado.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Identidade


Identidade é um tema moderno, na medida em que traduz um conceito ora pertinente à psicologia, ora à sociologia, ora à antropologia, tema que envolve questionamentos acerca das condições em que se produz. Sua atualidade, todavia, não significa que a questão da identidade não tenha sido colocada anteriormente no que concerne à posição da pessoa no meio social, do “eu” ― que se parece consigo ao mesmo tempo em que se diferencia dos outros ―, enfim, a identidade vai propiciar a construção do eu e da noção de pessoa, noção bastante antiga, como acentuou Marcel Mauss (1938), constatando-se o que ele chamou de sobrevivências disso, “ainda vivas e proliferantes”, segundo nos atesta a etnografia. MAUSS, Marcel. Une catégorie de l’esprit humain : la notion de personne celle de “moi”. Article originalement publié dans Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. LXVIII, 1938, Londres (Huxley Memorial Lecture, 1938). Disponível em: <http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html>.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

REVISTA VIDA BRASIL

A morte do homem moderno

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

É em vão que se busca o homem moderno. Ele morreu ao final do último século.De pagão na Antiguidade a obediente filho de Deus no Medievo, ele deu ouvidos um dia ao discurso de Descartes. Aos poucos, descobriu a razão, e assimilou um método que mudaria a face do mundo. Fez-se revolucionário ao depois, porque desconfiou do poder, desejou a liberdade e a igualdade.Modernizou-se, enfim. Mudou a face do mundo e a sua própria. A luz divina substituiu-se pela luz da razão e pela força da vontade.

A morte do homem moderno


O sobrenatural cedeu lugar ao natural. A natureza humana assumiu novo estatuto, inerente à ordem da vida, todavia, com plena consciência de ter consciência disso, capaz de abstrair e de valorar, capaz de dominar uma linguagem não apenas descritiva como ainda simbólica.
Por três séculos o homem construiu a modernidade.
Pouca coisa?
Não. Muita. Grande passo para uma humanidade que, por longo tempo, aceitou passivamente a tutela, se não de um deus, a de seus representantes divinos. A esse deus e seus representantes é que se deve o arcabouço de valores tradicionais que a razão, todavia, não desacreditou: antes os secularizou, esvaziando-os de sua antiga dimensão transcendente. Tais valores pretendiam representar uma ordem que se opunha ao caos, com a mesma polaridade com que o bem se oporia ao mal. Uma antítese, enfim. Porém sem a beleza daquela que o paganismo sacralizara com Apolo e Dionísio, divindades antes complementares que opostas. Velha antítese conservada em seu diapasão pragmático, que o medievo consagrou com acentuada polaridade, quando separou deus do diabo. Ordem contraposta à desordem, luz contraposta à escuridão. Eis que o bem e o mal viriam a protagonizar, por longo tempo, a divina comédia da existência. O poder temporal, visceralmente unido ao poder espiritual, é imposto em face dos homens como porta-voz do bem maior ao qual opor-se era anátema. O cristianismo, que herda do judaísmo seu fundamento teológico e arcabouço normativo, se sobrepõe ao paganismo. Não se negue, porém, o devido tributo a esse passado medieval que conferiu ao homem uma alma imortal e uma salvação individual: o ser é singular e as coletividades, por consequência, são aparentes e transitórias.
Refém de forças guerreiras, até então fantoche do destino, o homem moderno finalmente encontrou, na razão, ainda que tênue, o fio condutor que livremente escolheu para conduzir seu destino. Reaprendeu-se como homem. Redimensionou-se no mundo e na história, política e filosoficamente, ao longo de três séculos, descobrindo a si mesmo e à realidade, esfinge à qual ele interroga em lugar de a ela conformar-se.  Individualista, sim; todavia, à medida que se desprende de velhas pertinências comunitárias, o homem moderno é também massa, quando se espelha e se identifica com os grandes movimentos que vão emergir na história. Em pleno século XIX, ele substitui a fé em deus pela fé na ciência, ― geral e totalizadora também ela ―, e toma a racionalidade como guia superior, único capaz de lhe fornecer um modelo de mundo, cuja rigidez, pressuposta por convicção moral, desconfia da diversidade, elemento visto como ameaçador ao ideal de unidade histórica: um passado que explicasse o presente e preparasse o futuro. Nesse contexto, as singularidades individuais arriscam contaminar corpus fechados de ideias, o que explicaria a tendência a um pensamento único que só se acentuará ao longo do tempo.
A modernidade racional não era, enfim, sem paradoxos. E de tanto duvidar daquilo que os sentidos lhe entregavam, o homem moderno, talvez por força do próprio método que tanto lhe rendera em termos de ordem e de progresso, começou a duvidar da razão. Como resultado disso, a verdade, enfim, sucumbiu, descoberta não em sua nudez, mas em sua absoluta superficialidade. Porque se o homem moderno pretendeu a verdade, o homem pós-moderno prescinde dela.  A verdade banaliza-se: cada um tem a sua, e nenhuma prevalece sobre a outra. Isso não é sem consequência, porque tal sorte de ruptura se estende à história. Passado, presente e futuro coexistem no aqui e agora, eternamente.

Para onde foi o homem moderno que se movia pelo mundo impulsionado pela vontade dirigida pela razão? Que punha sua fé no progresso, que ora a técnica, ora a ciência lhe trariam, graças a Deus. Cada vez menos visível, ele talvez ainda se esforce para protagonizar, ao menos, aqui e ali, os valores tradicionais dos quais se acredita herdeiro. Pouco a pouco, o dono de si sucumbe aos mecanismos de dominação, que falseiam a liberdade substituindo-a por um ideal meramente formal. Neste processo, entre a coletivização comunista e a capitalização dos desejos que cria cada vez mais e maiores necessidades, direitos são proclamados à revelia da possibilidade de seu pleno exercício. Cada vez mais as gerações se deparam com mundos profundamente diferentes daqueles que habitaram seus pais. O passado é desqualificado na medida em que a existência se acelera, de sorte que a felicidade se aproxima cada vez mais da angústia, ambas despontando, porém, espetacularmente. Porque efêmero, virtualmente efêmero, é o caráter de tudo quanto hoje nos cerca.
Decepcionado pelas ideologias mobilizadoras, liberais, sociais ou nacionais que trouxeram guerras e massacres com vistas a um universalismo utópico, homem moderno assistiu a modernidade esvaziar-se de sentidos, mesmo daqueles que só a linguagem pode conferir ao mundo, por vezes tão ricamente, aliás. É que mesmo a linguagem mais nobre foi assimilada àquela dos anúncios publicitários. Mediocrizou-se. Homens e produtos disputam o mercado, cada vez mais violentamente, obedientes ao coro formado pelas vozes de multidões anônimas, ora pacíficas, ora hostis, ao sabor de suas inclinações momentâneas.
Até que a vontade do homem se tornasse a vontade do nada.


Nihil, o nada que dissolve a subjetividade, núcleo do indivíduo que agora se descobre, contudo, múltiplo, projetado nas facetas multiplicadoras das redes. No nada imagético, espelho narcísico, apaixona-se por um eu que não é senão eco de frases feitas. Descobre-se prosélito de uma religião cujo corpo doutrinal foi substituído por slogans. Ele discursa, ele grita, ele vocifera ora Paz, ora Justiça, podendo escolher, ― #malmequer, #bem-me-quer ― a cada manhã, uma nova causa pela qual lutar no evento que terá lugar logo mais. As regras devem ceder diante das exceções. O denuncismo substituiu-se à capacidade crítica. Nada mais se debate, e os espíritos empobrecem. A liberdade de escolha resta profundamente comprometida. É no nada que este homem pós-moderno deposita sua liberdade. Pensa-se múltiplo, quando não está senão dividido, dissolvido na massa, nos movimentos, morto em sua subjetividade à qual renúncia, hipnotizado por paradigmas estéticos e culturais fragmentados, onde é possível acreditar um pseudo passado e pseudo futuro, velho sonho das bruxas que o medievo estigmatizara no caos que se opunha à Ordem Divina.
Releio-me. Constato não sem surpresa o quanto minha própria percepção das coisas precisa fragmentar-se, ela também, para melhor descrever o que percebo à minha volta. E ocorre-me o quanto de nostalgia encontro em minhas palavras, fruto contagioso talvez dos sonhos vislumbrados no olhar de alguns dos que me cercam. Desejaríamos ressuscitar o homem moderno, cuja carne já se desprende dos ossos? Mac Benac! Para tanto seria preciso recriar ou despertar alguém ingenuamente capaz de acreditar em verdades universais. Fugindo às decepções e aos desenganos, ele escolhe sonhar com um destino inspirado em ideais da fé, espelho divino da Lei e da Ordem. Seus sentidosdespertam, ao som mágico da flauta que o encanta. O futuro, do fundo do abismo, lhe sorri aqui e agora, reflexo insólito da ilusão que encarna a Esperança, brilhando escondida entre todos os males do mundo.


Autor: Maristela Bleggi Tomasini

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Hora de Despertar

Já não é hora de despertar alguns livros que dormem por aí nas estantes? Com exceção das minhas onde estão bem despertos. 
É que reina silêncio sobre muitos autores que só são examinados em função do descrédito no qual caíram, efeito fatal de que dificilmente escapa qualquer pensamento colocado por escrito.
Porque em lugar de se pensarem tantas novas teorias, talvez o exame de velhas propostas, não obstante o bolor que contenham, nos esclareça mais acerca de nosso presente do que eventualmente retratem ou expliquem o passado ao qual supostamente pertencem. Em que pese objetiva, toda datação é uma artificialidade. A medida do tempo importa apenas aos homens e, no campo dos saberes históricos, a subjetividade prevalece.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Como surgiu a expressão "Psicologia Coletiva"?


             Dentre os que procuraram estudar a psicologia coletiva, parti de quem a teria nomeado e definido como elo entre a psicologia, voltada ao estudo do indivíduo, e a sociologia, voltada ao estudo da sociedade. Trata-se de Enrico Ferri (1856-1929). Detalhe: a nomeação e a definição de psicologia coletiva constam da segunda edição de uma obra voltada ao Direito, e ao Direito Penal, mais especificamente ainda ao processo penal: I nuovi orizzonti del Diritto e della Procedura penale (Nicola Zanichelli, 1884). Só posteriormente, em nova edição publicada na França, esta mesma obra aparece com o título: La Sociologie Criminelle (1914).
            A nota da edição francesa destaca que as atividades manifestadas por um grupo de homens não se confundem com as atividades manifestadas por uma sociedade inteira. Isso sugeria, para Ferri, que poderia haver um elo entre a psicologia e a sociologia, elo que ele batiza como psicologia coletiva, voltada ao estudo de grupos de indivíduos que podem se apresentar reunidos em caráter acidental ou permanente. O campo de observação da psicologia coletiva, para Ferri, estaria voltado àquelas reuniões de caráter mais ou menos adventício, que ele mesmo exemplifica, citando vias públicas, marchas, bolsas, oficinas, teatros, comícios, assembleias, colégios, escolas, casernas, prisões, etc.
     Este batismo da psicologia coletiva é reivindicado pelo próprio Ferri em correspondência que manteve com Scípio Sighele (1868-1913), correspondência esta publicada na França, em 1901, na obra, tornada clássica, intitulada La foule criminelle. Essai de psychologie collective. Possível também a conferência in loco desta reivindicação: "A psicologia coletiva, – como eu a batizei desde a 2ª edição de Nuovi orizzonti, – recebeu uma organização muito vigorosa pelos estudos geniais, e com justiça louvados, de meu muito querido amigo Sighele" (SIGUELE, 1901, p. 177).
Portanto, seguindo estas pistas deixadas por quem reivindica ter sido o primeiro a nomear esse “elo”, temos que Ferri não a chamou de ciência, talvez porque ainda não tivesse suas leis adequadamente identificadas e estabelecidas. Emprego esse mesmo termo leis, porque era uma expressão comum utilizada pelos praticantes das ciências que exibiam então, no XIX, seu caráter experimental em oposição ao metafísico do qual era preciso afastar-se nesses tempos de fin de siècle.
 
  A propósito desse quem é quem da psicologia coletiva, destaco a importância de dois autores italianos, Ferri e Sighele, e não há como deixar de citar também um autor francês que não mereceu, da parte de Sighele, a mesma menção gratidão que este último debitou a Gabriel Tarde (1843-1904) e a Victor Cherbuliez (1829-1899). É que no prefácio de La foule criminelle. Essai de psychologie collective, tais autores foram identificados como aqueles que “longa e lealmente” teriam discutido a teoria de Sighele. Gustave Le Bon é citado e Sighele reconhece sua importância, não obstante deixe claro tratar-se de um autor que teria feito uso de suas observações sem citá-lo, todavia. E diz mais: que não havia ironia nesse agradecimento, porque a adoção de suas ideias sem qualquer menção a sua pessoa seria “o gênero de elogio menos suspeito que nos pode ser endereçado”.
De qualquer sorte, os trabalhos de Gustave Le Bon (1841-1831), mormente sobre a psicologia das multidões, tiveram grande repercussão, talvez porque sua linguagem bem como a clareza com que posicionava do ponto de vista social e político permitisse ampla popularização de suas ideias. Na mesma esteira, embora mais tarde e fora do eixo Itália e França, Ortega y Gasset (1883-1955) com sua La rebelión de lãs masas (1930) pode e deve ser lembrado, especialmente pelo fato de contribuir para a popularização dessas ideais, na linha da temibilidade das multidões e das massas, conceito que adquiria cada vez mais consistência.


domingo, 21 de outubro de 2018

Novas perspectivas

Abordar campos do saber inovadores que, por sua própria natureza, possuem efeito deletério sobre muitos ícones culturais tidos por imutáveis, permanentes, mesmo eternos, não é sem certa inquietação. Acostumados à zona de conforto propiciada pela estabilidade que conferimos às coisas, pensar o mundo a partir do que ele apresenta de essencial em sua concretude requer, sim, uma disposição especial de espírito. Além disso, as ditas fronteiras mantidas entre as disciplinas acabam por gerar apropriações de termos que terminam por não significar mais nada além de meras palavras ou expressões. Presos a uma codificação rígida, congelam, e esta mesma rigidez termina por inviabilizar o pensamento, sobretudo, o pensamento criativo, que reclama liberdade e flexibilidade.
O terreno artístico é fecundo e comporta ousadias.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Como assim, humanidade?

O estatuto biológico é insuficiente para conferir humanidade. Tampouco a Criação, a condição de obra que porventura refletisse imagem e semelhança de um Criador. Nosso tempo é aquele que condiciona nossa humanidade a um aval político, porque ela é mera concessão, um favor que nos é conferido ou negado pelo Estado.

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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

O espírito da lei

"O que pode valer o elemento histórico diante da clareza do texto legal? Responda a este argumento o maior dos jurisconsultos deste século, depois de Merlin, o célebre professor da Universidade de Gand, o sábio belga Frederico Laurent: 'Quando o texto da lei é claro, quando o legislador exprime bem lucidamente seu pensamento, procurar dar outra interpretação ao que está escrito na lei é substituir a vontade do legislador pela vontade do intérprete. Dizem que é preciso compreender o espírito da lei. Mas este espírito, isto é, a expressão autêntica da vontade do legislador, está perfeitamente indicado na clareza do texto'."

CASTRO, Viveiros de. Questões de Direito Penal. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, Livreiro - Editor, 1900, p. 356.

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sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Reflita-se

A chamada "moralidade" se formaria "naturalmente"? Estaria ela sujeita à mesma naturalização que se pode atribuir à formação de nossa individualidade, produto histórico do ambiente no qual o homem se socializa?  A saber se haveria, em qualquer distante
horizonte, uma idealidade ética em cada consciência individual, não obstante a diversidade dos ambientes que originam, por certo, tantas variedades individuais.
É que a ética preocupa.
Sobretudo no momento atual, quando sua relativização se tornou absolutamente indisfarçável.

domingo, 9 de setembro de 2018

Tobias

"Se o direito [...] faz parte da ciência do homem, não lhe é de certo indiferente saber de antemão o que seja esse mesmo homem e qual a sua posição na natureza."

Tobias Barreto
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BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Salvador: Editora Aguiar & Souza Ltda, 1951, p. 122.

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Porto Alegre

domingo, 26 de agosto de 2018

Nossa humanidade


Separar problemas de ordem moral de problemas de ordem científica ou técnica é quase um requisito, o mais básico talvez, para o exercício da arte de pensar. O problema da igualdade dos homens, este, sobretudo, talvez seja o que mais atenção demanda. Se o Direito, em sua longa trajetória, já superou a questão igualitária ao menos no campo teórico, e se busca cada vez mais afirmá-la em sua prática, na medida em que realiza os seus ideias, a ciência, por sua vez, no decorrer de sua história, coloca-se diante de uma realidade de não pouca complexidade, porque nela a igualdade entre os homens não resulta de um decreto ou de uma convenção. O caráter empírico das ciências põe cobro a muitas expectativas, dentre as quais a de um belo supostamente intrínseco à natureza. A Psicologia, cujo objeto não refoge ao estudo do indivíduo, procura saber, não estimar. Daí tratarem-se de campos distintos de onde os sentimentos, embora sempre inspiradores, devem ser abstraídos. Assim os homens, eles mesmos como parte da natureza que integram, puderam ser tomados como objeto de uma ciência empírica. Essa apropriação, que o século XIX praticou abertamente e sob o aval da cientificidade, não foi sem consequência. Dividido entre corpo e alma, o homem foi e permanece sendo disputado, ora como filho de deus, ora como mero produto natural. Esse mesmo homem, social e individual, ― porque ser humano é ostentar simultaneamente essas duas condições ―, é ora indivíduo, ora coletividade; ora é portador de uma consciência individual, ora coletiva.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Raymundo Nina Rodrigues


Rio de Janeiro, onze horas da manhã do dia 19 de janeiro de 1888, na presença da Guarda de Honra do 1º Batalhão de Infantaria, teve lugar a cerimônia de colação de grau dos doutores em medicina que concluíram o curso em 1887. O público era seleto. Estavam presentes a Princesa Regente e seu esposo, como também o Ministro da Justiça, o Ministro da Fazenda e o da Marinha. O paraninfo dos novos doutores foi o Doutor Candido Barata Ribeiro. O Barão de Cotegipe, então Ministro do Império, foi quem conferiu o grau aos formandos. Vinham estes das mais diferentes regiões do Brasil. Naquela manhã, porém, dentre os três egressos do Maranhão, estava Raymundo Nina Rodrigues[1]. No Rio de Janeiro, todavia, ele apenas completou o curso de medicina, no qual fora aprovado em 1882[2] na Bahia.
Corriam tempos de profundas mudanças no campo político e no social. Basta citar, para tanto, a assinatura da Lei Áurea em maio daquele mesmo ano e, no seguinte, o advento da República. Já era palpável o ocaso do Império. Nina, com 26 anos, cumpriria, porém, um destino que comporta bem o adjetivo de histórico. Porque ele viria a se destacar como figura proeminente no cenário científico do Brasil e da Europa, sobressaindo-se não apenas como médico, mas ainda como antropólogo, etnólogo, higienista, epidemiologista, professor, como fundador mesmo de uma renomada escola científica, segundo Artur Ramos (2006, p. 9)[3], chamada Escola Baiana. Aliás, dias antes, a Gazeta do Notícias do Rio de Janeiro[4] já registrava sua aprovação com distinção em clínica médica e plena na cirúrgica. Pouco mais de um ano depois de formado, veremos Nina nomeado como adjunto da 2ª cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Bahia[5].



[1] A ÉPOCA, Rio de Janeiro, 20/01/1888, nº 17, ano II.
[2] GAZETA DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, 1º/12/1882.
[3] RAMOS, Artur. Prefácio. In: RODRIGUES, Nina. As coletividades anormais. Brasília: Senado Federal, 2006.
[4] GAZETA DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, 16.12.1887, nº avulso, ano XIII.
[5] GAZETA DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, 07/09/1889, nº avulso, ano XV.

Imagem: Nina Rodrigues. Fonte: Creative Commons.


Projeto de Pesquisa - A Psicologia Coletiva como resposta ao problema da criminalidade das multidões: uma perspectiva histórica


“Considerando isoladamente, os individuos são calmos e inoffensivos, agglomerados, a menor fagulha os inflamma e os arrasta aos actos mais sinistros” ― disse Evaristo de Moraes (1904, p. 185), em artigo intitulado “As multidões criminaes” e publicado em “Os Annaes”, semanário voltado à literatura, arte, ciência e indústria. A frase, que encerra o artigo, é dramática.  Ela reflete uma preocupação da época, além de consistir em exemplo de popularização de um pensamento científico que a imprensa, por sua vez, não se furtava de promover, posicionando-se, inclusive. Era a Psicologia Coletiva que surgia sob esta denominação que toma ao final do século XIX. Não obstante inerente a saberes psicológicos, a Psicologia Coletiva foi suscitada no mundo a partir de uma perspectiva jurídica e tendo em vista responder a questões inquietantes, também do ponto de vista do Direito Penal. Porque era preciso encontrar meios de punir um tipo de criminalidade que se incrementava a partir da segunda metade do século XIX. Eram os crimes cometidos pelas multidões, crimes cuja autoria não era facilmente identificada ou mesmo identificável muitas vezes[1]. Crimes considerados terríveis, não raro brutais, a desafiar o mecanismo penal, que quedava inerte, paralisado, impotente para agir, uma vez que o Estado Juiz só poderia imputar pena a crimes cuja autoria fosse certa, conhecida, identificada em ação — ou ações, fosse o caso — individual e voluntária, voltada à produção de um resultado-crime, em regra, doloso, ou seja, livremente desejado. Isso exigia fossem desvendados os mecanismos ensejadores do aparecimento desse fenômeno social, que reclamava uma psicologia que lhe fosse específica, uma psicologia das multidões que o jurista italiano Enrico Ferri chamou de Psicologia Coletiva.



[1] Bem a propósito, Gabriel Tarde (1895, p.1): “Até os nossos dias, ao longo de toda a duração dessa crise de individualismo que, desde o último século, tem causado estragos em toda parte, em política e em economia política, como em moral e em direito, mesmo em religião, o delito passava por ser aquilo que havia de mais essencialmente individual no mundo; e, entre os criminalistas, a noção do delito indiviso, por assim dizer, perdera-se, como também, entre os próprios teólogos, a ideia do pecado coletivo, senão absolutamente aquela do pecado hereditário. Quando os atentados de conspiradores, quando as façanhas de uma súcia de bandidos forçaram a reconhecer a existência de crimes cometidos coletivamente, apressou-se em transformar esta nebulosa criminal em delitos individuais distintos, dos quais essa nebulosa era apenas a soma. Mas, no presente, a reação sociológica ou socialista contra essa grande ilusão egocêntrica deve, naturalmente, dirigir a atenção para o lado social das ações que o indivíduo se atribui erroneamente”. 

Imagem: Enrico Ferri. Fonte: Creative Commons.