domingo, 29 de dezembro de 2024

O Experimento de Stanford: Até que ponto cedemos ao mal?

Você já ouviu falar do famoso Experimento de Stanford? Ele é um marco na psicologia e nos ajuda a entender até que ponto somos capazes de ceder ao mal, mesmo sem querer.

O experimento foi idealizado por Philip Zimbardo, um psicólogo norte-americano estudioso do comportamento humano, especialmente em situações extremas. Consta que Zimbardo teria se inspirado em Gustave Le Bon e suas ideias acerca da desindividualização e consequente perda da identidade pessoal. Assim, em 1971, ele transformou o porão da Universidade de Stanford em uma prisão simulada para investigar como pessoas comuns reagiriam ao assumir papéis de prisioneiros e guardas, que terminaram por internalizar tais papeis.

Os participantes, homens jovens e aparentemente saudáveis, foram selecionados meio de testes psicológicos. Metade foi aleatoriamente designada como "guardas" e a outra metade como "prisioneiros". Os objetivos? Examinar como o ambiente influencia comportamentos e entender até que ponto as pessoas podem se tornar cruéis ou submissas.

O problema? As coisas saíram completamente do controle. Os "guardas" rapidamente adotaram comportamentos abusivos, enquanto os "prisioneiros" mostraram sinais de sofrimento extremo, incluindo crises emocionais. A situação ficou tão tensa que experimento foi interrompido depois de apenas seis dias.

O experimento, ainda assim, levou a muitas reflexões e ainda inspirou um dos mais conhecidos livros de Zimbardo, O Efeito Lúcifer, no prólogo do qual ele faz as seguintes observações:

Se eu tivesse escrito este livro logo após terminar o experimento da prisão de Stanford, teria me contentado em explicar que as forças situacionais têm mais poder do que pensamos para moldar nosso comportamento em muitos contextos. No entanto, teria deixado de lado o poder ainda maior de criar o mal a partir do bem: o poder do Sistema, esse complexo de forças poderosas que criam a Situação. A psicologia social oferece inúmeras evidências de que o poder da situação pode ser mais forte do que o poder da pessoa em determinados contextos. Exporei essas evidências em vários capítulos. No entanto, muito poucos psicólogos se interessaram pelas fontes mais profundas de poder inerentes à matriz política, econômica, religiosa, histórica e cultural que define as situações e lhes confere uma entidade legítima ou ilegítima. A compreensão plena da dinâmica do comportamento humano nos exige reconhecer a extensão e os limites do poder pessoal, do poder situacional e do poder sistêmico. Modificar ou impedir um comportamento censurável por parte de pessoas ou grupos exige uma compreensão das forças, virtudes e vulnerabilidades que essas pessoas ou grupos trazem para uma situação dada. Em seguida, devemos reconhecer plenamente o conjunto de forças situacionais que atuam nesse contexto comportamental.

O que aprendemos com isso?

A desindividualização diminui a responsabilidade pessoal, a uma visão reduzida das consequências de nossos atos. Ela enfraquece a culpa, a vergonha e o medo que inibem comportamentos reprováveis e mesmo destrutivos, especialmente porque ações próprias são percebidas como do grupo. O ambiente e os papéis sociais têm um poder enorme sobre o comportamento humano, às vezes nos levando a atitudes que jamais imaginaríamos adotar. Às vezes, o contexto pode mudar tudo. O experimento repercutiu muito e até hoje é objeto de discussões e de questionamentos.  Não faltaram críticas acerca da falta de controle ético do estudo e de seu impacto psicológico nos participantes. Contudo, não se pode deixar de refletir sobre a pertinência desse estudo, bem como das observações de Zimbardo sobre o poder das forças movidas pelo Sistema, que criam e moldam as forças situacionais.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Giulio Cesare Lucilio Vanini

Chamava-se Giulio Cesare Lucilio Vanini. Dele disseram que foi um homem de boa aparência, um pouco magro, alto, com cabelos desgrenhados, nariz comprido e curvo, olhos brilhantes e ligeiramente acinzentados. Condenado pela Santa Inquisição, foi entregue nas mãos do executor, que o expôs em frente à porta principal da igreja metropolitana de Saint-Estienne. Vestia uma camisa. Sobre o peito, o colarinho e, sobre os ombros, um cartaz contendo estas palavras: “Ateu e blasfemador do nome de Deus”. De joelhos, cabeça e pés descalços, segurando nas mãos uma tocha acesa, ele deveria pedir perdão a Deus, ao rei e à justiça. Em vez disso, no entanto, diz-se que teria proferido uma terrível blasfêmia: “Illi [Cristo] in extremis præ timore imbellis sudor, ego imperterritus morior.” Então, preso a uma estaca, depois de ter a língua cortada, foi estrangulado, tendo seu corpo queimado em uma fogueira e suas cinzas lançadas ao vento[1].

O ano é 1619, a cidade é Toulouse, França. A cena impressiona e o sujeito, não menos. Vale o tempo investido em um estudo, não obstante a complexidade das fontes primárias implicadas na pesquisa. O julgamento de Vanini, quando examinado do ponto de vista das narrativas que o transpuseram ao patamar da história, revela-nos a dinâmica do poder, a construção de inimigos internos e a manutenção da ordem social através da exclusão e punição de indivíduos considerados desviantes. O mundo mudou, a história concluiu seus julgamentos, mas seriam vãos quaisquer esforços em pretender uma hegemonia. O passado em si não existe mais. Ele comporta apenas versões construídas a partir da experiência de sujeitos que não têm como nos alcançar uma realidade objetiva, porquanto sua experiência do mundo sempre estará sujeita à influência de elementos do imaginário e do simbólico, quando não dos interesses implicados. É preciso, acima de tudo, buscar entender o cenário em que se deram os fatos que desejamos estudar, não nos esquecendo de que fontes jamais são neutras.


[1] Cousin, V. (1856). Vanini ou la philosophie avant Descartes. Didier.