segunda-feira, 26 de maio de 2025

Nietzsche segundo Jaspers

Ao interpretar Nietzsche, Karl Jaspers destaca: Nietzsche pensa a partir dos perigos. Nada de respostas reconfortantes ou sistemas ordenados. Trata-se daquilo que ameaça: a falta de substância do mundo contemporâneo. Ordem? Não. Apenas a crença de que tudo está em seu devido lugar só porque há objetivos estabelecidos. Para Nietzsche, isso é uma ilusão. O que temos? Temos a incerteza que não aponta para nenhum novo caminho, mas que nos mostra o esvaziamento dos antigos. As visões de futuro são imagens de um mundo sem substância. E Nietzsche ― como observa Jaspers ― não se apoia em nenhuma delas.

E o futuro? Qual o vir a ser do homem? Jaspers resume essa perspectiva em dois pontos.

Em primeiro lugar, o curso das coisas não pode ser deixado à própria sorte. É necessária uma humanidade que se mostre capaz de pensar o todo das possibilidades humanas. Uma nova espécie de filósofos e líderes que não apenas governam, mas que estejam aptos a compreender e assumir o destino humano em sua totalidade. Em segundo lugar, tais senhores — surgidos num mundo ateu — devem decidir com a mesma profundidade que outrora era outorgada pela fé. Todavia, agora, sem Deus. Isso coloca uma nova forma de relação com o povo. Em vez de uma dominação niveladora da massa democrática, mas aliança entre os que obedecem e os que comandam. A massa, sem fé, clama por força e esses novos senhores devem ocupar o lugar simbólico de Deus, inspirando uma confiança incondicional.

Mas... quem são esses senhores? Segundo Jaspers, Nietzsche não os imagina apoiados em verdades abstratas ou grandezas sobre-humanas. Eles devem ser homens do povo, capazes de inspirar confiança em um mundo sem transcendência. O destino da humanidade, então, não depende apenas deles, mas da relação viva entre esses senhores e aqueles que podem superar o perigo de tornar-se massa: acrítica, passiva, não raramente medíocre.

Em meio a esse ateísmo anunciado, Deus até se faz presente, mas como retórica. Se o Seu selo legitima processos, nem por isso legitima a moral. Não que Ele tenha morrido, como Nietzsche profetizou, mas, certamente, foi absorvido, amalgamado pela secularização, pelos algoritmos que moldam nossa percepção da realidade, pela cultura de massa. Esta última, mais do que uma identidade numérica, é um modo de ser que apaga o próprio pensar, permutando-o pela adesão: fácil, automática, grupal. E se essa massa não se desloca mais como grandes fileiras em marcha, ela se mobiliza por meio das adesões. As resistências existem, mas são poucas. Ecoa nas vozes singulares, nas comunidades pensantes, no contínuo exercício que busca a lucidez.

Mas, até que ponto essas previsões de Nietzsche nos dizem respeito hoje? Vivemos num mundo ateu ou num mundo onde Deus foi reconfigurado ao gosto do consumo? Quem são os senhores da terra agora? E que tipo de confiança inspiram? Teríamos nós, enquanto povo, superado o perigo de tornar-nos massa?

Órfãos das grandes narrativas e mitos tradicionais que serviam de norte social, político e espiritual, vivemos alheios a toda transcendência. Verdades tão plurais são tantas quantas são os valores. Tal cenário coincide com a falta de substância que caracterizaria a contemporaneidade e com a necessidade de novos senhores que pudessem assumir o destino da humanidade, nela inspirando a mesma confiança profunda que os velhos mitos e dogmas mereceram um dia.

Não é difícil perceber que esses novos senhores da terra não têm alma. São líderes políticos, grandes empresários, influenciadores digitais, tecnocratas, celebridades. Contudo, a confiança — substituto da fé — que tais senhores inspiram é carregada de ambiguidade. Ao seu poder, falta transparência, visto a polarização do cenário no qual atuam, atravessado por movimentos socias, políticos, culturais, todos em busca de engajamentos.

O perigo de nos tornarmos massa é iminente. Conformar-se, renunciar à própria individualidade são posturas que aliviam a carga de responsabilidade implicada na assunção pessoal. Porque pode ser confortável submergir na corrente do consumo, da desinformação. Superar esse perigo exigiria — como Jaspers sugere — uma relação viva entre líderes e povo, onde ambos se desafiem a transcender a mediocridade. Estamos longe disso, mas o potencial para tal transformação persiste.

Fonte: Jaspers, K. (1950). Nietzsche: Introduction à sa philosophie (H. Niel, Trans.; préface de J. Wahl). Gallimard. (Édition originale dans la collection "Classiques de la Philosophie") p. 234-6.

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