domingo, 11 de maio de 2014

Revista Vida Brasil

Dona Maria

terça-feira, 13 de junho de 2017

Faz tempo que não escrevo sobre coisas minhas. Escrevo muito, é verdade, mas quase sempre sobre assuntos que me tangenciam apenas, sem grandes reflexos interiores. Esse processo ― que costuma travestir-se de objetividade ― obriga-me a certo distanciamento do objeto, esta fórmula que vicia o olhar, de sorte que, passado algum tempo, somem-se as minhas crônicas, os meus contos, os meus dizeres que vêm de dentro. Não há tempo nem espaço para contemplar histórias, pensar o mundo pelo mundo. Parece que só se escreve quando não se tem nada a dizer, um nada cheio de tudo, porém, que parece certo, exato, que se refira a coisas que se deixem medir e pesar. Não há tempo a perder tentando ver o outro. 

Dona Maria



Nessa fase, os outros se tornam cada vez mais outros, afastados do eu, afastados de mim.
Dona Maria, nesse sentido, sempre foi outra.  Proximidade dela, apenas como resultado da condição de trabalho, que me levava a vê-la com frequência.  E para dizer a verdade, eu sempre evitava esses encontros, pela insistência com que ela procurava transformar o mais simples cumprimento formal de bom dia ou de boa tarde num interminável monólogo.  
Uma palavra, e Dona Maria trocava em miúdos, detalhadamente, um sem fim de doenças e sofrimentos, numa verborragia aguda que não havia como interromper, a não ser com a chegada de mais alguém que a fizesse desviar de mim e recomeçar tudo outra vez em relação ao novo alvo.  No entanto, naqueles dias em que minha paciência me permitia ouvi-la sem simular algo urgente, caso eu a deixasse levar a termo seu itinerário patológico, o segundo assunto que ela introduzia era, infalivelmente, a vida íntima dos freqüentadores do prédio que ela, melhor que qualquer detetive, conseguia descobrir, fosse observando, fosse especulando, fosse extorquindo informações do modo mais inusitado, que não excluía interrogar entregadores. Metralhava as informações enquanto eu, simulando a maior pressa, dava jeito de sair de perto, até por medo de ouvir conversas que sempre tinham algo de muito comprometedor relativamente a pessoas que eu às vezes sequer conhecia.
Por tudo isso, Dona Maria jamais teria passado de outra pessoa. Esse outro,qualquer outro, é sem identidade com a gente. Não o toleramos para além das relações formais, não o admitimos em nossa interioridade, aonde ele só adentra como corpo estranho, irritante, como alguma coisa a expelir, a expurgar. Com o tempo, desenvolvemos uma série de técnicas que nos permitem manter o isolamento. Construímos uma parede, enfim, definimos o outro como tal, como alguém que nada tem a ver com nossa vida, com nossas coisas, com nossa maneira de ser e que, além de não ter, nunca terá. Dona Maria era outra e fim. Uma indesejável a quem eu tolerava por mera polidez e pela força das circunstâncias.
Até que um dia desses, não podendo fugir à constrangedora posição de ouvinte daquele conhecido monólogo, decidi-me a observá-la. Enquanto falava, prestei atenção no porte atarracado, forte. Com menos de um metro e sessenta, sem ser gorda, era roliça. A roupa, invariavelmente saia e blusa, não deixava ver a forma de pernas e braços, mas apenas pés e mãos fortes, unhas limpas, cortadas rentes que finalizavam dedos grossos, afeitos ao serviço pesado que ela ― a par das dores e sofrimentos que proclamava aos quatro ventos ― realizava com vigor. Cabelos fartos e muito grisalhos eram cortados curtos, penteados para trás, emoldurando feições comuns. O rosto de pele branca, sem muitas rugas, não denunciava as mais de sete décadas vividas. Ela continuava a falar, e eu deixei-me observá-la, ao mesmo tempo em que pensava o que teria feito dela essa criatura de uma eloquência tão impertinente quanto inconveniente.

Ocorreu-me então que nada ali revelava o gênero, embora fosse uma mulher. Sabia dela que morava sozinha. Nunca fora vista com homem algum, tampouco mulheres, pois não era dada às tais “modernidades”.  Nem um brinco, colar, pulseira. Nem a sombra de um batom ou o ar de um perfume, a não ser o cheiro do pinho que usava nas faxinas. Jamais a flagrei usando uma peça de roupa mais ousada, um decote, um brilho sobre as unhas ou sobre os lábios finos, que só se abriam à monotonia do incansável discurso de todos os dias. Moldava-se pelas doenças e pela curiosidade voltada à vida alheia. O que a teria levado a tornar-se a pessoa que era? Lutei contra a curiosidade que me espicaçou, mas perdi a batalha. Sem sentir, olhei bem firme para Dona Maria e arrisquei uma pergunta direta:
― Você tem namorado?
A princípio ela pareceu assustada com a pergunta. Olhou-me então. Suas feições pareceram humanizar-se. Teve uma reação, confesso, contrária à que eu esperava. Pensei que fosse se ofender com a pergunta, dando-me talvez ocasião de revidar. Mas não. Ela mudou o tom de voz, a postura do corpo, pareceu relaxar e, e em outro tom de narrativa respondeu-me esboçando um tímido sorriso:
― Não quero mais saber de homem. Mas já tive um. Foi um só, mas serviu de lição. Eu era louca por ele. Ainda sou, mas nunca mais quero saber dele, nem de outros homens. Aquele eu quis. Dava tudo para ele, fazia qualquer coisa, matava-me de trabalhar em dois empregos, fazia faxinas, mas ele tinha do bom e do melhor. Camisas caras, perfumes e comida. Era bonito, elegante.
Interrompeu-se, e seu rosto entristeceu. Continuou:
― Eu sempre fui feia, mas sabia gostar dele. Ele abusou do meu amor. Me usou e me traiu. As coisas que eu lhe dava ele dava pra outra. Descobri tudo. Fui a última a saber. Deixei dele para sempre.
Silenciou. Eu, pega de surpresa, não soube o que dizer. A pergunta que eu fizera com intenções de certa forma até mesquinhas acabou por abrir uma comporta naquela outra pessoa que se humanizava diante de mim, que me surpreendia com a sinceridade arrasadora de quem ostenta uma chaga. Dona Maria mostrou-me uma ferida. Não que seus olhos se enchessem de lágrimas, nem que sua voz tremesse alguma vez. Nada disso. Sem dramas. Simplesmente o tom seco da voz, sem modulações, a constatação pura e simples da traição, do abandono.  Era corajosa. Assumia a posição de mulher desprezada.

De opaca, aquela criatura se fez visível aos meus olhos. Percebi a sua dor e respeitei-a. A decepção e a amargura desde então é que se puseram a esculpir aquela mulher mecânica, pensei, ocupada em sobreviver simplesmente. Trabalhava e conversava com todos, mas sempre sobre aquelas mesmas coisas. Pensei então que, ao falar de suas dores, de seu reumatismo, de sua ciática, de seu ombro doloroso, de seus rins e de tudo o mais que lhe doía tanto, na verdade, era de outras dores que falava. Doença inventada também é doença. E as coisas terríveis que ela dizia saber de todos nós, os outros, por certo eram também obscuras verdades que ela procurava desesperadamente descobrir, especulando se, afinal, éramos nós, os outros, também capazes de, como ela, sofrermos com tamanhas e tão severas dores.
Pedi que me contasse a sua história. Banal talvez. Todas as histórias de amor que não são a nossa história são banais, afinal, o que não faz delas menos histórias, ou do amor, menos amor. Dona Maria tão logo conheceu “seu bem” apaixonou-se pelo que julgou ser sua beleza e exuberância. Jovem, bonito, cheio de alegria de viver e também muito esperto, ele não demorou a perceber que podia lucrar com aquela paixão, fruto de um encanto que soube explorar. Deixou-se amar por ela. Um amor que ele retribuía com pequenas atenções sempre condicionadas a dias e horas marcadas.

Como todo hábil estelionatário afetivo, valorizava o produto, vendia-se caro e tinha sempre pouco tempo para ela. Mil desculpas eram articuladas: o preço da passagem, o cansaço, os dias ora frios, ora quentes, a necessidade de conforto, etc. A tudo ela provia, ou procurava prover. O quartinho onde morava ― e onde o recebia ― foi guarnecido de uma estufa, um ventilador de teto. Os carnês aumentavam. Ele gostava de comer bem, adorava cerveja gelada. Um pequeno refrigerador comprado a prestação resolveu o problema. A cerveja, os salgadinhos, os doces, os quitutes. Roupa de cama nova. Toalhas novas. Exigente, ele queria tudo muito limpo, embora o lugar ― área reservava à zeladoria ― dispusesse apenas do banheiro coletivo do prédio.
Ele pediu uma TV. Se ele tivesse uma TV podia ficar aos domingos e ver o futebol. Com cerveja, é claro. Pastéis que ela tinha de fritar na hora, na base do improviso, utilizando um botijão de gás pequeno acoplado a um fogão de duas bocas. Não havia o que não fizesse para vê-lo contente. Disse-me que gostava de provocar-lhe sorrisos, o que acontecia sempre que um dos dispendiosos caprichos dele era satisfeito. Mostrava-se então muito generoso para com ela. Abraçava-a, beijava-a, conversava sobre a qualidade do presente recebido. Pedia-lhe roupas caras, que ela sempre dava um jeito de comprar. Quando perguntei se não gastava com ela, disse-me que era feia, que roupas não adiantavam. Gastava com ele todo o dinheiro que conseguia ganhar com seu trabalho. Mimava-o, certa de que assim o teria sempre por perto.
Conseguiu. Ao menos por alguns meses moraram juntos, até que ele começou a se distanciar, ausentando-se por períodos cada vez mais longos. Cautelosa, ela nunca o interrogava quanto a essas ausências, temendo o abandono. Um dia, segundo ela, ele “veio com a conversa de que estava enjoado de ficar junto”. Quis um quartinho só dele. Podia ser alugado ali por perto mesmo, desde que ela pagasse. Era para “manter o amor”. Não ousando discordar, ela providenciou que mais este desejo dele fosse atendido.
O ventilador de teto, a estufa, as toalhas novas, os lençóis, a pequena geladeira e a TV mudaram-se com ele. Dona Maria ficou apenas com a parca mobília que tinha antes de conhecê-lo. Tudo foi levado para no novo “ninho de amor” que serviria para os dois passarem juntos os finais de semana, de sexta a domingo. Ela teve direito a ficar com uma chave. Podia entrar e sair todas as terças-feiras para limpar, pegar a roupa suja e abastecer a geladeira. Nas quartas e quintas não podia vir. Eram dias que ele queria só para ele. Assim era o combinado que ela cumpria religiosamente.
Eu ouvia tudo sem ousar interrompê-la. Procurava ler em seu rosto alguma coisa que me fizesse crer naquilo que escutava. Confesso que não consegui perceber o quanto de esforço ela fazia para conseguir ignorar tamanha humilhação, deixando que sua história fosse testemunhada por mim, que a ouvia em silêncio, incerta quanto ao que pensar, incerta quanto ao que dizer, na hora em que tivesse de dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Sem alterar o tom de voz, e já com o olhar voltado para algum ponto situado além de nós duas, Dona Maria falou-me então do dia em que descumpriu o acordado. Não fora por mal, ― assegurou-me ela. Havia passado no supermercado e aproveitado uma oferta. Quis fazer-lhe uma surpresa. Comprara cervejas e outras coisas caras das quais ele tanto gostava. Deu-se conta de que era quinta-feira, mas os presentes que trazia ― acreditava ― iam servir para descontar a falta.
Encontrou a porta fechada por dentro.
Bateu. No quarto persistia um silêncio que lhe congelava o sangue. Se soubesse o que não queria saber saberia ela fazer o que deveria fazer? A solução veio com a vizinha de quarto, testemunha de toda história. Abriu a porta, viu Dona Maria, e disse que ela não tinha nada que fazer ali numa quinta-feira. Que era dia da outra. ― Mas que outra?! ― Dona Maria sentiu que o chão lhe fugia.
A vizinha de porta encarregou-se de sacramentar o fim daquela história de amor que ama sozinho. Falou da outra, que vinha nas quartas e quintas. Deu detalhes. Outras portas do corredor entreabriam-se. O mundo todo escutava. O mundo todo já sabia, menos ela. Riam-se de sua generosidade, de sua estupidez, de sua canhestra esperança de ser amada. Tudo fora combinado.  
Num só instante a verdade despencou, ou o outro lado da verdade, como queiram. Fez-se a luz sobre o leito de Amor e Psiqué, sem os requintes e refinamentos da lenda. A explicação de tantas coisas consumidas na geladeira, de tanta roupa de cama e toalhas para lavar. A explicação de tudo. Cansado de esconder-se, ele aparece. Por entre a porta ainda entreaberta escapa de dentro do quarto um vulto de mulher. Jovem, talvez bonita, enfeitada, sumiu-se pelo corredor, batendo os saltos altos da sandália preta e deixando atrás de si um rastro de perfume barato, cuja marca Dona Maria fez questão de revelar.
Reunindo o que lhe sobrara de orgulho, esse capital moral que nem sempre é pecado, ela saiu dali em silêncio. No dia seguinte, friamente, esperou o momento certo. De acordo com o senhorio, fez trocar as fechaduras e transportar todas as coisas que julgava suas. Roupas e objetos pessoais dele foram reunidos em sacolas plásticas que Dona Maria deixou com a vizinha de porta, a mesma que interviera no dia anterior, e que se encarregou de fazer a entrega das coisas. Não havia recado.
E ele? ― perguntei.
Disse-me que o encontrou outras vezes. Procurava-a, só que agora repentinamente apaixonado. Mandava cartas, bilhetes, chegou a implorar para voltar. Disse que a outra que estava lá era apenas uma amiga, que a mulher da vida dele era ela, Maria. Falou de tudo e mais um pouco. Humilhou-se. Insistiu muito. Depois desistiu.
Dona Maria soube que ele “arrumou outra”. Assegurou-me, porém, que menos pródiga que ela, embora talvez mais bonita.
Sim, ela ainda tem as cartas, os bilhetes, fotos, carnês, notas de presentes, coisas dele que guarda numa caixa de sapatos que pedi que ela me mostrasse um dia.
― Fico com sua caixa, Dona Maria. Se quiser me dar, eu fico. Guardo sua história então, para que ela não se perca, ― disse-lhe.
― Bobagem. Você não vai perder seu tempo com isso.
― Não será uma perda.
Ela não toca mais no assunto. Eu não insisto.
Terá se arrependido da confidência? Não sei. Penso na caixa às vezes, nesse repositório sensível de memórias e de esquecimentos. Imagino-me abrindo essa caixa junto dela, ouvindo outra vez sua história, encaixando-a em cada pista ali existente, em cada bilhete, em cada carta, em cada papel, em cada carnê de compras feitas a prestação, em cada objeto que guarda uma amargura coagulada, uma saudade, uma mágoa.
Penso então que esse ofício de Pandora pode ser cruel, mas sei que talvez a lenda se cumpra, e que no fundo de todas essas dores do mundo talvez exista, não a cura, mas ao menos algum remédio chamado esperança. Quem sabe?


Autor: Maristela Bleggi Tomasini