A relação entre as ferrovias e o direito de propriedade não é evidente, mas ela existe e pode ser constatada sem maiores dificuldades. Para isso, todavia, é preciso lançar um olhar sobre a história. É preciso entender o significado jurídico, social e cultural desse direito milenar, que assume, até hoje, importância considerável, de sorte que sua proteção tem um caráter que se pode definir como tradicional. As ferrovias, por sua vez, quando de seu surgimento, provocaram uma verdadeira revolução, alterando paradigmas, inclusive jurídicos, sociais e culturais até então consagrados. Um deles consistiu na relativização do direito de propriedade, e é sobre isso que se pretende discorrer a partir de uma perspectiva histórica.
O direito de propriedade talvez seja um dos mais tradicionais dentre todos os direitos que o homem criou como ser socialmente organizado. Desde antes de Roma, ele é recepcionado e garantido pela ordem estabelecida. Refletiu-se também na individualidade, e teve em vista estabelecer uma relação do homem com a coisa apropriada. O reconhecimento do direito de propriedade sobre bens móveis e imóveis viu-se consagrado nos mais diversos sistemas legislativos do ocidente, que sempre, ou quase sempre, lhe conferiram um caráter estável e uma proteção toda especial, de sorte que o proprietário da coisa podia dispor dela como bem lhe aprouvesse, com pouca ou quase nenhuma restrição. De modo persistente no tempo, diversos sistemas jurídicos tiveram em vista garantir ao homem, bem mais que sua dignidade como pessoa humana, seu direito individual à propriedade das coisas.
O liberalismo econômico, quando de seu advento, não rechaçou o direito à propriedade privada. Ao contrário, pressupunha-o como essencial à realização da finalidade assinada ao capital: o lucro. A propriedade pressupõe o proprietário. É ele o titular do patrimônio — pater (do latim, pai) + nomos (do grego, leis, usos e costumes) = lei do pai — capaz de contratar e de garantir à sua descendência a percepção de uma herança. Ele influi politicamente graças ao poder econômico que detém, e que lhe deve ser garantindo individualmente, em detrimento de interesses de ordem social. A propriedade garante a imortalidade, na medida em que o patrimônio é transmissível de geração a geração. Consequentemente, não é difícil imaginar o poder desfrutado por esta classe social detentora de patrimônio: a burguesia, contemplada nos códigos civis das nações civilizadas, que dispunha, e que ainda dispõe, de um poder centrado na propriedade privada e nas garantias que a esta o sistema político, econômico, jurídico e social confere.
Hoje se vive o tempo da prevalência da dignidade da pessoa humana, do ser sobre o ter. Vive-se o tempo da finalidade social assinada à propriedade. Se isso não é efetivo, é ao menos teoricamente previsto na Constituição. Todavia, nem sempre foi assim. Em pleno liberalismo econômico, qualquer abalo ou ameaça ao direito de propriedade era muito mal recebido, alarmando uma sociedade que se estabelecia integralmente sobre este eixo civil. Tradição, família e propriedade eram a respeitável trindade que se impunha como modelo. A família, tida como célula mãe da sociedade, só fazia sentido na medida em que houvesse a herança, ou seja, a propriedade transmissível em razão da morte. Não é difícil perceber que a indissolubilidade do vínculo matrimonial, por exemplo, com a proibição do divórcio, vincula-se à necessidade de manutenção da integridade do patrimônio, bem mais que a de um suposto afeto que concorresse para com a união do homem e da mulher, naturalmente. Isso tanto é verdade que só a relativização do direito de propriedade pôde propiciar a emergência da nova família pós-moderna, que não se restringe à heterossexualidade, por exemplo. O próprio direito à herança já foi desigual, preterindo-se a prole ilegítima em favor dos filhos da união legalizada. Chegou-se a negar, ao filho havido fora dos sagrados laços do matrimônio, o direito de ter o nome do pai em sua certidão de nascimento. Hoje nem mesmo a filiação se resume à biologia, e a paternidade plena pode ser até meramente sócio afetiva. A família, pois, é tanto mais estável quanto maior proteção é conferida pelo sistema à propriedade privada imobiliária. Dentro de tais parâmetros, o direito de propriedade assume papel determinante no feitio econômico, cultural e legal de uma sociedade. Nesse contexto, banalizar a desapropriação de bens, principalmente de bens imóveis, foi algo visto com severidade, com desconfiança, como ameaça à própria ordem estabelecida, ainda mais ao tempo em que vigorava o liberalismo econômico, refletido nessa estabilidade que santificava a propriedade, tanto quanto a família tradicional.
Todavia, essa estabilidade toda se viu, de repente, diante de um grande impacto. Assim como outrora a pólvora e a imprensa provocaram revoluções sociais e culturais, a invenção da locomotiva também trouxe não poucas mudanças ao mundo moderno. Ela colocou ao alcance do homem a possibilidade de locomover-se com facilidade, segurança, com menor custo e para mais longe do que até então foi possível a um grande número de indivíduos. O detalhe a considerar, entretanto, a partir de tais colocações, será o significado das sucessivas desapropriações que se fizeram necessárias à criação das ferrovias. Em outras palavras: a invenção ameaçava a propriedade individual. Para demonstrá-lo partiremos da França, nação onde o liberalismo econômico foi expressivo e, de certa forma, tradicional, desde a prática do laissez-faire. Ora, se naquela nação se pôde constatar, rapidamente, a expansão das ferrovias, isso se deu à custa de muitas desapropriações, o que, em terras onde o liberalismo econômico fez carreira, assume significação preponderante, de sorte que, às demais nações coube apenas imitar o legislador francês.
Na França este impacto pode ser facilmente demonstrado. Para tanto, basta observar o mapa da evolução da rede ferroviária naquele país, e ver que, em apenas 30 anos, a multiplicação das ferrovias se deu de modo vertiginoso. Teoricamente, alguns anos antes da invenção da máquina a vapor e de sua aplicação na criação das ferrovias, teria sido impossível imaginar que tantas desapropriações pudessem ter lugar num sistema tradicionalmente vinculado à família e à propriedade. A lógica vigente queria que a lei atuasse como barreira de contenção a qualquer interesse coletivo que porventura se opusesse ao interesse individual do proprietário de terras, inclusive agriculturáveis. Esta lógica, no entanto, foi quebrada, pois não era possível imaginar que uma estrada de ferro pudesse ser concebida de forma a desviar-se de terras individuais, circunscrevendo o desenho de seu trajeto apenas a terras públicas. Isso ocorreu. Houve desapropriações, ainda que com abalo de uma estabilidade secular. Não se pode esquecer, sobretudo, que a ferrovia também trouxe suas compensações aos interesses representados pelo capital, na medida em que reduziu custos com o transporte de mercadorias, estimulando o comércio. Aliás, na França, os primeiros 20 quilômetros de trilhos surgiram em 1827 — linha Andrézieux-Saint-Étienne — e serviam exclusivamente para transporte de carvão realizado com tração animal. Passageiros são admitidos apenas em 1831, mesmo ano em que circulou por lá a primeira locomotiva a valor.
A ilustração, feita por um artista desconhecido, mostra quatro trens da Linha Saint-Étienne-Lyon. A primeira corresponde a um trem de passageiros; a segunda, a um trem de carga, ambos de tração eqüestre. A terceira retrata um trem de passageiros sem tração, e a última um trem de carvão puxado por uma locomotiva anterior a 1835. Em 1843, Rouen é, juntamente com Orleans, a primeira das grandes cidades da província a acolher um trem vindo de Paris. Progressivamente, desenha-se uma rede em estrela que liga a capital às extremidades da França: o Havre, Lyon, Bordeaux, Strasbourg, Brest. A rede ferroviária francesa expande-se: 3.000 km em 1852; 17.000 Km em 1870, 26.000 em 1882. Leis editadas em 1865 e em 1880 estimulam a criação de linhas locais.
Apenas uma verdadeira paixão poderia explicar que, tão rapidamente, fossem processadas tantas desapropriações: de 3.000 Km de linhas férreas para 26.000 em apenas 30 anos. Pode-se, a partir de tais dados, avaliar a extensão do abalo imposto a um número expressivo de proprietários de terras. A propriedade privada sempre despertou desejos, e a satisfação desses desejos sociais é justamente o que concorre para propagá-los. A invenção das estradas de ferro despertou nos homens o desejo de viajar, a febre da locomoção. Ir de Bordeaux a Paris em apenas 8 horas, por exemplo, correspondeu à satisfação de uma aspiração que rapidamente se espalhou pela sociedade. A figura ao lado, da Biblioteca Nacional de França, é de 1897. Tudo isso explica as expropriações com vistas à utilidade pública de bens imóveis, bens que tiveram de sofrer séria desvalia por conta da construção das estradas de ferro que permitiram a movimentação das locomotivas. Eis a tão sagrada respeitabilidade do direito de propriedade violada pela paixão que a ferrovia despertou em uma sociedade onde viajar, até então, significava despender tempo e dinheiro com diligências de tração animal, sujeitas a restrições que se podem muito bem deduzir do próprio contexto, com limitações especialmente do número de viajantes, tempo, conforto, certeza, riscos implicados e custos. O trem representou, dentro desse contexto, a realização de um verdadeiro sonho de democratização das viagens: ampliadas, facilitadas, tornadas mais rápidas, menos onerosas e mais acessíveis a um número consideravelmente maior de pessoas.
Ao legislador, dessa sorte, não restou alternativa senão que a de relativizar o direito de propriedade, editando expropriações rapidamente, e permitindo a ampliação das redes ferroviárias que aproximaram povos e nações, subordinando fins individuais para empregá-los na realização do desejo coletivo. A ferrovia não realizou apenas obra de engenharia, mas implicou ainda na renovação de uma tradicional concepção de direito, sem falar que propiciou uma ação altamente socializadora, influindo na vida social e cultural de homens e nações.
Maristela Bleggi Tomasini