quinta-feira, 28 de junho de 2012
EM MEMÓRIA DE ALGUÉM QUE EU CONHECI - Li o aviso impresso logo que cheguei ao saguão. Seu Antônio faleceu hoje. O enterro vai ser amanhã, em Canoas. A Galeria Rosário não será mais a mesma. Aquela figura ímpar, que chefiava a segurança do prédio, nunca mais vai estar ali. Não se verá mais Seu Antônio sentado por trás da mesinha, tornada ainda menor diante do corpanzil daquele ex-lutador, que durante tantos anos, sempre com cara de mau, encarou qualquer um que lhe parecesse estranho ou suspeito
Muito grande e forte, Seu Antônio fazia questão de passar por mal-encarado e mesmo afetar certa truculência. Com mais de um metro e noventa e muitas dezenas de quilos extraordinários, o rosto gordo assentado sobre um pescoço hercúleo, ele se movia com surpreendente agilidade, considerado o respeitável volume do ventre distendido. Olhava de frente para qualquer um, sem piscar os olhos muito azuis, de um tom que me lembrava aquele das hortênsias do jardim de minha avó. Com sua voz rouca e até bem colocada, ia logo perguntando aos que lhe pareciam indecisos o que estavam querendo na Galeria. Ao longo do tempo, colecionou histórias interessantes, ao menos o bastante para fazer-se respeitar pelos malandros e vagabundos do centro da cidade, que se entregavam à rotina de aplicar golpes e de furtar bolsas e carteiras. Corria a lenda de que Seu Antônio costumava levá-los para uma espécie de passeio de elevador. Só os dois. Iam até o vigésimo segundo andar do prédio e logo depois voltavam. Iam lá para “apreciar a linda vista que o prédio tem para o Guaíba”. Depois disso, o malandro ficava muito tempo, mas muito tempo mesmo, sem dar as caras pelos corredores da Galeria. Eu nunca vi nada disso. Sei, todavia, que ele gostava de alimentar todos os mitos, boatos, ditos e lendas que faziam dele um homem terrível, sem deixar de fora algumas técnicas de segurança, que ele depois comentava que eram coisas dos tempos idos que não voltam mais.
Seu Antônio era, na verdade, uma doçura de pessoa. Verdadeiramente capaz de extrema delicadeza, sem qualquer afetação. E como me queria bem! Recíproco o carinho. Sempre fiz questão de cumprimentá-lo, parando para conversar, ouvindo as novidades do prédio. Falava bem de mim, o Seu Antônio, para quem eu era a Doutora. Alegre, cordial, bem humorado, corava sempre que eu dizia que ele estava muito fofo, tocando seu ombro com o carinho que sempre fiz questão de devotar-lhe.
Célia, a síndica do prédio, ligou há pouco para me dar pessoalmente a triste notícia, porque ela sabia que havia uma grande admiração de parte a parte. Havia, sim. Acho que existe ainda, talvez; porque tenho certeza de que vou continuar a enxergar o Seu Antônio sentado atrás daquela mesinha, girando a cadeira, me cumprimentando alegremente e, muito tímido, às vezes me puxando para confidenciar “a última” da Galeria. Pena que não poderei mais apresentar Seu Antônio a quem vier aqui no prédio. Pena.
Não fui vê-lo no hospital enquanto morria. Sei que ele não ia querer ser visto por mim no estado em que o câncer o deixou. Dias atrás, cheguei a telefonar para o número que ele fazia questão de deixar ligado e atender pessoalmente, mas notei que, ao conversar comigo, mostrou-se grato, mas fez questão de demonstrar que não queria muita conversa. Dispensava piedade. Era bem dele. Respeitei, embora sempre procurasse saber notícias. Soube que pôs para fora do quarto algumas funcionárias do prédio que resolveram visitá-lo no hospital, dizendo a elas que fossem embora dali e o deixassem morrer em paz. Não quis que o vissem doente. Recusou-se orgulhosamente a ostentar seu sofrimento.
Seu Antônio chegou a ser uma figura conhecida em Porto Alegre, quando, na década de sessenta, acho que mesmo ainda durante os anos setenta, praticou luta livre, com transmissão ao vivo pela TV local, todos os domingos à noite. Nos meus tempos de criança, eu assistia infalivelmente ao programa, sempre por volta das vinte horas, apresentado por Éldio Macedo, que interpretava cada lance do programa com voz e gestos que ainda tenho presentes na memória. Impressionavam-me as lutas realizadas sempre entre personagens caracterizados. Havia o Fantomas, o Tigre Paraguaio, o Ted Boy Marino, o Escaramouche e o Homem Branco que, bem mais tarde, vim a saber que era o Seu Antônio aqui da Galeria. Meu olhar de criança via nos lutadores verdadeiros heróis comparáveis àqueles que viviam no imaginário das histórias infantis, com a diferença de que os que apareciam na tela da TV preto e branco lá de casa eram todos reais, existiam de verdade. E tal e qual os personagens dos desenhos animados, eles caiam e, milagrosamente, não se machucavam! Recusava-me a crer que era tudo ensaiado, como asseverava meu pai. No fundo, sabia que os lutadores do Ring 12 Liquigás eram todos mágicos, encantados. Pelo menos, eu queria que fosse assim, na minha obstinada ilusão que era preciso manter.
Não é difícil constatar que Seu Antônio permaneceu, para mim, como digno depositário dessa crença infantil. Afinal, ele era o Homem Branco, agora disfarçado de chefe da segurança da minha Galeria Rosário.
Seu Antônio foi-se aos poucos, embora jamais me tenha parecido fraco. Primeiro comentou da diabete que o estava importunando. Mesmo assim, insistia em comer como Pantagruel, devorando, só no lanche, de três a quatro linguiças fritas que comia às dentadas enquanto caminhava pela Galeria. Sempre sabia os dias de feijoada e de mocotó dos arredores, fazendo questão de anunciar onde e de que jeito eram servidos, assim como os melhores preços. Nunca se importou com a doença. Com o tempo, passou a desaparecer da Galeria por dias e dias, cada vez mais seguidamente.
Eu sabia que eram internações hospitalares. Mal se recuperava, voltava à vidinha de sempre, sem fazer nenhum comentário sobre doença ou saúde. Ultimamente, porém, eram mais idas do que vindas. Voltava cada vez mais inchado e cada vez por menos tempo. Afastava-se aos poucos. Da última vez, saiu do hospital e foi para casa. De lá, novamente para o hospital de onde só saiu hoje. Morto.
Nos últimos dias a doença se agravara intensamente. Parada renal, tumor no fígado, retenção de líquidos no organismo. Para ele, uma tortura, que deve ter lhe afetado o próprio sentimento de dignidade. Esperava pela morte. Sabia de seu estado. As notícias caminhavam pelos corredores e todos nós, gente da Galeria, comentávamos que ele estava por “se decidir”, faltando pouco para o fim, que poderia ser a qualquer momento. Foi hoje. Amanhã, será a despedida formal que já está marcada.
Eu não vou ao enterro do Seu Antônio. Não quero ver seu corpo nem me despedir dele. Vou conservá-lo no meu coração, e vou procurar vê-lo todos os dias em que passar pelo saguão, a cada chegada e a cada partida.
Pelo menos algumas vezes ele me deu o prazer de sua visita. Vinha até a minha sala 407 e tomava café comigo. Ficava pouco tempo. Coisa dele, eu acho. Parecia temer atrapalhar o meu trabalho. Sempre tinha extremo cuidado em reparar o quarto andar, cuidando qualquer sinal da entrada de estranhos que porventura circulassem com jeito de quem não sabe para onde vai. Impunha respeito com seu tamanho. Gostava disso. Quando passava pelo corredor, encontrando a porta entreaberta, cumprimentava, perguntado se estava tudo certo.
Agora não está. Fará falta o Seu Antônio, mas vou mantê-lo vivo na minha imaginação também, assim como na memória, falando dele aos novos e mantendo sua lembrança junto aos velhos funcionários e condôminos daqui. Afinal, Seu Antônio faz parte da história deste prédio e vai habitá-lo no imaginário da Galeria, assombrando escadas e corredores, quem sabe. Não quero que ele seja esquecido, por isso faço o que posso, neste meu testemunho triste de saudade, insistindo em continuar a dar tchau! Seu Antônio. Até amanhã!
A Galeria Nossa Senhora do Rosário é um antigo prédio comercial, construído há mais de 50 anos, situado no Centro Histórico de Porto Alegre. Esta crônica foi escrita no dia 21 de junho de 2008, dia em que Seu Antônio faleceu.
Foto: vista do 22° andar do prédio, onde aparece o Mercado Público e, ao fundo, o Guaíba.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini