sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os Narradores de Javé

REVISTA VIDA BRASIL
OS NARRADORES DE JAVÉ
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Ver filmes ou ler livros por obrigação é algo a que sempre resisto interiormente, mas tinha de assistir a OS NARRADORES DE JAVÉ e fiz isso em casa, na pequena tela de meu notebook, muito a contragosto, sentada na cozinha e tomando café. Não esperava gostar tanto, mas gostei. Brasileiro, de 2003, direção de Eliane Caffé, o filme deve sua realização a leis de incentivo à Cultura, e trata da história de uma pequena cidade que vai ser inundada devido à construção de uma represa.
Tudo começa

quando um jovem perde a
barca e acaba

sendo obrigado a esperar pela próxima em um bar, junto aos habitantes do lugarejo. Tem início uma conversa, e um dos presentes começa a falar sobre a tragédia da qual ele foi testemunha, tragédia que aconteceu no Vale de Javé. Os fatos são narrados a partir da surpresa causada pela notícia avassaladora da iminente inundação. De parte dos responsáveis pela construção da represa, não houve preocupação em notificar e indenizar os habitantes locais, gente iletrada, que sequer tinha registro de suas posses. Javé era sem qualquer significado urbano ou histórico. As águas viriam, inexoravelmente, e a cidadezinha seria submersa. As cenas subsequentes mostram o povo reunido na igreja, sem saber o que fazer. ― Os homens disseram que só não inundam quando tem coisa importante, ou seja, somente no caso de a cidade possuir patrimônio de reconhecido valor histórico, haveria chance de escapar ao seu trágico destino.
Javé não tinha coisa alguma que pudesse ser poupada em função desse valor histórico e científico. — O que queria dizer científico? — perguntavam-se os moradores. Só o que tinham de seu era sua história. Todos compartilhavam dela oralmente.  Começava com a tomada de posse do lugar. Muito embora não dispusessem de registro, as fronteiras de Javé tiveram suas divisas cantadas pelos que lá chegaram pela primeira vez. Este cantar de divisas acontecia quando alguém, deparando-se com uma terra desocupada, posicionava-se e, em voz alta, definia as fronteiras da porção que lhe interessava ocupar. A posse, todavia, só se dava na medida em que a terra fosse cultivada pelo posseiro. Assim, ao menos teoricamente, não havia lugar para a especulação imobiliária. — Se Javé tem algum valor, é a sua história, lá das origens, que a gente vive contando. — A população analfabeta não dispunha de qualquer recurso documental onde pudesse registrar formalmente suas posses. Mesmo assim, havia disputa pelas heranças que se transmitiam, da mesma forma que tradições, hábitos, costumes e a história local, da qual dava testemunho o sino da igreja, objeto trazido ao vale pelos pioneiros. A população era composta por analfabetos, com exceção de um único habitante: o carteiro.
“O mítico líder, que lembra Dom Quixote, nunca desmontava de seu cavalo, porque assim estava sempre pronto para a guerra.”
Curiosamente, justamente esse carteiro fora expulso da cidade, quando a população, chocada, descobriu que ele vinha artificialmente aumentado o volume da correspondência, para evitar o fechamento da agência do correio. Uma estratégia para manter o emprego. Antônio Biá, — personagem interpretado por José Dumont — escreveu diversas cartas anônimas, cujo conteúdo difamatório recaía sobre quase toda a população da pequena cidade. Descoberta a fraude, pois história dos outros em boca de gente corre mais rápido que o vento, a população excluiu seu único habitante alfabetizado.  Agora, por ironia, era justamente ele o único capaz de documentar os fatos cientificamente, ou seja, por escrito em livro. O jeito foi buscar Antônio, reintegrá-lo à cidade, e praticamente obrigá-lo — até por dever de consciência — a escrever a história de Javé.
O lápis obedece à mão e ao pensamento da gente. Assim começa a coleta de dados pelo escriba local. Antônio se descobre dotado do poder discricionário de ouvir e de registrar as falas e os discursos de seus concidadãos. Surgem então diferentes versões quanto ao primitivo líder, que teria guiado os fundadores de Javé, supostamente expulsos de seu lugar de origem, ao perderem, para os portugueses, uma guerra pelo ouro que haveria nas terras que habitavam. Fugitivos por covardia, ou batendo em retirada, discutidas ambas as versões, ― nossa gente era a sobra de uma guerra perdida ― vagavam trazendo consigo um sino — quem sabe pilhado — objeto de memória que simbolizava suas raízes. O mítico líder, que lembra Dom Quixote, nunca desmontava de seu cavalo, porque assim estava sempre pronto para a guerra. Diante da narrativa que descrevia o herói pilhando gado para alimentar seu grupo, a versão tem seus contornos discutidos pelo escrivão. Ele não quer apenas registrar as histórias que ouve, ele deseja floreá-las, como explica, justificando-se, pois o acontecido tem que ser melhorado.
Percebe-se nisso a emergência de um verdadeiro território histórico onde se processa uma disputa de versões. O filme mostra o poder daquele que pensa a história, selecionando dados e fatos conforme sua subjetividade, e mesmo conforme seus interesses pessoais. Antônio, tornado escrivão oficial e depositário da última e única esperança de salvação da cidade, recebe diversas propostas de todos os que desejam ver suas palavras e as histórias de suas vidas tornadas verdades oficiais.
“O personagem feminino que disputa o lugar do herói é apresentado de duas maneiras. Como heroína em uma; como louca em outra: cachorra louca, a delirar pelo Vale de Javé”
Muitos moradores hesitavam em falar, em contar suas vidas. Foi o caso da mulher difamada em cartas. Ela detesta Antônio e se recusa a falar com ele. Este, diante da negativa, responde: ― Se a senhora não tem nada pra dizer que lhe ponha na grande história do vale de Javé, adeus...― Com tais palavras, ele consegue obter dela uma nova versão que desconstrói o heroísmo do primitivo líder. Vem à luz a atuação de uma liderança feminina que teria existido na origem, Maria Dina, de quem descendia a moradora, a quem acusam de inventar essa nova versão para favorecer seus parentes.
Em guerra, partidários das duas versões disputam qual delas mereceria registro: uma envolvendo o líder Laércio ou Alécio numa aura de glorioso heroísmo; outra, fazendo-o morrer de forma humilhante, acometido de forte diarreia. Segundo esta última versão, a descoberta do lugar aonde se ergueu Javé devia-se a Maria Dina, heroína para alguns, e cachorra louca para outros. A história é de vocês, mas a escrita é minha— dizia Antônio. Reunidos, discutiam onde estaria a verdade. Um personagem, todavia, intervém e sugere que as duas versões sejam registradas, na medida em que uma dá sentido à outra.
O personagem feminino que disputa o lugar do herói é apresentado de duas maneiras. Como heroína em uma; como louca em outra: cachorra louca, a delirar pelo Vale de Javé. A louca, que não diz coisa com coisa, aparece como espécie de guia. Seu delírio é um discurso proposto à interpretação. A loucura é ilustrada também com Cirilo, o eremita, que não era visto na cidade há anos, mas que retorna, nas cenas finais, para vaticinar dramaticamente a chegada das águas. Em Javé a loucura ainda possui conteúdos significativos. O louco — que não é isolado nem medicado — integra-se ao contexto dos demais. Mesmo blindado à lógica, ele desempenha papel de condutor. O discurso do louco é profético.
“Ao ser descoberto, no entanto, e flagrado outra vez como traidor da confiança dos demais, algo nele desperta e o faz perceber a própria falha.”
Antônio cresce em importância diante dos seus. Sua moradia é uma construção muito simples, com as paredes repletas de inscrições. Acima da porta de entrada, vê-se o letreiro ostensivo: proibida a entrada de analfabetos. O saber engrandecia-o diante dos outros, hipertrofiava a sua vaidade. Rapidamente guindado da condição de excluído à de escriba, ele lidava com isso como podia. Fazia valer a autoridade com que se viu repentinamente dotado. Visitando os habitantes, entrava nas casas e ouvia histórias, da mesma forma como tinha contato com as poucas fotografias que existiam, todas cuidadosamente guardadas como valiosos tesouros, uma vez que desfrutavam do status de únicas provas documentais de certos fatos.
Assim iam sendo recolhidas as narrativas locais, a biografia de vivos e mortos, os traumas, as mágoas, as alegrias, os medos, as mortes, a miséria e a glória de cada um. A população negra que habitava um bairro isolado ainda cultivava sua língua original. Também eles devem contar sua história, a mesma história, porém em versão diferente. Nela o líder, sempre montado a cavalo, é identificado com o deus Ogum, pronto à guerra e às conquistas. Aos poucos é possível fazer convergir todas as diferentes narrativas a uma unicidade que vai tomando sentido, na medida em que se aproxima a chegada das águas. A divindade Oxum aparece em sonhos para Antônio, e confere à narrativa uma dimensão simbólica e arquetípica. Águas representam uma força da natureza, elemento feminino que assume significado de vida e de morte.
A grande esperança do povo do Vale de Javé estava toda ela depositada no livro, na escrita de sua história, no feito científico capaz de impor-se à inundação, resgatando a cidade e seus habitantes da ameaça de aniquilamento.
Contudo, Antônio nada escreveu. Descoberto outra vez como tratante, ele é pressionado pela população. É humilhado, exposto a agressões e novamente expulso da presença de seus pares. Demonstrando ironia, ele afronta seus perseguidores: ― Vocês acham que escrever adianta? Os homens não vão parar o progresso... Javé não passa de um buraco perdido no oco do mundo.
As águas chegam. Inexoráveis. Muitos são os que ficam até o fim: isso era como estar se revirando dentro da própria sepultura. Observamos que Antônio, se e enquanto se manteve distante dos seus, ouvindo suas histórias como alheias à sua própria história, não conseguia levar a termo sua tarefa. Ele não escrevia nada. Seguia o rumo do lápis sobre o papel, desenhando círculos, mas sem dar sentido ao que ouvia, embriagado com a importância de sua missão. Ao ser descoberto, no entanto, e flagrado outra vez como traidor da confiança dos demais, algo nele desperta e o faz perceber a própria falha. Sua descrença e indiferença o mantiveram alheio à história que, afinal, era a dele também. Ao ter sua sensibilidade despertada, contudo, Antônio humildemente volta a procurar os seus. Eram agora os últimos a deixar o lugar, sem saber ainda para onde iriam, levando consigo apenas o sino. Antônio Biá vai então protagonizar seu papel: com o livro, encerra uma parte da história e propõe-se a dar início a uma segunda parte. Trata-se assim de um autêntico recomeço, onde não mais se encontram presentes os elementos míticos e simbólicos relevantes na primeira parte, não mais necessários a partir de então. É nesse recomeço que ocorre a designação do sentido da história, qual seja, o sentimento de pertinência e de reconhecimento recíproco que cada um outorga ao seu próximo, reforçando identidade e solidariedade.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini