quinta-feira, 2 de agosto de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

FRAGMENTOS...
domingo, 5 de agosto de 2012
Dezembro, dia 2. Desprendimento. Calor. Estranho tanto esse meu desprendimento. Não é como se fosse — finalmente — o fim, mas percebo um adeus que me acena de algum lugar impreciso, produto desse desgaste que vai corroendo, todos os dias, parte do chão firme onde eu pensava estar contigo. São pequenas frações que se desprendem. Quase que não se sente a falta, porque é como a supressão de um reflexo, e não propriamente de uma parte certa das coisas sentidas.
ÚLTIMOS FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE REBECA
Dezembro, dia 2. Desprendimento. Calor. Estranho tanto esse meudesprendimento. Não é como se fosse — finalmente — o fim, mas percebo um adeus que me acena de algum lugar impreciso, produto desse desgaste que vai corroendo, todos os dias, parte do chão firme onde eu pensava estar contigo.  São pequenas frações que se desprendem. Quase que não se sente a falta, porque é como a supressão de um reflexo, e não propriamente de uma parte certa das coisas sentidas.
É como uma sombra que sumisse. Procuro sempre conferir se nossas sombras andam juntas, assim como, disfarçadamente, confiro nosso reflexo nas vidraças, nas vitrines, nos espelhos.  Por vezes acho que nossas sombras e nossos reflexos foram devorados por essa erosão emocional que deixa tudo muito inteiro, mas que aniquila o inútil, o superficial, a melhor parte das coisas.
Eu bem sei do valor do que a gente pode medir, avaliar, classificar e referir com propriedade. Disso nós temos, porque somos adultos, constantes, comprometidos, etc. Eu falo das outras coisas. Das coisas invisíveis, virtuais, metafóricas, sem nenhuma concretude, coisas cujo sentido é impossível apreender. Coisas feitas de silêncios cúmplices, de olhares significativos, de ausências percebidas como dor física de uma parte que falta. Coisas feitas daqueles medos que se sente de o outro não chegar, de não estar lá, porque se distraiu de nós. Éramos tão frágeis. Estávamos sempre com medo de nos perdermos, e nos assegurávamos, magicamente, a toda hora, de nossa presença. Nem que fosse escrevendo o nome um do outro, olhando as letras, juntando-as, pronunciando depois a palavra com gosto, com uma ponta de vaidade. Sonhávamos com o porto seguro que talvez tenhamos atingido agora. Sentimos doces e salgados com a mesma intensidade, temos amores semelhantes por livros e bichos. Combinamos até nas diferenças que nos tornam complementares. Disso tudo eu sei. E sei sabendo, sabidamente. Ainda assim, esse desprendimento me estranha.
Eu sabia a todos os perfumes, a fragilidades imodestas, e me alterava a qualquer instante. Tudo era muito incerto, quando só tínhamos o agora. O que nos levou a trocar uma coisa pela outra? Envelhecemos talvez. Ou o fogo arrefeceu, e hoje nos aquecemos em volta de um braseiro, contemplando as cinzas que vão se despendendo. A cada sopro, acentua-se o vermelho incandescente que, no entanto, acelera ainda mais a queima.
Contemplo o cenário do qual faço parte, mas vejo ali meu personagem que age porque conhece o script. Por vezes, temo parecer até mesmo respeitável, num contexto burguês de Casa & Jardim. Não me falta sequer a saia comportada e o blazer bem talhado, a armação dos óculos conferindo a tudo um toque de seriedade. É patético ser assim. Abandonar-se a rotinas e dar-se ao trabalho de construir planos. Eu até nem ia contar, mas daquela vez ¬ — que feio ― você me puxou o cobertor para se enrolar nele sozinho, bem no frio. Não reclamei para não te acordar, certa de que não era comigo que sonhavas. Tampouco teus olhos brilham para mim. Será mesmo preciso ir vivendo essa coisa absorvente que consiste no tecido da vida? Esse algo rotineiro que nos cobra tempo, que nos consome tão preciosa seiva.
Encontro serenidade no fundo de minha inquietude, porque me movimento incessantemente, percebendo coisas, instantes, cores. Escrevo como se cumprisse um mandamento, ciente de que ninguém mais faria isso exatamente desse jeito. Era assim que me via em ti, sabe? Como se somente eu, e apenas eu, pudesse estar ali naquele instante, sob medida.  Só que hoje, me desprendendo, olho para mim aqui do alto dessa literatura, e temo estar bem próxima do que é redundante, como personagem da rotina existencial da novela das oito, das ave-marias, dos terços e dos sonetos murmurados. Bem que podias inventar para mim algum outro sentido, fora este, tão sério, tão denso. Ou acabo desprendida, com outro nome, desfeita em letras inseridas no escuro desta página que se fecha.
Dezembro, 23. Ritos de Final de Ano. Que dizer? Eis aí uma coisa que chega como se fosse maré alta. Sufocante. Por toda a parte os ritos. A quem dar o quê? Onde? O que comer? O que vestir? A medida dos significados, as disputas, as competições. Abster-se é uma impossibilidade. Querendo ou não os ritos nos deslocam da indiferença que a custo afetamos, porque, afinal, somos adultos, e já deveríamos saber perfeitamente bem que Papai Noel é, acima de tudo, um político.
Dezembro, 25. Natal? E me virás como? Singular ou todo cheio de plurais, a desafiar-me as mágoas, como quem espreita minha intimidade? Não sei. Apenas estarei lá, fugindo ao óbvio que nos ameaça, recomeçando o final, desde o princípio, quando éramos apenas o verbo. Este, uma vez carne, conheceu então a dor e o silêncio.
Dezembro, 26. Ausência. Nunca se sabe o quanto nossa falta se faz sentir, a não ser quando nos fazemos ausentes. Fazer-se ausente é arriscado, porém. É deixar-se, afinal, descobrir o quanto fazemos falta de verdade. E pode ser que nem se faça tanta falta assim. Não tanta quanto se pensava.
Há outros onipresentes a quem designamos um exílio emocional tão determinante, que jamais se fazem presentes e, ainda que estejam por perto, sua ausência é sempre absoluta. Nascem mortos ou se morrem, ou os matamos nós, dolosa ou culposamente. Outros são sempre esquecidos, porque nunca chegaram a ser lembrados, a não ser de modo fugidio e, não fossem as agendas e os lembretes, não tomavam existência nem corporeidade nunca. Até que se desejaria não os esquecer. Lembrá-los mais vezes por delicadeza ou complacência. Só que eles nos fogem, nos escapam, e nada deles deixa rastro de memória que nossa sensibilidade possa capturar, indiferentes que são.
Outros há, todavia, cuja presença é tão intensa, que já fazem parte de nós, presentificam-se em nosso interior, ficam sempre ali, de tal forma, e com tamanha persistência, que viram um pouco outros eus da gente também. No fim, nos acostumamos a suas presenças, que ausência alguma é capaz de esmorecer. Deixam de ser outro e passam a ser um pouco a gente mesmo. Ou a gente mesmo vira esse outro lá por dentro.
O que não sei dizer é se isso é assim mesmo ou só impressão minha.
Dezembro, 31. Fim de Ano. Morte, Luto. Cerimoniais de adeus. E a vida prossegue, indiferente, com toda sua pomposa irrelevância. Com prazos, compromissos e relógios. Como se tudo fosse como sempre foi sem nunca ter sido.
Janeiro, 02. Ano Novo. O tempo. Quanto mais o tempo passa, e ele passa, inexoravelmente, mais eu desconheço o que já me pareceu tão íntimo. Vão se perdendo noções, direções, o sentido das coisas. Verdades que eram tão imutáveis foram se ajustando a uma realidade que jamais correspondeu àquela que fora, talvez, produto exclusivo de meus desejos, de minha vontade de acreditar. Ficou o que é interno. Ficou a verdade que eu mesma invento, e que é minha, afinal. Uma verdade minúscula, sem grandeza, que não vive mais do que já viveu. As coisas todas mudam neste mundo, e é desperdício o lamentar-se daquilo que se perdeu da pior das perdas: aquela que acontece, não quando se perde o que se teve um dia, mas aquela que nos tira o que pensávamos ter tido alguma vez. Como uma fotografia que vai perdendo as cores, desbotando, até que a gente não atina mais onde termina a forma e começa o fundo.
PS.: Rebeca morreu, ou deixou-se morrer, no dia 05 de janeiro de 2012. As últimas anotações encontradas em seu diário foram essas.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini