LOTE
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
― Só compreendi que não nos queriam mais lá, a nós judeus, depois na Noite dos Cristais.
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Lote era judia. E assim será lembrada, embora não parecesse observante dos ritos e embora, brincando, me dissesse baixinho e sorrindo, numa tarde de sábado, que era difícil resistir a uma fatia de presunto, porque presunto, afinal, já nem era mais porco... Ainda assim, nunca soube que ela houvesse violado esta norma. Ela nasceu na Alemanha em 1919 e teria permanecido por lá, não fosse a guerra. ― Não entendo, não entendo... Ter de fugir? ― dizia ela.
― Só compreendi que não nos queriam mais lá, a nós judeus, depois na Noite dos Cristais.
Mas eu era alemã! Minha cultura era alemã, minha língua era a língua alemã e meu pai lutou como oficial do exército alemão, pela Alemanha, na Primeira Guerra Mundial! Mas depois da Noite dos Cristais, tivemos de fugir, ― disse-me ela um dia, quando conversávamos lanchando na confeitaria que ainda funciona na loja térrea do prédio onde moro.
Era comum que nos encontrássemos aos sábados. Depois de lanchar, ela disfarçava, e dava uma desculpa, dizendo estar sem óculos. Estendia a carteira e dizia que pegassem o dinheiro e colocassem lá dentro o troco. Sorríamos uma para outra diante desse seu gesto, pois apenas eu sabia que ela agia assim, porque estava observando o Shabat. Não tocava em dinheiro no sábado. Piscava para mim, pois, embora me considerasse gentia, sabia de minha avó marrana e de meu quarto de sangue hebreu. Ela estranhava que eu soubesse tanto dos costumes, criada como gentia, batizada ― embora nunca crismada ― e tendo frequentando um tradicional colégio de freiras de Porto Alegre. Depois, perto das duas da tarde, ela ia para o salão de beleza das “Gurias”. Toda semana era assim.
Já perto dos 80 anos, ela continuava com aquele porte inconfundível. Lote fora atleta na Alemanha. Era alta, magra, loura, muito esguia e elegante, tinha lindos olhos azuis e porte de rainha. Vestia-se bem. Adorava jeans e blusas brancas. Usava tênis e nunca aparentou a idade que tinha. Era culta. Falava e escrevia em diversos idiomas. Lote tinha um irmão. Na fuga, desencontraram-se, e ela só soube dele anos depois. Era um homem alto, andava sempre curvado. Bem mais velho que ela, vestia-se de preto fosse inverno ou verão, carregando um guarda-chuva. Falava sozinho. Nunca sorria. Não suportava barulhos fortes. Era um homem muito culto que amava intensamente a música, tanto que ficou conhecido em Porto Alegre quando, no teatro, em algum concerto, se ele por caso ouvisse conversas na plateia, levantava-se, erguia o guarda-chuva e gritava sssilêeeeencio, indignado com a falta de sensibilidade do público.
Lote chegou ao Brasil, em Porto Alegre, em tempos em que não era comum uma mulher trabalhar, ser solteira, culta e independente. Isso a tornava notada pela vizinhança. Ela se destacava em tudo que fazia. Era voluntariosa, irreverente e, sempre que necessário, reagia com vigor. Gostava de dizer que não levava desaforo para casa. Nunca fez o tipo meigo ou singelo. Era uma mulher forte,admirável, alegre, em que pese haver perdido toda a família em campos de concentração.
Morava com esse irmão que um dia, porém, já bastante idoso, decidiu casar-se. Foi pouco antes de ele morrer, supostamente, de desgosto. Ele se apaixonou por uma pianista, segundo Lote, uma mulher que o seduziu com a voz, pois além de exímia pianista também cantava. Ele se casou, alegando que queria ser feliz. Não foi. Lote rompeu com ele e passou a viver só, detestando a cunhada, uma mulher alta, elegante, fria e solene que eu conheci apenas de vista.
Um dia falamos de amores. Ela me contou que teve um amor, mas que ele era cristão. Entendi o que isso significava para ela. Não daria certo ― comentou. Contou-me da Mezuzah que fora de seu pai antes de ser dela. Estava na porta de seu apartamento, pregada à altura dos olhos, inclinada no mesmo grau do ponteiro do relógio quando marca 11 horas. Nenhum dos vizinhos sabia o que era. Eles estranham, mas não perguntam ― disse-me um dia sorrindo. Ganhei dela uma lindaMagen David banhada a ouro que tenho comigo até hoje. Lote dava presentes a todas as pessoas de quem gostava. Dizia que era para que se lembrassem dela. Mas eu sei que era bem mais que isso. Como judia, tinha consciência de que não teve família. Não teria, pois, quem dissesse o Kadish por ela, a oração dos mortos.
Ela tinha uma alegria intensa, um entusiasmo pela vida, uma força incomum. Contei-lhe um dia que dificilmente comia Matzá, pois no bairro não havia onde comprar. O tempo passou. Num sábado ― lembro muito bem do sai ― acordei angustiada. Um desses dias em que a gente acorda e se sente triste. Estava numa fase ruim, sem saber o que fazer, e pensava comigo que precisava de algum sinal, de alguma coisa que me fizesse acreditar que tudo ficaria bem. Então, minha mãe entrou no meu quarto e disse que havia algo estranho na porta. Era uma sacola. Lote havia dado um jeito de descobrir a minha porta e de deixar ali uma sacola com matzote um abridor de garrafa com um símbolo de Israel. Eu sabia que fora ela. O que ela não sabia foi que naquela mesma manhã eu pedira para receber um sinal qualquer que me fizesse ir em frente.
E assim o tempo passava. Nos víamos, conversávamos. Eu me perguntava sempre como uma mulher como ela não tinha encontrado um grande ou mesmo um pequeno amor na vida. Sabia que namorou bastante nos idos de 50, 60, mas que era uma moça tida como independente demais e por isso não casara, tudo conforme, é claro, o juízo pequeno e estreito que vigorava naqueles tempos, e em nossos tempos ainda, não poucas vezes. Sabia que amara o tal cristão, mas que era um amor sem possibilidades, pois ele não entenderia jamais a sua alma judaica. Alma judaica existe. Não é uma impressão nem um modo de falar, mas um jeito de sentir o mundo e a vida. Nem Freud escapou disso e, mesmo a contragosto, admitiu-o.
Nossa diferença de idade era de exatamente 40 anos. A cada aniversário, nos telefonávamos. Fazíamos ambas no mês de julho: ela no dia 12 e eu no dia 15. Quando fiz 40 e ela 80, nos encontramos para um abraço. A vida seguiu seu rumo, com certa rotina. Ela sempre salão de beleza das Gurias, antigo no bairro, aliás, desde que as gurias eram mesmo gurias. Acho que um ano ou dois depois ela começou a ter problemas de saúde. Era diabética e vivia abusando. Fazia de conta que não era doente. Adorava comer doces. Amava viver. Um dia estava almoçando num restaurante de amigos comuns. Não sentiu as pernas. Gritou. Chamou por socorro. Foi posta num táxi e internada. Teve uma trombose que lhe custou uma perna. Gritava no hospital. Gritava e chorava em desespero. Não aceitava nem aceitou o que lhe aconteceu.
As Gurias foram vê-la. Eu não pude. Não quis ser testemunha de seu desespero, embora todo dia procurasse saber dela. Não quis vê-la, porque eu não saberia consolá-la e menos ainda dizer que se conformasse. Entendia-lhe o desespero. Não teria condições de testemunhar seus gritos nem sua raiva. Não fui ao Hospital de Clínicas visitar a minha querida amiga. Não havia nada que eu me sentisse capaz de fazer ali. Ela morreu dias depois. Recebi a notícia com alívio. Eu confesso que não queria ver Lote desesperada,mutilada e vivendo numa cadeira de rodas presa no asilo da comunidade. Foi uma atitude de gentia a minha. De goin mesmo, negar-lhe minha presença ao seu lado na pior das horas. Acabei com esta culpa me roendo talvez mais do que sofreria se a visse gritar sem poder fazer nada por ela. Não teria como lhe devolver o que vida que tirou. Ela sofreu demais. Não era mulher de se conformar, de aceitar, de adaptar-se a uma limitação desse porte. Se cedesse a algo assim, conformando-se, não seria mais a Lote.
Informei-me da Mezuzah. Soube que foi levada por gente da comunidade, e me fez bem saber que não caiu em mãos erradas. Durante todo o ano que se seguiu à morte de Lote, eu frequentei todos os sábados, o salão das Gurias. Ia lá e fazia qualquer coisa: cabelo, manicure, o que fosse... E, sem dizer por qual motivo, eu dava um jeito e falava em Lote, como que para fazê-la presente. Não vi sentido em rezar o Kadish em casa por ela. De que valeria uma oração pronunciada fora do rito? E de que valeria o rito fora do contexto? Não era isso. Eu preferi fazer diferente, observando o ano depois da morte a cada shabat. E fiz desse jeito, lembrando sempre cada detalhe junto a pessoas que ela conhecia bem, lembrando cada sorriso, os presentes, as alegrias que ela prodigalizava a todos.
E foi lá, com as Gurias, cabeleireiras da Lote, que eu soube de algo muito especial sobre minha amiga. Disseram-me elas que, antes de adoecer, ela andava muito triste, muito triste e abatida mesmo. Todavia, não contava a ninguém o que era. Passou-se algum tempo, e então ela apareceu alegre no salão. Feliz mesmo, de uma hora para outra. Sorrindo, como se estivesse aliviada, como quem reencontrasse algo precioso. Então, ela fez uma confidência. Contou, um pouco constrangida, que conhecera um homem bem mais jovem, que ele se mostrou apaixonado por ela, e ela por ele. Ele morava em São Paulo, parece. Escreviam cartas um para o outro, porque não se encontravam sempre. Depois, repentinamente, as cartas cessaram. Ela então parou de escrever e ficou triste, achando que se enganara. Foi uma época em que ficou melancólica e silenciosa, fechada, pensativa, porque não queria admitir a quem quer que fosse que vivera uma história de amor falsa.
Acontece que, naquele mesmo em dia em que apareceu alegre no salão, ela havia recebido notícias de seu amor. Soube que ele morrera. E soube isso por intermédio da mãe dele, que era bastante idosa, mas que descobriu, entre as coisas do filho, as cartas escritas por Lote, resolvendo escrever e contar o que acontecera. Ele deveria ter perto de sessenta anos quando faleceu repentinamente do coração. Enfim, na carta, a mãe do último amor de minha amiga assegurou a ela que este amor não fora uma ilusão.
Lote contou que estava triste pela morte dele, mas feliz pelo resgate dos seus sentimentos.
Talvez duas semanas depois disso, ela passou mal e morreu.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini