quinta-feira, 28 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

S E U A N T Ô N I O
quinta-feira, 28 de junho de 2012
EM MEMÓRIA DE ALGUÉM QUE EU CONHECI - Li o aviso impresso logo que cheguei ao saguão. Seu Antônio faleceu hoje. O enterro vai ser amanhã, em Canoas. A Galeria Rosário não será mais a mesma. Aquela figura ímpar, que chefiava a segurança do prédio, nunca mais vai estar ali. Não se verá mais Seu Antônio sentado por trás da mesinha, tornada ainda menor diante do corpanzil daquele ex-lutador, que durante tantos anos, sempre com cara de mau, encarou qualquer um que lhe parecesse estranho ou suspeito



Muito grande e forte, Seu Antônio fazia questão de passar por mal-encarado e mesmo afetar certa truculência. Com mais de um metro e noventa e muitas dezenas de quilos extraordinários, o rosto gordo assentado sobre um pescoço hercúleo, ele se movia com surpreendente agilidade, considerado o respeitável volume do ventre distendido. Olhava de frente para qualquer um, sem piscar os olhos muito azuis, de um tom que me lembrava aquele das hortênsias do jardim de minha avó. Com sua voz rouca e até bem colocada, ia logo perguntando aos que lhe pareciam indecisos o que estavam querendo na Galeria. Ao longo do tempo, colecionou histórias interessantes, ao menos o bastante para fazer-se respeitar pelos malandros e vagabundos do centro da cidade, que se entregavam à rotina de aplicar golpes e de furtar bolsas e carteiras. Corria a lenda de que Seu Antônio costumava levá-los para uma espécie de passeio de elevador. Só os dois. Iam até o vigésimo segundo andar do prédio e logo depois voltavam. Iam lá para “apreciar a linda vista que o prédio tem para o Guaíba”. Depois disso, o malandro ficava muito tempo, mas muito tempo mesmo, sem dar as caras pelos corredores da Galeria. Eu nunca vi nada disso. Sei, todavia, que ele gostava de alimentar todos os mitos, boatos, ditos e lendas que faziam dele um homem terrível, sem deixar de fora algumas técnicas de segurança, que ele depois comentava que eram coisas dos tempos idos que não voltam mais.
Seu Antônio era, na verdade, uma doçura de pessoa. Verdadeiramente capaz de extrema delicadeza, sem qualquer afetação. E como me queria bem! Recíproco o carinho. Sempre fiz questão de cumprimentá-lo, parando para conversar, ouvindo as novidades do prédio. Falava bem de mim, o Seu Antônio, para quem eu era a Doutora. Alegre, cordial, bem humorado, corava sempre que eu dizia que ele estava muito fofo, tocando seu ombro com o carinho que sempre fiz questão de devotar-lhe.
Célia, a síndica do prédio, ligou há pouco para me dar pessoalmente a triste notícia, porque ela sabia que havia uma grande admiração de parte a parte. Havia, sim. Acho que existe ainda, talvez; porque tenho certeza de que vou continuar a enxergar o Seu Antônio sentado atrás daquela mesinha, girando a cadeira, me cumprimentando alegremente e, muito tímido, às vezes me puxando para confidenciar “a última” da Galeria. Pena que não poderei mais apresentar Seu Antônio a quem vier aqui no prédio. Pena.
Não fui vê-lo no hospital enquanto morria. Sei que ele não ia querer ser visto por mim no estado em que o câncer o deixou. Dias atrás, cheguei a telefonar para o número que ele fazia questão de deixar ligado e atender pessoalmente, mas notei que, ao conversar comigo, mostrou-se grato, mas fez questão de demonstrar que não queria muita conversa. Dispensava piedade. Era bem dele. Respeitei, embora sempre procurasse saber notícias. Soube que pôs para fora do quarto algumas funcionárias do prédio que resolveram visitá-lo no hospital, dizendo a elas que fossem embora dali e o deixassem morrer em paz. Não quis que o vissem doente. Recusou-se orgulhosamente a ostentar seu sofrimento.
Seu Antônio chegou a ser uma figura conhecida em Porto Alegre, quando, na década de sessenta, acho que mesmo ainda durante os anos setenta, praticou luta livre, com transmissão ao vivo pela TV local, todos os domingos à noite.  Nos meus tempos de criança, eu assistia infalivelmente ao programa, sempre por volta das vinte horas, apresentado por Éldio Macedo, que interpretava cada lance do programa com voz e gestos que ainda tenho presentes na memória.  Impressionavam-me as lutas realizadas sempre entre personagens caracterizados. Havia o Fantomas, o Tigre Paraguaio, o Ted Boy Marino, o Escaramouche e o Homem Branco que, bem mais tarde, vim a saber que era o Seu Antônio aqui da Galeria. Meu olhar de criança via nos lutadores verdadeiros heróis comparáveis àqueles que viviam no imaginário das histórias infantis, com a diferença de que os que apareciam na tela da TV preto e branco lá de casa eram todos reais, existiam de verdade. E tal e qual os personagens dos desenhos animados, eles caiam e, milagrosamente, não se machucavam! Recusava-me a crer que era tudo ensaiado, como asseverava meu pai. No fundo, sabia que os lutadores do Ring 12 Liquigás eram todos mágicos, encantados. Pelo menos, eu queria que fosse assim, na minha obstinada ilusão que era preciso manter.
Não é difícil constatar que Seu Antônio permaneceu, para mim, como digno depositário dessa crença infantil. Afinal, ele era o Homem Branco, agora disfarçado de chefe da segurança da minha Galeria Rosário.
Seu Antônio foi-se aos poucos, embora jamais me tenha parecido fraco. Primeiro comentou da diabete que o estava importunando. Mesmo assim, insistia em comer como Pantagruel, devorando, só no lanche, de três a quatro linguiças fritas que comia às dentadas enquanto caminhava pela Galeria. Sempre sabia os dias de feijoada e de mocotó dos arredores, fazendo questão de anunciar onde e de que jeito eram servidos, assim como os melhores preços. Nunca se importou com a doença. Com o tempo, passou a desaparecer da Galeria por dias e dias, cada vez mais seguidamente.
Eu sabia que eram internações hospitalares. Mal se recuperava, voltava à vidinha de sempre, sem fazer nenhum comentário sobre doença ou saúde. Ultimamente, porém, eram mais idas do que vindas. Voltava cada vez mais inchado e cada vez por menos tempo. Afastava-se aos poucos. Da última vez, saiu do hospital e foi para casa. De lá, novamente para o hospital de onde só saiu hoje. Morto.
Nos últimos dias a doença se agravara intensamente. Parada renal, tumor no fígado, retenção de líquidos no organismo. Para ele, uma tortura, que deve ter lhe afetado o próprio sentimento de dignidade. Esperava pela morte. Sabia de seu estado. As notícias caminhavam pelos corredores e todos nós, gente da Galeria, comentávamos que ele estava por “se decidir”, faltando pouco para o fim, que poderia ser a qualquer momento. Foi hoje. Amanhã, será a despedida formal que já está marcada.
Eu não vou ao enterro do Seu Antônio. Não quero ver seu corpo nem me despedir dele. Vou conservá-lo no meu coração, e vou procurar vê-lo todos os dias em que passar pelo saguão, a cada chegada e a cada partida.
Pelo menos algumas vezes ele me deu o prazer de sua visita. Vinha até a minha sala 407 e tomava café comigo. Ficava pouco tempo. Coisa dele, eu acho. Parecia temer atrapalhar o meu trabalho. Sempre tinha extremo cuidado em reparar o quarto andar, cuidando qualquer sinal da entrada de estranhos que porventura circulassem com jeito de quem não sabe para onde vai. Impunha respeito com seu tamanho. Gostava disso. Quando passava pelo corredor, encontrando a porta entreaberta, cumprimentava, perguntado se estava tudo certo.
Agora não está. Fará falta o Seu Antônio, mas vou mantê-lo vivo na minha imaginação também, assim como na memória, falando dele aos novos e mantendo sua lembrança junto aos velhos funcionários e condôminos daqui. Afinal, Seu Antônio faz parte da história deste prédio e vai habitá-lo no imaginário da Galeria, assombrando escadas e corredores, quem sabe. Não quero que ele seja esquecido, por isso faço o que posso, neste meu testemunho triste de saudade, insistindo em continuar a dar tchau! Seu Antônio.  Até amanhã!

A Galeria Nossa Senhora do Rosário é um antigo prédio comercial, construído há mais de 50 anos, situado no Centro Histórico de Porto Alegre.  Esta crônica foi escrita no dia 21 de junho de 2008, dia em que Seu Antônio faleceu.
Foto: vista do 22° andar do prédio, onde aparece o Mercado Público e, ao fundo, o Guaíba.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini

quarta-feira, 27 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

A METÁFORA
domingo, 24 de junho de 2012
ERA UMA VEZ Maria, que vivia ensimesmada nos livros que lia. Os livros de Maria tinham capas duras como corações de pedra. Mas havia as traças. E elas acabaram destruindo, ao longo do tempo, vagarosamente, as capas duras dos livros que Maria lia. Os buracos foram aparecendo um a um. O ar foi entrando. Também umidade, poeira, farelos de pão, substâncias de toda sorte. Enfim, tudo o que se enfia por entre páginas de livros, inclusive ideias e sustos.
 “Parece que isso pode ser, afinal, o que a palavra viver significa de verdade, quando a gente brinca com ela.”

Maria, assim, acabou por sair de dentro dos livros que lia. Foi quando percebeu que o mundo era mesmo todo feito de livros,exatamente como ela pensava que fosse. Havia também todo o resto das coisas que faziam parte desse mundo de Maria, mas essas não importavam tanto, parece. Os livros, sim, importavam. A diferença entre eles, contudo, ficava no fato de que os livros que formavam o mundo eram de dois tipos: uns com traças, outros sem elas. Uns com buracos, outros sem nenhum. Sendo que todos os livros, indiferentemente, acabariam devorados pelas traças algum dia.

A morte devora a vida dos homens, e traças devoram as letras dos livros. Todos sabem que ninguém escapa. Nem os homens da morte, nem os livros das traças. Contudo, entre o existir e o extinguir, há um tempo a preencher, e inutilmente a vida da gente vai se inventando verdades cada vez mais absurdas, como costumam ser todas as verdades verdadeiramente inventadas.

Mas acontece que nesta história inventada — como é o caso de todas as coisas não acontecidas — havia um João. Mesmo de longe, era ele também afetado desse mesmo malefício executado pelo serviço diligente das traças. E esse João, que se julgava um sábio, já sabia que o mundo era feito de livros. E de outras coisas que ele, contudo, achava que valiam a pena.

Um dia, por causa de um livro, João encontrou Maria, e ambos começaram a conversar. Falavam bons dias, formalmente. Depois, dos malefícios recíprocos, dos tempos de cativeiro, dos encantamentos e das traças. Conversavam em silêncio e ausentes, pois o falar de ambos se dava por notas apenas. Escreviam tudo nas margens dos livros que tinham, por cima e por baixo dos textos que outros já haviam escrito. Os livros do mundo, todos eles, são cheios de letras e de palavras. E aos personagens letrados desta história não faltavam palavras, aí incluídos um monte de verbos, substantivos, adjetivos e muitos advérbios pomposos, adequadamente lubrificados, bem como aqueles com os quais se escrevem provérbios, versículos, anedotas, dissertações e teses.

Conversavam muito, embora tristemente restritos ao pequeno espaço das margens. Ainda assim, pareciam satisfeitos com isso. Era o que tinham. Com o tempo, aprenderam a ser uma presença, mas no princípio não sabiam disso. Não assim, logo de cara. Antes, era apenas por notas breves que conversavam. Ausentes, sim, mas anotando a vida um do outro, e amontoando milhares de letras de diversas fontes, e muitos pontos e vírgulas e exclamações e interrogações, coisa de umas três mil notas com milhares de palavras e mais letrinhas avulsas, muitas, tantas destas que dariam para encher pratos e mais pratos de sopa. Ah! — e também travessões — que ela, a Maria dessa história, tinha gosto por eles, os tais travessões. Com o tempo, as traças de um e de outro se deram a conhecer e foram se tornando íntimas. Eles também. De uma intimidade esotérica e abstrata, todavia.

“E assim, como a vida tem encantos por toda parte, andam sem poder seguir o destino, que ninguém mais sabe nem pode saber que futuro esteja reservado a cada um.”

Pontuais, breves, corriqueiros, eram eles mesmos apenas por delicadeza e por curiosidade. Iam inventando uma vida vivida em palavras, alimentada de letras, uma vida feita de textos que contavam só as verdades mais letradas de cada um. Certo é que havia outros textos, sérios e concretos, com capítulos, índices, introduções, prólogos compridos, sem lugar para figuras, sem lugarpara folhas dobradas, sem lugar para desenhos e riscos nas margens, desses que as crianças fazem com lápis de cor, e que eu faço até hoje nos meus livros. Eles apenas anotavam a vida um do outro, pontuavam-se, delirando. Talvez no verão. Quem sabe? E o verão ia e o verão vinha, e eles continuavam com o texto das vidas acontecendo à revelia de cada um, mas sempre com as notas, exatamente como as notas são, tendo apenas a função de explicitar algumas coisas e de camuflar outras.

E brincavam os dois, muito. Ainda que fossem apenas gente de verdade. Tinham vidas, órgãos, certidões, títulos, compromissos, mãos, dedos, braços, pernas, tronco, cabeça, orelhas, olhos, óculos e tudo! Mas com essas partes aí eles não brincavam, não. Nem com aquelas outras. Eles brincavam apenas com as palavras, porque as palavras existem para que com elas a gente invente todas as coisas que jamais aconteceram, mas que, nem por isso, deixam de ser a mais pura verdade que o coração pode inventar. Eram gente séria; ou fingiam ser. Mas também brincavam de Princesa e de Urso, com Maria virando uma princesa de faz-de-conta e João virando um urso: curioso, brincalhão, mas certeiro na patada. Brincavam de ser aquilo que eles seriam, se não fossem o que sempre foram, e se não fosse o tempo, as estações, as desculpas, o destino, a distância, a imensidão, as contingências, o correio. Se não fossem os créditos somados e os descréditos subtraídos às respectivas vidas, se não fossem as chuvas em São Paulo, o Lula, o terrorismo, o Guaíba, a Rua da Praia, a 25 de Março e a 7 de Setembro, as traças, os livros, os ácaros, eles e elas, os outros, os daqui, os dali e os de lá, todos formando uma imensa Cia. Se não fosse tudo isso, então, como seria? Então escreviam, escreviam, escreviam... Brincando com as notas, é claro. Brincando com as bandeirinhas, com o mapa do Brasil, com Nélson Rodrigues, com a diabete, com o enfisema, com a mesa da cozinha, com a história, o Radecki, o Lombroso, o Gabriel, os exames médicos, os prognósticos esperançosos que se seguiam aos diagnósticos sombrios.

E antes que algum desavisado me pergunte exatamente de que eles brincavam, eu vou logo dizendo que passavam o tempo brincando de significados. Adultos, quando brincam, só brincam disso. É mais politicamente correto e menos arriscado que o antigo fazer de conta infantil. João e Maria eram complexos, sinistros como todos os adultos. Brincavam apenas assim. A importância e a razão maior de brincar de significados é que as palavras não podem ficar presas para sempre ao que os dicionários dizem delas. É preciso libertá-las da rotina que as escraviza e que as condena a valeram sempre pelo que são.

“O que mais preocupa dentre as palavras perdidas desta história é que a palavra Maktub, que aparece em outro conto maluco desses, também foi roída e esburacada.”

Tão triste ser apenas aquilo que se é, e mais nada.  Bem como eles eram, esse João e essa Maria. Sempre vistos de acordo com o seu respectivo funcionamento. Como as palavras que permanecem submissas aos dicionários. Como elas, eles também tinham seus papéis, funções, fardos e enfartos. Daí o empenho de brincarem tão a sério com palavras, fazendo com que significassem sempre muito mais do que queriam dizer. Nem mesmo um não sempre é não. Ele às vezes pode ser, sim. Pode também não ser, sim, se tropeçar nesta vírgula aí. A engenharia da pontuação, como todos sabem, é inspirada pela cabala, e não há verdade que algum dia não tenha sido mentira.

E assim, as coisas se iam descrevendo, e o mundo ia tomando a forma que as palavras lhe davam ao bel prazer das notas. As notinhas. Sempre pontuando a vida de cada um. A vida que passava e que passa ainda, inexorável, pelo metrô e pelo Guaíba e, sobretudo, pela voracidade tenaz das traças. E eles iam vivendo. E a vida passando, arrastando com ela tanta coisa que eles sempresouberam perder com elegância, ora com, ora sem valentia. Vida habitada, lotada de coisas, de outros e outras, e ainda livros, contas, desesperos, alegrias, orgulhos, expectativas, objetivos, canseiras, tristezas, prazos, processos, compromissos, deveres, honras, cozinhas, salas, latrinas, remédios, decepções, esperanças. Hospícios? Tudo no lugar. Tudo parte dos livros, dos scripts, das histórias bem contadas, sempre tão mal contadas. Tudo?

Tudo, sim. E, no fundo, um tudo tão cheio de nada, um fundo tão raso de profundezas, que só as malditas notinhas de rodapé mesmo para pôr um pouco de fantasia, de magia, de brincadeira, de sentido àquela sucessão de acontecimentos lógicos, previsíveis e prosaicos, cheios de aparente seriedade, bem do tipo que é para valer, porque todos sabem que a lógica do absurdo é implacável, é substancial como um hipopótamo. De bom mesmo, pelo menos havia as notinhas simples, não obrigatórias, limitadamente escritas, com hora marcada, dentro das regras, como tudo o que é perigoso, arriscado, imoral ou mesmo rigorosamente desnecessário. Bem assim como a presença de cada um deles nas páginas dos livros do outro. Inútil, sim. Desnecessária e até incômoda presença, mas nunca, jamais, uma presença redundante, e isso desde aquele tempo. 

“As traças comeram quase tudo o que estava escrito, e que era a parte séria das vidas de cada um.”

Aí aconteceu a tragédia da qual esta história vai tratar, pois histórias como esta devem ter exageros de tragédias. Se não fosse assim, os finais felizes — se é que esta história terá um — estariam todos condenados à insipiência, à sensaboria, a significar coisas que só essas palavras retumbantes como música marcial podem fazer significar.

A tal tragédia consistiu numa misteriosa proliferação das traças que teve lugar um dia. Como se uma praga bíblica, rogada do alto da montanha, houvesse multiplicado os bichos que, excitados,devoravam tudo: páginas e capas, a cola, as letras e até as fitas e os santinhos guardados por dentro das páginas dos livros. E então os livros, dentre estes justamente aqueles onde estavam escritos os destinos da Maria e do João desta história, acabaram todos furiosamente atacados.

“Tudo por causa das traças. Tudo por causa do papel em branco que restou e que devia ser todo preenchido, não mais por textos, mas pelas notas, elas mesmas, pelas delirantes notas que pontuavam as solidões.  Até que as notas cessaram.”

Aí, sem livros inteiros nem destinos traçados, as notas acabaram tomando conta dos textos. As traças comeram quase tudo o que estava escrito, e que era a parte séria das vidas de cada um. Destruíram a lombada dos livros onde o destino deles estava traçado, e misturaram as páginas, perfurando o número de cada uma delas. Então, as histórias das vidas de cada um — que eram para estar separadas em prateleiras diferentes — cada uma em um livro, acabaram com as páginas todas confundidas e misturadas, sem que se pudesse saber o que vinha antes e o que vinha depois, sem contar os durantes que se tornaram perpétuos.

Pior ainda foi que se perderam os significados reais de algumas palavras que conseguiram escapar à ditadura dos dicionários. Imaginem só, se algum dia neste mundo em que vivemos os eu te amo banais começassem a ser para valer! Quanta confusão!  E veio o caos assim. Tudo por causa delas, as traças. Vai ver, cruzamentos pouco recomendados a originar outras traças de maior agressividade e gula. Traças transgênicas que devoraram os livros deles onde estavam escritas  as regras do mundo.

Culpa das traças, sim. Culpa delas, que iam e vinham de lá pra cá. Como todos sabem, as traças, ainda que entupidas de letras, nunca souberam nada dos números e, não sabendo contar, acabaram por misturar tudo. Foi assim que o Urso, que não era Urso, acabou virando Urso de verdade inventada; a Princesa, que era de faz-de-conta, acabou Princesa de verdade inventada também. E as traças comeram até o final da história.

As notas acabaram por substituir os textos da vida de João e de Maria. Diante do inexorável, não houve outro jeito senão passarem a levar a sério o fato de que, dali por diante, seriam Urso e Princesa, não sobrando mais ninguém para tirar um e outro do surto em que se meteram. Tudo por causa das traças. Tudo por causa do papel em branco que restou e que devia ser todo preenchido, não mais por textos, mas pelas notas, elas mesmas, pelas delirantes notas que pontuavam as solidões.  Até que as notas cessaram. A Princesa quis ver de que cor era o Urso, e o Urso quis conferir se ela calçava mesmo 34.

E como os livros se perderam e as notas escassearam, João e Maria acreditam agora que são Urso e Princesa e andam pelo mundo a se desencontrar, até hoje.

O que mais preocupa dentre as palavras perdidas desta história é que a palavra Maktub, que aparece em outro conto maluco desses, também foi roída e esburacada. E agora não existe mais nada escrito, e eles terão de escrever, cada um do seu jeito, as próprias histórias. Livros não há mais, nem scripts, nem definições. Os dicionários, apavorados que pudesse a brincadeira contagiar seus verbetes, fecharam-se em copas e muitos se recusam hoje a expor suas páginas ao risco das patadas do Urso ou dos delírios da Princesa, que come romãs e toma luar em vez de sol.

“Pior ainda foi que se perderam os significados reais de algumas palavras que conseguiram escapar à ditadura dos dicionários.”

E assim, como a vida tem encantos por toda parte, andam sem poder seguir o destino, que ninguém mais sabe nem pode saber que futuro esteja reservado a cada um. Sabe-se apenas que eles permanecem, ao menos por enquanto, ainda reféns do cativeiro que os mantém cativos e cativados. É que, como as traças comeram o caminho de volta, comeram o final da história, comeram os números das páginas, comeram os registros, as certidões, os documentos, as escrituras, os títulos de propriedade e os bacharelatos, só restam folhas soltas do que um dia foi o Livro da Vida de cada um. E agora eles podem fazer o que quiserem das páginas em branco que profusamente o Word edita e cursor percorre deixando, por toda parte atrás de si, letrinhas diversas que formam palavras insensatas que só os loucos e os apaixonados conseguem entender, coisa que Olavo Bilac já sabia, quando falou de estrelas.

Parece que isso pode ser, afinal, o que a palavra viver significa de verdade, quando a gente brinca com ela. Viver é fazer sentido para a gente mesmo, ainda que isso implique num texto sem clareza, sem qualidade, sem nitidez, arbitrário e tão certeiro em seu hermetismo que só pode ser decifrado por quem ama as palavras pelo que são, e não pelo que os dicionários dizem delas.

Como a gente, se pudesse valer sempre apenas pela emoção que desperta e que sente, sem rótulos, certificados nem propósitos. Daí a importância das traças. Às vezes é preciso saber brincar com tudo. Seriamente.




Autor: Maristela Bleggi Tomasini

sábado, 23 de junho de 2012

As Ferrovias e a Relativização do Direito de Propriedade: Uma Perspectiva Histórica


A relação entre as ferrovias e o direito de propriedade não é evidente, mas ela existe e pode ser constatada sem maiores dificuldades. Para isso, todavia, é preciso lançar um olhar sobre a história. É preciso entender o significado jurídico, social e cultural desse direito milenar, que assume, até hoje, importância considerável, de sorte que sua proteção tem um caráter que se pode definir como tradicional. As ferrovias, por sua vez, quando de seu surgimento, provocaram uma verdadeira revolução, alterando paradigmas, inclusive jurídicos, sociais e culturais até então consagrados. Um deles consistiu na relativização do direito de propriedade, e é sobre isso que se pretende discorrer a partir de uma perspectiva histórica.

O direito de propriedade talvez seja um dos mais tradicionais dentre todos os direitos que o homem criou como ser socialmente organizado. Desde antes de Roma, ele é recepcionado e garantido pela ordem estabelecida. Refletiu-se também na individualidade, e teve em vista estabelecer uma relação do homem com a coisa apropriada. O reconhecimento do direito de propriedade sobre bens móveis e imóveis viu-se consagrado nos mais diversos sistemas legislativos do ocidente, que sempre, ou quase sempre, lhe conferiram um caráter estável e uma proteção toda especial, de sorte que o proprietário da coisa podia dispor dela como bem lhe aprouvesse, com pouca ou quase nenhuma restrição. De modo persistente no tempo, diversos sistemas jurídicos tiveram em vista garantir ao homem, bem mais que sua dignidade como pessoa humana, seu direito individual à propriedade das coisas. 

O liberalismo econômico, quando de seu advento, não rechaçou o direito à propriedade privada. Ao contrário, pressupunha-o como essencial à realização da finalidade assinada ao capital: o lucro. A propriedade pressupõe o proprietário. É ele o titular do patrimônio — pater (do latim, pai) + nomos (do grego, leis, usos e costumes) = lei do pai — capaz de contratar e de garantir à sua descendência a percepção de uma herança. Ele influi politicamente graças ao poder econômico que detém, e que lhe deve ser garantindo individualmente, em detrimento de interesses de ordem social. A propriedade garante a imortalidade, na medida em que o patrimônio é transmissível de geração a geração. Consequentemente, não é difícil imaginar o poder desfrutado por esta classe social detentora de patrimônio: a burguesia, contemplada nos códigos civis das nações civilizadas, que dispunha, e que ainda dispõe, de um poder centrado na propriedade privada e nas garantias que a esta o sistema político, econômico, jurídico e social confere.

Hoje se vive o tempo da prevalência da dignidade da pessoa humana, do ser sobre o ter. Vive-se o tempo da finalidade social assinada à propriedade. Se isso não é efetivo, é ao menos teoricamente previsto na Constituição. Todavia, nem sempre foi assim. Em pleno liberalismo econômico, qualquer abalo ou ameaça ao direito de propriedade era muito mal recebido, alarmando uma sociedade que se estabelecia integralmente sobre este eixo civil.  Tradição, família e propriedade eram a respeitável trindade que se impunha como modelo. A família, tida como célula mãe da sociedade, só fazia sentido na medida em que houvesse a herança, ou seja, a propriedade transmissível em razão da morte. Não é difícil perceber que a indissolubilidade do vínculo matrimonial, por exemplo, com a proibição do divórcio, vincula-se à necessidade de manutenção da integridade do patrimônio, bem mais que a de um suposto afeto que concorresse para com a união do homem e da mulher, naturalmente. Isso tanto é verdade que só a relativização do direito de propriedade pôde propiciar a emergência da nova família pós-moderna, que não se restringe à heterossexualidade, por exemplo. O próprio direito à herança já foi desigual, preterindo-se a prole ilegítima em favor dos filhos da união legalizada. Chegou-se a negar, ao filho havido fora dos sagrados laços do matrimônio, o direito de ter o nome do pai em sua certidão de nascimento. Hoje nem mesmo a filiação se resume à biologia, e a paternidade plena pode ser até meramente sócio afetiva. A família, pois, é tanto mais estável quanto maior proteção é conferida pelo sistema à propriedade privada imobiliária. Dentro de tais parâmetros, o direito de propriedade assume papel determinante no feitio econômico, cultural e legal de uma sociedade.  Nesse contexto, banalizar a desapropriação de bens, principalmente de bens imóveis, foi algo visto com severidade, com desconfiança, como ameaça à própria ordem estabelecida, ainda mais ao tempo em que vigorava o liberalismo econômico, refletido nessa estabilidade que santificava a propriedade, tanto quanto a família tradicional.

Todavia, essa estabilidade toda se viu, de repente, diante de um grande impacto. Assim como outrora a pólvora e a imprensa provocaram revoluções sociais e culturais, a invenção da locomotiva também trouxe não poucas mudanças ao mundo moderno. Ela colocou ao alcance do homem a possibilidade de locomover-se com facilidade, segurança, com menor custo e para mais longe do que até então foi possível a um grande número de indivíduos. O detalhe a considerar, entretanto, a partir de tais colocações, será o significado das sucessivas desapropriações que se fizeram necessárias à criação das ferrovias. Em outras palavras: a invenção ameaçava a propriedade individual. Para demonstrá-lo partiremos da França, nação onde o liberalismo econômico foi expressivo e, de certa forma, tradicional, desde a prática do laissez-faire. Ora, se naquela nação se pôde constatar, rapidamente, a expansão das ferrovias, isso se deu à custa de muitas desapropriações, o que, em terras onde o liberalismo econômico fez carreira, assume significação preponderante, de sorte que, às demais nações coube apenas imitar o legislador francês.

Na França este impacto pode ser facilmente demonstrado. Para tanto, basta observar o mapa da evolução da rede ferroviária naquele país, e ver que, em apenas 30 anos, a multiplicação das ferrovias se deu de modo vertiginoso. Teoricamente, alguns anos antes da invenção da máquina a vapor e de sua aplicação na criação das ferrovias, teria sido impossível imaginar que tantas desapropriações pudessem ter lugar num sistema tradicionalmente vinculado à família e à propriedade. A lógica vigente queria que a lei atuasse como barreira de contenção a qualquer interesse coletivo que porventura se opusesse ao interesse individual do proprietário de terras, inclusive agriculturáveis. Esta lógica, no entanto, foi quebrada, pois não era possível imaginar que uma estrada de ferro pudesse ser concebida de forma a desviar-se de terras individuais, circunscrevendo o desenho de seu trajeto apenas a terras públicas. Isso ocorreu. Houve desapropriações, ainda que com abalo de uma estabilidade secular. Não se pode esquecer, sobretudo, que a ferrovia também trouxe suas compensações aos interesses representados pelo capital, na medida em que reduziu custos com o transporte de mercadorias, estimulando o comércio. Aliás, na França, os primeiros 20 quilômetros de trilhos surgiram em 1827 — linha Andrézieux-Saint-Étienne — e serviam exclusivamente para transporte de carvão realizado com tração animal. Passageiros são admitidos apenas em 1831, mesmo ano em que circulou por lá a primeira locomotiva a valor.

A ilustração, feita por um artista desconhecido, mostra quatro trens da Linha Saint-Étienne-Lyon. A primeira corresponde a um trem de passageiros; a segunda, a um trem de carga, ambos de tração eqüestre. A terceira retrata um trem de passageiros sem tração, e a última um trem de carvão puxado por uma locomotiva anterior a 1835. Em 1843, Rouen é, juntamente com Orleans, a primeira das grandes cidades da província a acolher um trem vindo de Paris. Progressivamente, desenha-se uma rede em estrela que liga a capital às extremidades da França: o Havre, Lyon, Bordeaux, Strasbourg, Brest. A rede ferroviária francesa expande-se: 3.000 km em 1852; 17.000 Km em 1870, 26.000 em 1882. Leis editadas em 1865 e em 1880 estimulam a criação de linhas locais.

Apenas uma verdadeira paixão poderia explicar que, tão rapidamente, fossem processadas tantas desapropriações: de 3.000 Km de linhas férreas para 26.000 em apenas 30 anos. Pode-se, a partir de tais dados, avaliar a extensão do abalo imposto a um número expressivo de proprietários de terras. A propriedade privada sempre despertou desejos, e a satisfação desses desejos sociais é justamente o que concorre para propagá-los. A invenção das estradas de ferro despertou nos homens o desejo de viajar, a febre da locomoção. Ir de Bordeaux a Paris em apenas 8 horas, por exemplo, correspondeu à satisfação de uma aspiração que rapidamente se espalhou pela sociedade. A figura ao lado, da Biblioteca Nacional de França, é de 1897. Tudo isso explica as expropriações com vistas à utilidade pública de bens imóveis, bens que tiveram de sofrer séria desvalia por conta da construção das estradas de ferro que permitiram a movimentação das locomotivas. Eis a tão sagrada respeitabilidade do direito de propriedade violada pela paixão que a ferrovia despertou em uma sociedade onde viajar, até então, significava despender tempo e dinheiro com diligências de tração animal, sujeitas a restrições que se podem muito bem deduzir do próprio contexto, com limitações especialmente do número de viajantes, tempo, conforto, certeza, riscos implicados e custos. O trem representou, dentro desse contexto, a realização de um verdadeiro sonho de democratização das viagens: ampliadas, facilitadas, tornadas mais rápidas, menos onerosas e mais acessíveis a um número consideravelmente maior de pessoas.

Ao legislador, dessa sorte, não restou alternativa senão que a de relativizar o direito de propriedade, editando expropriações rapidamente, e permitindo a ampliação das redes ferroviárias que aproximaram povos e nações, subordinando fins individuais para empregá-los na realização do desejo coletivo. A ferrovia não realizou apenas obra de engenharia, mas implicou ainda na renovação de uma tradicional concepção de direito, sem falar que propiciou uma ação altamente socializadora, influindo na vida social e cultural de homens e nações.

Maristela Bleggi Tomasini

quinta-feira, 21 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


IMPROVISANDO A VELHICE
terça-feira, 19 de junho de 2012
A dor nas costas, incômoda e insistente, leva você à farmácia. Sua prima, que trabalha lá, vem atendê-lo. Você conversa, explica a dor, pede o remédio. Comenta que isso é um sinal de que está ficando velho. Ela, que é jovem, sorri e lhe diz, muito simplesmente:— Como ficando? Você já é velho, ora! Não é só com você. Comigo também acontece. Parece não ser com a gente, mas é, assim como a dor nas costas, o cansaço, as escadas, a bolsa que pesa cada vez mais.


A dor nas costas, incômoda e insistente, leva você à farmácia. Sua prima, que trabalha lá, vem atendê-lo. Você conversa, explica a dor, pede o remédio. Comenta que isso é um sinal de que está ficando velho. Ela, que é jovem, sorri e lhe diz, muito simplesmente:— Comoficando? Você já é velho, ora! Não é só com você. Comigo também acontece. Parece não ser com a gente, mas é, assim como a dor nas costas, o cansaço, as escadas, a bolsa que pesa cada vez mais. É o espelho que insiste em mostrar que o tal creme caríssimo não adiantou nada.
 “Não vou acumular experiências nem pré-formatar o mundo. É excesso de bagagem. Vou gastar tudo o que tenho até o fim, despender todas as palavras que tiver.”
É o espelho que insiste em mostrar que o tal creme caríssimo não adiantou nada. Quando não é nosso olhar, é o olhar dos outros. É ainda o acostumar-se a ser visto simplesmente como velho. —Como assim, velho? Eu? — Sim, é com a gente.Não adianta olhar para o lado. Não há mais ninguém ali com quem se possa compartilhar o efeito dessas observações repletas de desconcertante sinceridade. Lembro de mim, encantada com uma peça de roupa à venda numa loja de departamentos. A vendedora me olhou do alto de sua juventude e perguntou, parecendo intrigada:
 — É para a senhora?
— Sem dúvida, seria. Mas, pensando bem, acho que...
Estou certa de que temos coisa pior para lembrar. Não é melhor esquecer? Não, não é. Devemos nos lembrar de nós mesmos quando éramos jovens. Quando pensávamos que juventude era ter menos de vinte. Sim, senhor! Adulto é nos vinte. Trinta é coroa. Quarenta? Meia idade. Que dizer dos 50? Cinquenta é meio século ora!
Crueldade escrever coisas assim? Não. Somos velozmente desapropriados pelo tempo de uma série de coisas. É bem difícil conformar-se a essas perdas. Você vai dizer que temos sabedoria, experiência, histórias para contar. Fala sério! O Google tem muito mais respostas. É mais sábio que qualquer um de nós. Experiência? Ah! Sim. Costumamos fazer de conta que essa tal experiência é tudo, mas creio que nem mesmo de sexo a gente entende bem atualmente. É verdade que sabemos lidar com diversas coisas, especialmente quando se trata de pôr sucatas para funcionar. Aliás, é lindo aquele rádio a válvulas que você deixa perto do porta-retratos onde está a minha fotografia. E você entende de carburadores e radiadores também.  Sabemos mexer em computador. Você se lembra do 486? Do Pentiun 100?
Somos romanticamente redundantes quando, empertigados, admitimos as perdas e procuramos compensá-las com a experiência. Bobagem. A lição mais difícil a gente ainda precisa aprender. A pior de todas: aprender a ser velho. Só isso. Vantagem? Ah! De vez em quando acho uma: eu digo que passei dos cinquenta e alguém me mente, dizendo que não parece. Deve ser a safra da Madona e da Barbie.
 “Eu fracassei em muita coisa. A principal foi jamais ter conseguido me tornar uma pessoa focada e objetiva

Trágico é que tenho uma memória que muita gente da minha idade faz questão de não ter. Eu me lembro perfeitamente do que pensava aos vinte e antes dos vinte sobre gente da minha idade e da sua. Tudo bem, quando eles se deixavam ser apenas velhos e ficavam na deles, aproveitando-se da hierarquia natural que resultava da idade. Tinham cabelos brancos, usavam roupas de velhos, pensavam como velhos e, com isso, adquiriam certa autoridade. Eram respeitados e não queriam nada além desse respeito. O problema começava quando desejavam ser um de nós. Não eram! Se chegaram assim à velhice, nunca entenderam bem sequer a própria juventude.


Como era chata aquela mulher que se vestia com a roupa da filha, meu deus! E o sujeito que empregava as nossas gírias, sem ter a menor noção de que ficava ridículo! Pensava estar se comunicando. Tinha, quando muito, nossa indulgência. Você gosta disso? Eu ainda me lembro muito bem do que comentávamos a respeito do Tio Sukita. Ah! Era justo, justíssimo que nós jovens praticássemos, sim, esse mesmo bullying quea sua prima fez com você, e que a vendedora da loja fez comigo. No nosso tempo, não era assim nenhum pecado achar que velho era feio, chato, metido e inconveniente. Não havia o tal estatuto, e ainda não haviam inventado a vitimização.
Será que eu fui uma jovem cruel? Seguramente não menos cruel que a maioria dos que, como eu, nasceu há mais de cinquenta anos atrás. A diferença é que me recuso a fazer de conta que perdas assim podem ser compensadas. Não podem. Salvo se quisermos cultivar a ilusão de que a vida começa aos 40 e que existe a melhor idade. Acho que se eu ouvisse uma frase destas na década de 70 ia morrer de rir. E daí que nós já tivemos vinte? Nossa experiência dos vinte se deu em outro tempo, em outra época, quando vigoravam outros valores que não podem ser simplesmente presentificados sem uma enorme deformação.
Fácil fingir que experiência conta, que velhice tem belezas próprias. Imagina! Ficamos feios, ora! A pele muda de cor, o cabelo fica branco e engrossa, dentes caem ou ficam escuros, a visão diminui, os ouvidos apitam, as carnes amolecem e os ossos se tornam porosos, a gente engorda em algumas partes enquanto outras murcham e viram pelanca. Ah! Lugares que antes era peludos vão ficando carecas, enquanto surgem pelos duros e brancos onde a gente nunca os teve antes. No queixo, por exemplo. As regras escasseiam e depois cessam. A taxa de hormônios despenca. A minha bexiga cai, é verdade; mas a sua próstata aumenta. Não falta muito para que daí resulte aquele cheiro de xixi. Cada inverno se torna mais frio. A conservação ou manutenção do corpo dá uma trabalheira danada. E custa caro. Conseguimos fazer com que algumas partes de nós se conservem com 30, mas isso não acontece com todas as partes. É possível substituir alguma coisa, mas não tudo. E não sei até que ponto é interessante ter peitos de 20, bunda de 40, cara de 30 e pescoço de 50. Fica meio estranho. Como se uma orquestra executasse a mesma música, mas em tempos e tons diferentes.
Sobrou alguma coisa então? Depende. Da minha experiência, pouco e aproveita. Talvez tenha aprendido a escrever. Contudo, mais de cinquenta anos não me demoveram da mania de descobrir a novidade das coisas. Pessoas experientes perdem esta visão, acham que sabem tudo, que viram tudo. Mentira! Nada se repete. Só a gente é a gente mesmo, o tempo todo. O resto é mudança. É todo um mundo a ser gerado através de nossas primeiras impressões. A primeira impressão é tudo. Dizem que você nunca tem uma segunda chance de causar uma primeira impressão. Intuição pura. Uma imensidão caótica de dados que chegam aos sentidos sem passar por nenhum processo, nenhum método, nenhum preparo prévio. Não é um olhar experiente. É espontâneo, grátis, absurdo. É maravilhosamente chocante como foi olhar, pela primeira vez, para uma galinha. Que bicho mais feio! Provar o gosto da terra quando chovia. Ver a parte transparente do ovo ficar branca quando estava sendo frita. Minha avó me ensinando a cozinhar, e eu ali, encantada com o poder do fogo que tornava a clara opaca. Gostava de identificar o cheiro das coisas: da terra molhada, das bonecas novas, dos livros franceses que até hoje lembram melhoral infantil. E nada era igual. Mudava. Alguma coisa sempre era inovadora, mesmo naquelas que eu já conhecia, ou pensava conhecer. Todas essas grandes verdades eu descobri sozinha. Ninguém poderia me ensinar coisas assim. Só porque se é velho não significa que se olhe apenas para trás, e que se faça do passado um memorial de saudade. Eu nunca lhe contei, mas aquele CD que você coloca para tocar em viagens é tão chato! Você não tem saudade daquele tempo. Você tem saudade é de você no tempo. Como se não fôssemos capazes de emoções tão boas quanto aquelas, cujo grande segredo era a novidade. Bem feito! Quem manda olhar para o mundo procurando por coisas conhecidas, repetidas, padronizadas? Quem procura acha. Você só vai encontrar em toda parte a confirmação das suas verdades e, não demora muito, vai começar a vir com aquela do no meu tempo era assim ou assado. Como se não houvesse mais novidade neste mundo! Por que não vemos? Porque nos achamos o máximo, porque teimamos em repetir que somos pessoas experientes, quando o tempo nos torna simplesmente velhos.
 “Você não tem saudade daquele tempo. Você tem saudade é de você no tempo. Como se não fôssemos capazes de emoções tão boas quanto aquelas, cujo grande segredo era a novidade.”
 Ah! Pense naqueles encontros das décadas de formados, das décadas de casado, das décadas disso e daquilo.— Como você está bem! Qual é o segredo? É amor? — Não, querida. É Botox mesmo. — Tem horas que é impossível segurar certa dose maldade. O tal lado maroto da gente. Se não há nenhuma vantagem nisso, vamos tratar de inventar alguma. Não vamos segurar a velhice. Não demora ela vai tomar conta até mesmo daquelas partes nossas que estão mais preservadas.
Eu fracassei em muita coisa. A principal foi jamais ter conseguido me tornar uma pessoa focada e objetiva. Minha completa falta de assertividade me causa até hoje não poucos problemas. Atualmente acho que isso me preservou — não da velhice — mas da segurança tão peculiar às pessoas que sempre souberam definir quem são, de onde vêm e para onde vão. Devo ter passado batido pela tal esfinge que interroga. Ia ter de inventar algo, improvisar, como estou agora improvisando essa coisa chamada velhice. Quero uma só minha, sob medida, única. Nada de cultivar a tal horta das nossas realizações passadas. Eu também plantei batatas por aí. Hoje semeio palavras. Algumas brotam, florescem até, mas isso pouco depende de mim. Vem dos outros, que me leem e que por aí me sabem.
Não vou acumular experiências nem pré-formatar o mundo. É excesso de bagagem. Vou gastar tudo o que tenho até o fim, despender todas as palavras que tiver. Só vive de verdade quem é perdulário com suas emoções, quem não foge aos desgastes. Viver dói muito às vezes, e há feridas que não curam. A cereja do bolojá foi, e o que temos é apenas a rapa do tacho. E até a sua prima da farmácia e a minha vendedora da loja de departamentos sabem disso melhor que a gente.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

quinta-feira, 14 de junho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

A SONSA
terça-feira, 12 de junho de 2012
Vocês sabem identificar uma sonsa? Têm certeza? Não é tão simples como definir aquela que nem fede, nem cheira. Isso é só o começo. Vocês só se darão conta da existência dela depois de a coisa estar feita. Mas aí é tarde demais para desgrudá-la. Vocês estão achando engraçado, é? Ora, quero mais é que os meus leitores riam comigo. É divertido observar o modo de agir desse tipo de mulher, que de medíocre não tem nada, ainda que, no caso da sonsa que atualmente anda rondando o meu principado...

Hoje eu quero compartilhar com vocês uma dessas lições que a vida ensina, quando ela é bem malvada com a gente. Sabe aquelas situações de onde ninguém sai mocho? Pois é. Bem, na verdade, isso aqui é um desabafo. Posso usar um pouquinho o ombro dos meus leitores? É puro despeito meu, eu sei. Vaidade ferida. Mas que ninguém diga que eu não tenho bom humor!
Simular superioridade e classe na vida real é de matar. E quando a gente lida com mulher sonsa então! Ora, a vontade que dá é de armar barraco, mas isso sai caro e, no meu caso, eu acabaria levando a pior. Um dia ainda consigo imitar a sonsa em matéria de dissimulação. Juro que farei tudo para aprender a engolir sapos sem reclamar. Nos últimos tempos, aliás, tenho me superado nisso, mas com um esforço sobre-humano e muitas crises de enxaqueca.
Na literatura, entretanto, somos todos livres, daí eu me permitir ao menos escrever, uma vez que ela, a sonsa, tem todo o direito de existir, de ser quem é, e de fazer o que faz. Não que ela se garanta. Não precisa! Tem quem faça isso por ela. Eu já preciso me esforçar, ao menos para ganhar a simpatia de algum leitor ou leitora que já tenha sofrido a angústia de ver-se às voltas com uma sonsa.Está fechando o cerco com muita esperteza. Mais dia, menos dia, vai aprontar, sem deixar de mostrar-se recatada e cheia de dedos. Toda sonsa é escrupulosa.
Seja como for, acho importante colocar para vocês como age esse estranho tipo de mulher que a gente, à primeira vista, adjetiva de sonsa.  De cara, ela simplesmente não fede nem cheira. Não se faz notar. Pouco se percebe que ela existe. Ainda assim, mulher sonsa é um perigo. Acreditem.
A gente se cuida muito das sirigaitas, das lambisgoias, das cretinas, das piranhas, das cachorras, das galinhas, das ex, das mulheres fatais, das gostosonas e das gostosinhas, mas a gente se esquece da sonsa, justamente da vaca de presépio! E quando se percebe quem na verdade ela é... Tarde demais. Já ganhou terreno e simplesmente não se pode desencaixá-la das brechas nas quais criou raízes, bem ao lado dele. Coisa de mulher. Ah! Tudo coisa de mulher. Ciúme? Claro que sim. Mas sonsa está lá!
Vocês sabem identificar uma sonsa? Têm certeza? Não é tão simples como definir aquela que nem fede, nem cheira. Isso é só o começo. Vocês só se darão conta da existência dela depois de a coisa estar feita. Mas aí é tarde demais para desgrudá-la. Vocês estão achando engraçado, é? Ora, quero mais é que os meus leitores riam comigo. É divertido observar o modo de agir desse tipo de mulher, que de medíocre não tem nada, ainda que, no caso da sonsa que atualmente anda rondando o meu principado, confessadamente, eu deva admitir que menosprezei seu poder de fogo. Bem feito para mim! É que a sonsa tem uma sedução bastante sutil, é verdade, mas muito mais eficiente do que se imagina.
Quando a gente percebe o perigo, ela já alistou a seu favor quem queria. Pior: nós é que nos tornamos alvo de crítica, por termos ousado nos colocar contra a coitada da fulana, da qual teimamos em não reconhecer os méritos mais louváveis. Vocês sabem quais são os méritos da sonsa? Nada de bunda ou rebolado. São qualidades inefáveis, que vão desde uma penetrante inteligência até um espírito de sacrifício comparável ao de Madre Teresa deCalcutá. E ela é simpática, qualidade que a torna até que bem bonitinha, olhando assim. Pronto. Fiat merda. Ela não precisou de bunda, nem de peitos, nem de rebolado. Passamos por despeitadas. É quando a gente percebe que se ferrou. Não demora muito, vamos de Cinderela a gata borralheira, com a sonsa ainda nos ajudando a limpar o borralho. Ela toma nossa defesa, alega que não fizemos por mal, e ainda nos elogia com imensa prodigalidade.
 A sonsa é um perigo, acreditem. Como é do tipo que ninguém nota, precisa apelar. Mas não apela para o arsenal de costume, esse que qualquer mulher vulgarmente sabe empregar e não raro muito bem.
Cínica? Ela? Que nada! Cínica sou eu. Ela é simplesmente superior. Toda sonsa é dotada de uma superioridade de espírito sem precedentes. Ela nunca se rebaixa às instâncias do desaforo. Jamais armaria um barraco! Ela teria mesmo a pachorra de sorrir, compreensiva, da nossa indignação. Vai articular quem mais nos interessa para tomar a defesa dela, e ficamos simplesmente amargando o ridículo, enquanto a sonsa faz o diagnóstico de nossa falta de equilíbrio e ainda pergunta no que pode ajudar.
Ah! Vocês sabem do que estou falando? Devem saber. Se leram tudo isso até aqui, é porque estão, ao menos vocês, ― quem me dera! ― solidários com a minha bem humorada indignação. Felizmente, vocês não conhecem a sonsa da qual eu estou falando! Caso a conhecessem, não sei não, se também não iam fazer parte da torcida dela. Nossa! Daria para lotar um estádio de futebol só com gente que lhe deve favores. Fosse santa, teria uma capelinha lotada de ex-votos. Ora, direis! Ela é simplesmente demais! Uma mulher perfeita, admirável, inteligente, sagaz. Dá para presumir o resto? Sei que sim.
A sonsa é um perigo, acreditem. Como é do tipo que ninguém nota, precisa apelar. Mas não apela para o arsenal de costume, esse que qualquer mulher vulgarmente sabe empregar e não raro muito bem. Não. Nada disso. Não abaixa a calcinha nem inclina o decote para se fazer ver. Também não rebola nem quando tem bunda. Éesperta demais para cair nessa. Ela não deseja ser notada por alguma coisa que chame a atenção, salvo as boas ações e o espírito de sacrifício. Aparentemente insípida e inexpressiva, ela é queridinha, e fica sempre à vontade na sombra.  A sonsa é útil. Ah! Vocês não imaginam do que a sonsa é capaz em matéria de utilidade! É prestativa. Está sempre disponível 24 horas por dia. É paciente, sabe ouvir, chega quando a gente mais precisa, entra silenciosa por uma porta e sai quieta pela outra. É do tipo que carrega penicos sem reclamar nem torcer nariz, dá injeção, lava e veste defunto, providencia enterros e exumações, guarda segredos como um túmulo, lustra sapatos, trata de frieiras, trafica informações, ensina simpatias infalíveis, alerta contra tempestades, cuida de criancinhas, de velhos, doentes, puxa reza em novenas, leva o lixo para a rua, é confiável, confidente, penitente, compreensiva, tolerante, religiosa até a ponta das unhas, caridosa, enfim, discreta, e bem depressa sabe como se tornar absolutamente indispensável. Adivinha para quem? Para ele, é claro!
Fosse santa, teria uma capelinha lotada de ex-votos. Ora, direis! Ela é simplesmente demais! Uma mulher perfeita, admirável, inteligente, sagaz.
Manipula quem bem entende e monta um teatro de marionetes, puxando os fios e dirigindo o espetáculo, apenas jogando com interesses e informações. A gente só olha, quando ele cai na jogada da sonsa, exatamente como aquele clássico patinho do ditado. Baba atrás dela! Ela tem torcida, sabem? Nunca perde a calma, a serenidade. Nunca se lamenta. Sonsa também não surta, mas quando a gente surta por causa dela, é capaz de trazer a corda para nos atar, evidentemente, para o nosso bem, para que não nos machuquemos. Como duvidar da retidão de seu caráter e da pureza de suas intenções?
Em pouco tempo, a gente começa a ouvir uma ladainha toda feita de elogios à pessoa da sonsa. Bom, ela já está por perto, já faz parte da vida dele e, por aí, da nossa. Conhece nossas fraquezas, nossos limites, nossas vulnerabilidades e, então, ela começa a jogar. A sonsa, lentamente, cresce e se faz ver. Basta desconfiar que há mortos e feridos, e lá está ela, perfeita, chorando no velório, consolando os aflitos. Cata latas, junta caquinhos, adora restaurar e consertar corações feridos. Faz companhia aos solitários também, com eles trocando aqueles olhares compridos como o dos cães que pretendem dar provas da mais firme solidariedade. Torna-se a amiga consoladora, cúmplice das angústias, ouvidora das queixas, ainda daquelas feitas em silêncio. E como fala bem da gente! Só elogia.
 E elas existem. Tornam-se fortes, porque, infelizmente, há pessoas que têm a incompreensível tendência a se deixarem levar por um tipo de mulher que simplesmente transcende a falsidade.
Essa sonsa! Ela tem uma reputação ilibada, é politicamente correta e, fora eu, duvido que mais alguém cometa a loucura de questionar seus interesses. Só que quer comer pelas beiras, e não tem pressa de chegar até a azeitona da minha empada. Está fechando o cerco com muita esperteza. Mais dia, menos dia, vai aprontar, sem deixar de mostrar-se recatada e cheia de dedos. Toda sonsa é escrupulosa. Sei não. Bem feito para mim! Vou levar até puxão de orelha, e mais uma vez precisar lavar a boca com sabão por ter tido a ousadia, o desplante, a estupidez de ter insinuado que essa sonsa é bem mais sonsa do que parece. Que injustiça! Eis a inocência aviltada pela maldade de um coração insensível! Afinal, quem eu penso que sou para falar mal da pobre moça que só está fazendo o seu trabalho?! Ele acredita nela... Vocês viram aonde a coisa chegou?
Exagerei? Claro que não! Tomara fosse! É que não tenho a tal singularidade das chamadas mulheres superiores. Nem quero! Não tenho nenhum problema em admitir que me sinto muito incomodada com a presença dessa sonsa na minha vida, aliás, na vida dele! É um grande estrago no meu querido ego. Além disso, essa coisa de esconder o lado escuro da gente nunca foi comigo. Pode não ser elegante falar mal de alguém que teoricamente nunca nos fez mal algum, mas existe uma coisa chamada intuição. E quando o meu santo não bate, podem escrever: daí vem bomba.
 Há personalidades que fazem sentir sua presença de uma maneira indefinível, mas com exatidão absoluta. E elas existem. Tornam-se fortes, porque, infelizmente, há pessoas que têm a incompreensível tendência a se deixarem levar por um tipo de mulher que simplesmente transcende a falsidade.  Homens em especial apresentam mais essa fraqueza. Coitados! A gente não pode esquecer de que eles têm duas cabeças, ora. Passam a vida reféns, ora das vacas sagradas, ora das vacas de presépio. Antes as cobras que, pelo menos, não dissimulam sua natureza maldita. Elas sabem a hora de se recolherem ao interior de suas próprias tocas. Seja como for, eu avisei. Dei nome aos bois. E depois que as minhas previsões se mostrarem muito bem fundamentadas, ninguém diga que eu não avisei. E que não reclamem quando eu retrucar com o meu clássico: eu não disse?
Autor: Maristela Bleggi Tomasini

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Os Narradores de Javé

REVISTA VIDA BRASIL
OS NARRADORES DE JAVÉ
segunda-feira, 4 de junho de 2012
Ver filmes ou ler livros por obrigação é algo a que sempre resisto interiormente, mas tinha de assistir a OS NARRADORES DE JAVÉ e fiz isso em casa, na pequena tela de meu notebook, muito a contragosto, sentada na cozinha e tomando café. Não esperava gostar tanto, mas gostei. Brasileiro, de 2003, direção de Eliane Caffé, o filme deve sua realização a leis de incentivo à Cultura, e trata da história de uma pequena cidade que vai ser inundada devido à construção de uma represa.
Tudo começa

quando um jovem perde a
barca e acaba

sendo obrigado a esperar pela próxima em um bar, junto aos habitantes do lugarejo. Tem início uma conversa, e um dos presentes começa a falar sobre a tragédia da qual ele foi testemunha, tragédia que aconteceu no Vale de Javé. Os fatos são narrados a partir da surpresa causada pela notícia avassaladora da iminente inundação. De parte dos responsáveis pela construção da represa, não houve preocupação em notificar e indenizar os habitantes locais, gente iletrada, que sequer tinha registro de suas posses. Javé era sem qualquer significado urbano ou histórico. As águas viriam, inexoravelmente, e a cidadezinha seria submersa. As cenas subsequentes mostram o povo reunido na igreja, sem saber o que fazer. ― Os homens disseram que só não inundam quando tem coisa importante, ou seja, somente no caso de a cidade possuir patrimônio de reconhecido valor histórico, haveria chance de escapar ao seu trágico destino.
Javé não tinha coisa alguma que pudesse ser poupada em função desse valor histórico e científico. — O que queria dizer científico? — perguntavam-se os moradores. Só o que tinham de seu era sua história. Todos compartilhavam dela oralmente.  Começava com a tomada de posse do lugar. Muito embora não dispusessem de registro, as fronteiras de Javé tiveram suas divisas cantadas pelos que lá chegaram pela primeira vez. Este cantar de divisas acontecia quando alguém, deparando-se com uma terra desocupada, posicionava-se e, em voz alta, definia as fronteiras da porção que lhe interessava ocupar. A posse, todavia, só se dava na medida em que a terra fosse cultivada pelo posseiro. Assim, ao menos teoricamente, não havia lugar para a especulação imobiliária. — Se Javé tem algum valor, é a sua história, lá das origens, que a gente vive contando. — A população analfabeta não dispunha de qualquer recurso documental onde pudesse registrar formalmente suas posses. Mesmo assim, havia disputa pelas heranças que se transmitiam, da mesma forma que tradições, hábitos, costumes e a história local, da qual dava testemunho o sino da igreja, objeto trazido ao vale pelos pioneiros. A população era composta por analfabetos, com exceção de um único habitante: o carteiro.
“O mítico líder, que lembra Dom Quixote, nunca desmontava de seu cavalo, porque assim estava sempre pronto para a guerra.”
Curiosamente, justamente esse carteiro fora expulso da cidade, quando a população, chocada, descobriu que ele vinha artificialmente aumentado o volume da correspondência, para evitar o fechamento da agência do correio. Uma estratégia para manter o emprego. Antônio Biá, — personagem interpretado por José Dumont — escreveu diversas cartas anônimas, cujo conteúdo difamatório recaía sobre quase toda a população da pequena cidade. Descoberta a fraude, pois história dos outros em boca de gente corre mais rápido que o vento, a população excluiu seu único habitante alfabetizado.  Agora, por ironia, era justamente ele o único capaz de documentar os fatos cientificamente, ou seja, por escrito em livro. O jeito foi buscar Antônio, reintegrá-lo à cidade, e praticamente obrigá-lo — até por dever de consciência — a escrever a história de Javé.
O lápis obedece à mão e ao pensamento da gente. Assim começa a coleta de dados pelo escriba local. Antônio se descobre dotado do poder discricionário de ouvir e de registrar as falas e os discursos de seus concidadãos. Surgem então diferentes versões quanto ao primitivo líder, que teria guiado os fundadores de Javé, supostamente expulsos de seu lugar de origem, ao perderem, para os portugueses, uma guerra pelo ouro que haveria nas terras que habitavam. Fugitivos por covardia, ou batendo em retirada, discutidas ambas as versões, ― nossa gente era a sobra de uma guerra perdida ― vagavam trazendo consigo um sino — quem sabe pilhado — objeto de memória que simbolizava suas raízes. O mítico líder, que lembra Dom Quixote, nunca desmontava de seu cavalo, porque assim estava sempre pronto para a guerra. Diante da narrativa que descrevia o herói pilhando gado para alimentar seu grupo, a versão tem seus contornos discutidos pelo escrivão. Ele não quer apenas registrar as histórias que ouve, ele deseja floreá-las, como explica, justificando-se, pois o acontecido tem que ser melhorado.
Percebe-se nisso a emergência de um verdadeiro território histórico onde se processa uma disputa de versões. O filme mostra o poder daquele que pensa a história, selecionando dados e fatos conforme sua subjetividade, e mesmo conforme seus interesses pessoais. Antônio, tornado escrivão oficial e depositário da última e única esperança de salvação da cidade, recebe diversas propostas de todos os que desejam ver suas palavras e as histórias de suas vidas tornadas verdades oficiais.
“O personagem feminino que disputa o lugar do herói é apresentado de duas maneiras. Como heroína em uma; como louca em outra: cachorra louca, a delirar pelo Vale de Javé”
Muitos moradores hesitavam em falar, em contar suas vidas. Foi o caso da mulher difamada em cartas. Ela detesta Antônio e se recusa a falar com ele. Este, diante da negativa, responde: ― Se a senhora não tem nada pra dizer que lhe ponha na grande história do vale de Javé, adeus...― Com tais palavras, ele consegue obter dela uma nova versão que desconstrói o heroísmo do primitivo líder. Vem à luz a atuação de uma liderança feminina que teria existido na origem, Maria Dina, de quem descendia a moradora, a quem acusam de inventar essa nova versão para favorecer seus parentes.
Em guerra, partidários das duas versões disputam qual delas mereceria registro: uma envolvendo o líder Laércio ou Alécio numa aura de glorioso heroísmo; outra, fazendo-o morrer de forma humilhante, acometido de forte diarreia. Segundo esta última versão, a descoberta do lugar aonde se ergueu Javé devia-se a Maria Dina, heroína para alguns, e cachorra louca para outros. A história é de vocês, mas a escrita é minha— dizia Antônio. Reunidos, discutiam onde estaria a verdade. Um personagem, todavia, intervém e sugere que as duas versões sejam registradas, na medida em que uma dá sentido à outra.
O personagem feminino que disputa o lugar do herói é apresentado de duas maneiras. Como heroína em uma; como louca em outra: cachorra louca, a delirar pelo Vale de Javé. A louca, que não diz coisa com coisa, aparece como espécie de guia. Seu delírio é um discurso proposto à interpretação. A loucura é ilustrada também com Cirilo, o eremita, que não era visto na cidade há anos, mas que retorna, nas cenas finais, para vaticinar dramaticamente a chegada das águas. Em Javé a loucura ainda possui conteúdos significativos. O louco — que não é isolado nem medicado — integra-se ao contexto dos demais. Mesmo blindado à lógica, ele desempenha papel de condutor. O discurso do louco é profético.
“Ao ser descoberto, no entanto, e flagrado outra vez como traidor da confiança dos demais, algo nele desperta e o faz perceber a própria falha.”
Antônio cresce em importância diante dos seus. Sua moradia é uma construção muito simples, com as paredes repletas de inscrições. Acima da porta de entrada, vê-se o letreiro ostensivo: proibida a entrada de analfabetos. O saber engrandecia-o diante dos outros, hipertrofiava a sua vaidade. Rapidamente guindado da condição de excluído à de escriba, ele lidava com isso como podia. Fazia valer a autoridade com que se viu repentinamente dotado. Visitando os habitantes, entrava nas casas e ouvia histórias, da mesma forma como tinha contato com as poucas fotografias que existiam, todas cuidadosamente guardadas como valiosos tesouros, uma vez que desfrutavam do status de únicas provas documentais de certos fatos.
Assim iam sendo recolhidas as narrativas locais, a biografia de vivos e mortos, os traumas, as mágoas, as alegrias, os medos, as mortes, a miséria e a glória de cada um. A população negra que habitava um bairro isolado ainda cultivava sua língua original. Também eles devem contar sua história, a mesma história, porém em versão diferente. Nela o líder, sempre montado a cavalo, é identificado com o deus Ogum, pronto à guerra e às conquistas. Aos poucos é possível fazer convergir todas as diferentes narrativas a uma unicidade que vai tomando sentido, na medida em que se aproxima a chegada das águas. A divindade Oxum aparece em sonhos para Antônio, e confere à narrativa uma dimensão simbólica e arquetípica. Águas representam uma força da natureza, elemento feminino que assume significado de vida e de morte.
A grande esperança do povo do Vale de Javé estava toda ela depositada no livro, na escrita de sua história, no feito científico capaz de impor-se à inundação, resgatando a cidade e seus habitantes da ameaça de aniquilamento.
Contudo, Antônio nada escreveu. Descoberto outra vez como tratante, ele é pressionado pela população. É humilhado, exposto a agressões e novamente expulso da presença de seus pares. Demonstrando ironia, ele afronta seus perseguidores: ― Vocês acham que escrever adianta? Os homens não vão parar o progresso... Javé não passa de um buraco perdido no oco do mundo.
As águas chegam. Inexoráveis. Muitos são os que ficam até o fim: isso era como estar se revirando dentro da própria sepultura. Observamos que Antônio, se e enquanto se manteve distante dos seus, ouvindo suas histórias como alheias à sua própria história, não conseguia levar a termo sua tarefa. Ele não escrevia nada. Seguia o rumo do lápis sobre o papel, desenhando círculos, mas sem dar sentido ao que ouvia, embriagado com a importância de sua missão. Ao ser descoberto, no entanto, e flagrado outra vez como traidor da confiança dos demais, algo nele desperta e o faz perceber a própria falha. Sua descrença e indiferença o mantiveram alheio à história que, afinal, era a dele também. Ao ter sua sensibilidade despertada, contudo, Antônio humildemente volta a procurar os seus. Eram agora os últimos a deixar o lugar, sem saber ainda para onde iriam, levando consigo apenas o sino. Antônio Biá vai então protagonizar seu papel: com o livro, encerra uma parte da história e propõe-se a dar início a uma segunda parte. Trata-se assim de um autêntico recomeço, onde não mais se encontram presentes os elementos míticos e simbólicos relevantes na primeira parte, não mais necessários a partir de então. É nesse recomeço que ocorre a designação do sentido da história, qual seja, o sentimento de pertinência e de reconhecimento recíproco que cada um outorga ao seu próximo, reforçando identidade e solidariedade.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini