sexta-feira, 13 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

O DIA DA MORTE DE REBECA 
quarta-feira, 18 de julho de 2012
Rebeca ia morrer. Ela ainda não sabia, mas não tinha mais que algumas horas de vida. Naquele instante pensava apenas em pegar suas coisas e deixar o apartamento de Klaus o mais rápido possível, antes que ele chegasse e a encontrasse naquele estado. Rebeca sofria. Era orgulhosa, porém, e silenciava.Sua fuga era o diário, onde consumia páginas e mais paginas com a letra regular, entremeando o texto com desenhos. Sentia a presença da outra como um espectro, reinando do exílio.

Rainha deposta, se não perde a cabeça, permanece coroada.
Até que alguém lhe mostrou a foto: Klaus ao lado da outra, muito alta, decotada, segurando um ramalhete de rosas vermelhas, como se houvesse sido homenageada. Aquilo feriu Rebeca profundamente. Ela decidiu que era o fim. Deixou a foto sob o travesseiro dele e continuou a buscar por suas coisas.
Lembrava-se bem de como tudo começara. De como se deixara encantar por Klaus, por sua persistência, por seus galanteios, ferozmente empenhado em conquistá-la. E quando Rebeca estava mais fragilizada, foi nele que encontrou a serenidade que desconhecia. Percebeu então que era capaz de uma ternura sem limites por aquela estranha criatura que a fizera repensar sua vida, esta mesma vida da qual se sentia por vezes tão cansada e apática. Com ele, dava-se ao luxo de deixar-se levar por suas inconsequências e impulsos. Entregava-se aos sentidos e percebia o mundo com intensidade. Com ele, podia virar criança, fazer-se irresponsável, atirar-se ao ato de gostar por gostar. Podia pisar em falso e afrontar o abismo, pois sabia que ele não a deixaria jamais sofrer os efeitos dessa queda. Podia desejar com aquele desejo primário que descobriu que ocultava em alguma instância misteriosa de sua alma ou de seu útero. Diante dele, levava seus pensamentos e desejos ao absurdo. Ele a escutava, ora interessado, ora encantado em alguma coisa que não era exatamente nem sua voz, nem suas palavras, mas ela mesma. Klaus adivinhava cada pequeno desejo seu, que satisfazia antes mesmo que ela pensasse em mencioná-lo.
Rebeca, que já cansara de reinventar-se, e que poucos encantos encontrava na tarefa de existir, não tinha motivo algum para impedir-se de viver o que ele lhe propunha. E vivia isso minuto a minuto, deixando-se impregnar pelo intenso misticismo dele. Eram um par insólito. Ela, pequena, frágil, delicada de formas, pulsos muito finos, mãos e péspequenos; ele, imenso, grotesco em sua obesidade, mãos e pés enormes. Mais forte do que gordo, era de uma carnadura sólida. Coberto de pelos, lembrava, à meia-luz, uma figura mítica, sensual, capaz de um erotismo inaudito, que deliciava Rebeca, tornando-a cada vez mais atraída por essas instâncias ocultas de Klaus, das quais se tornara extremamente possessiva e ciumenta. Descobriu que o desejava como seu, e agia como proprietária, como dona absoluta daquele corpo sobre o qual imperava. Isso a fez desejar ser o que ele queria que ela fosse, tornando-se inteiramente dele, carne de sua carne e osso de seus ossos.
Fizeram-se espírito e matéria, num estranho paradigma alquímico. Ela deixou de ser quem era para entregar-se à experiência de tornar-se todo o mundo dele. A brutal diferença física que existia entre ambos fazia deles uma espécie nova de par, onde masculino e feminino contrapunham-se com meridiana clareza. Ele a tratava como sua Grande Obra. O misticismo de Klaus não permitia que sua paixão tivesse lugar num cenário restrito ao meramente existencial. Era uma presença sempre atenta, intensa, pulsante, que impressionava Rebeca profundamente. Ele era sagaz e determinado, mas dava lugar à fantasia e à imaginação. De Rebeca, desejava a alma e, pressentindo que ela, agnóstica, se recusava a ter uma, sentia-se cada vez mais instigado a buscar suas instâncias mais ocultas e obscuras. Atraídos mais pelas diferenças do que por alguma eventual identidade, viram-se vítimas do que Rebeca pensava ser, afinal, aquilo a que todos chamavam paixão.  Não hesitou em mudar-se para o apartamento de Klaus, levando algumas de suas coisas para lá, na maioria, livros. Fez uma exigência, todavia. Não queria saber de Derlene por perto. Foi clara:
 — Não quero vê-la cruzar o meu caminho ― dissera.         ― Rebeca, eu quero você. Não preciso de outras mulheres.

Preciso de uma que 
contenha todas as outras, mas que não se assemelhe a nenhuma delas. E esta, minha cara, é você. Inclusiva e excludente, santa e prostituta, iniciada e profana. Eu prometo viver para você, Rebeca. Sempre quis isso, sempre quis dar um sentido mágico à minha existência, e homem algum existe sem o seu oposto. A natureza repudia os solitários. O simbólico é a verdade intuída em sua essência mais profunda. Prometo-lhe que não haverá nenhuma outra mulher além de você.
 ― Não minta para mim, Klaus. Nunca ― disse-lhe Rebeca.
        
― A verdade tem muitas faces, para que possa ser o que é.

Se formos capazes de 
olhar apenas um para o outro, nada será capaz de romper nossa unidade. Olhe sempre para mim, porque você não será capaz de me reconhecer através das máscaras que emprego para lidar com o mundo. Para você, Rebeca, eu prometo ser quem sou.
 ― Você é poético. Em certos momentos, me encanta.
             Em outros, me assusta 
― disse ela.
 Eram diferentes, sim, de naturezas singularmente opostas. Juntos, contudo, assimilavam-se, formando um casal olhado com espanto e desdém. De algum modo misterioso, ela sabia quem ele era, conseguia penetrar-lhe a natureza bem além da fachada de bizarria mística, e encontrava aí um homem capaz de intensas paixões.
Por algum tempo, permaneceram absorvidos pelo que lhes sucedeu na noite em que Rebeca foi para cama com ele, descobrindo outro homem dentro de Klaus. Teve, contudo, de enfrentar também a descoberta de outra Rebeca dentro dela. Uma mulher lúbrica, inquieta, tão desejosa quanto desejada. Rompeu-se uma barreira e, para surpresa de ambos, eram reféns de algo que os empurrava um para o outro, como se fosse uma terceira vontade, irresistível. Rebeca não queria admitir, a princípio, mas ele a atraía mais que qualquer outro homem que conhecera.
Até que as coisas começaram a mudar. Não se via mais refletida nos olhos dele, como antes. Foi aos poucos, lentamente. E agora...
Há lugares que não nos pertencem, assim como há histórias que não são a nossa. É preciso retirar-se, enfiar-se por dentro da pele, secar os olhos e gelar o sangue. Não ia disputar um homem a tapas, embora pudesse arrancar com as unhas os olhos melosos e lacrimejantes da outra, seus cabelos ressecados e vermelhos, apagando daquele rosto macilento o ar de beatitude cristã que simulava quando queria. Ele não se desligaria daquela mulher nem que quisesse. E ele sequer queria.
 — Chega! ― disse ela em voz alta.
 Hora do adeus. Ia embora dali, para sempre, agora mesmo. Pegou seus livros, o diário, as poucas roupas que trouxera. Arrumou tudo às pressas numa sacola. Lembrou-se então de seus objetos pessoais no banheiro do quarto do casal. Lembrou-se dos banhos quentes que ele lhe dava, tratando-a com delicadeza e carinho, chamando-a de sua femeazinha, protestando quando não se secava direito. Corria atrás dela com toalhas quentes e levava-a para cama, toda enrolada, protegendo-a de um frio imaginário. Mimava-a como uma criança, enquanto sorria e brincava que, descabelada, sem maquilagem e com os cabelos molhados, ela era muito mais Rebeca.

― Talvez faça isso também com aquela outra
― pensou, magoada. Os objetos eram-lhe todos familiares.

Tocou no sabonete e na colônia de rosas Gallet, no batom rosado que deixava ali.
Sentiu raiva então. Um ciúme profundo, e muita raiva. Teve vontade de riscar o espelho ao olhar-se. Estava lívida, os lábios contraídos, com olheiras marcadas, profundas e escuras. Não queria chorar mais, não queria. Pegou o batom e escreveu no espelho, com letras enormes um palavrão e uma citação obscena. Depois, consternada e envergonhada, esmurrou com toda força o próprio reflexo, como que punindo a si mesma, lambuzando as mãos de batom e chorando como chorava quando era criança. Soluçava, sem conseguir respirar direito, sacudida por espasmos. Estava patética. O nariz corria, e depressa ela procurou consolar-se, apagando com toda força, cada vez mais, o palavrão e as obscenidades. Cortou-se assim no pesado espelho trincado que se quebrou em parte, despencando de um lado.
sangue foi aparecendo, abundante, brotando dos cortes nos braços e pulsos de Rebeca. Ela lambeu-se. Sentiu o gosto de ferro e o ponto do sal. Olhava-se sangrar, como que absorta na cor vermelha, intensa, que sabia a paixão. Abriu as torneiras e depressa lavou o rosto e os braços que não paravam de sangrar. Chorava. Lavou mais, cada vez mais, até sentir o bem que a água lhe fazia. Pensou então em todos os líquidos que dissolvem todas as coisas. Pensou em alquimia, em senhas, em sinas, em magias, em tudo aquilo em que ela nunca acreditara. Pensou no mar, em todas as águas do mundo, lembrou-se das praias, de como era bom deixar-se levar pela correnteza. Flutuava em pensamento, e daí quis chorar tudo aquilo até o fim. Ritualizou todas as águas que conhecia, quase quebrando as torneiras a custa de abri-las cada vez mais, enquanto procurava fazer-se sarar da dor e dos cortes. Sangrou até o fim, misturando o seu sangue na água. Sangrou até a última gota de seu orgulho, e voltou a olhar-se no espelho.  Sui caederes. Só viu a parede e a porta que ficavam atrás dela, do outro lado de onde estivera seu corpo. Não entendeu. Olhou novamente. Ela não estava mais lá nem em parte alguma. Só havia o espelho quebrado pela metade. De Rebeca restou apenas a dor.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini