sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ser Lembrado

Acontece com quem é lembrado. Hoje, entre outras coisas belas, ganhei de presente este lindo cartão que reproduz uma aquarela de Dürer, de 1508. Ser lembrado tem isso de bom: é um exercício de memória que implica numa demonstração de afetividade, numa presentificação de quem está ausente para que, ao depois, compartilhe conosco impressões vividas e sentidas. Vemos coisas, lembramos delas, e essa memória se socializa, contagiante... Agora a coruja enfeita o blog, compartilhada ela também, por sua vez. Obrigada, Nádia! Adorei!

Cartas


Minueto de uma Noite de Chuva
Chove prata. Na sala, onde escrevo à luz de ouro
do store, há pelo ambiente um esgarçar de sedas...
e, no ar, cuido sentir, esvoaçando, ledas,
as asas de cetim de encantado besouro:
São versos que componho ao céu do teu olhar,
à sombra de teu vulto indolente, de pluma,
à luz de teu sorrir, feito todo de espuma,
ao som de tua voz cristalina, de luar.
São versos em que falo em minha dor fremente,
em tudo o que vivi, e que amei e perdi,
em tudo o que passou, em tudo o que sofri,
numa ronda sem fim, longa e perdidamente...
.......................................................................
Enquanto as horas vão caindo, silenciosas...
e eu penso em ti, em minha pobre alma dorida,
em nosso triste amor, em minha infeliz vida...
E as finas gotas de chuva rolam, chorosas...
27 de julho de 23.

Poesia de Francisco para Maria remetida em agosto de 1923

domingo, 26 de agosto de 2012

Significados e Atribuições

"Olímpico de Jesus trabalhava de operário numa metalúrgica e ela nem notou que ele não se chamava de operário e sim de metalúrgico. Macabéa ficava contente com a posição social dele porque também tinha orgulho de ser datilógrafa, embora ganhasse menos que o salário mínimo. Mas ela e Olímpico eram alguém no mundo. Metalúrgico e datilógrafa formavam um casal de classe."
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, 1a. ed., p.  45.

domingo, 19 de agosto de 2012

Simplesmente


REVISTA VIDA BRASIL

MARCOS SILAS, O NADA
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
Outro... — pensou. Alguém realmente importante, seguro de si, alguém que pudesse ser olhado com inveja, alguém que detivesse alguma espécie de poder, que fosse influente, rico, realizado, que pudesse decidir, e não fingir que decidia, como um mero porta-voz dos regulamentos do banco. Ter uma mulher bonita. Fazer aquelas coisas que apareciam nas revistas Raulzinho... Deixou-se divagar então. Sonhava acordado e sorria sozinho da ousadia de suas façanhas, até que o telefone tocou e...

O despertador tocou
. Marcos Silas deu-se conta de que ia viver mais uma segunda-feira no banco onde era gerente. Virou-se para chamar Regina que fingira não ouvir o relógio. — Não faz mal, — pensou, — há tempos a mulher andava assim. Levantou-se, pensando em como era incômodo sair de terno e gravata em dia quente, fingindo que não sentia calor. Do banheiro, escutou barulho e gritos que vinham pequena cozinha do apartamento, cuja prestação estava cada vez mais difícil de pagar. Raulzinho escutava música àquela hora da manhã com o som a todo volume! Regina gritou, perdendo a paciência com o filho:
— Desliga essa porcaria, infeliz!
Marcos Silas aumentou o volume do rádio e demorou-se fazendo a barba. Era assim todo dia. Já estava acostumado a essas discussões. Afetava indiferença. No banco, também já se acostumara a parecer outra pessoa. Devia tratar bem os clientes em potencial e ser frio para com aqueles que pudessem trazer problemas. Temia ficar desempregado. Não tinha mais nenhum espírito empreendedor. Sentia medo do futuro. Vivia corroído de incertezas. O único alívio de que dispunha era fantasiar. Imaginar-se outro: sagaz, vencedor, seguro... Mas ele estava com 45 anos, era gordo, hipertenso, temia um enfarto. Havia o plano de saúde, o seguro de vida, a escola do Raulzinho, a meta de produção a cumprir, os produtos do banco a vender, o cartão de crédito, as dívidas; havia Regina. Coitada da mulher. Engordara também, tinha crises nervosas. Vivia doente, consultando médicos e mais médicos. Sofria de enxaqueca. Reclamava de tudo e de todos. Nunca trabalhou. Aos domingos, exigia sempre que fossem à casa da mãe dela. Raulzinho também era uma preocupação. O garoto era debochado e tratava o pai com desdém.
Conseguir a gerência fora a realização de um sonho. Acreditava que fora por sorte, porque jamais imaginou que pudesse chegar a um posto de chefia. Na verdade não havia decisões a tomar, pois bastava aplicar o regulamento, as portarias. Todos, porém, costumam imaginar que um gerente manda um pouco. Não faz mal. Era parte da encenação. Nem seu casamento significou algo de realmente importante. Regina, quando jovem, era desengonçada, tinha acne, os cabelos eram oleosos, a silhueta já anunciava uma obesidade que não demorou a aparecer. A família da moça era simples: rotina, ideias prontas, o noticiário do dia, as novelas, os malditos programas dominicais. As mesmas histórias de sempre. Namoro, noivado, vestibular e casamento, irremediavelmente. Uma festinha de bairro, gente gritando, ele sorrindo num terno alugado, a noiva nervosa muito apertada num vestido branco cheios de babadinhos, contente em casar-se com um rapaz honesto e trabalhador, caixa de banco, mas com algum futuro pela frente. Havia empadinhas, salada de batatas servida em bacia plástica, um bolo com os clássicos noivinhos por cima, empapados do merengue que já desandava. O cunhado problemático acabou com a festa. Embriagou-se e vomitou no salão da igreja.
Que vida! Marcos não se queixava, procurava ser sempre gentil. Por favor, com licença e muito obrigado era o que mais se ouvia dele. Era de uma probidade absoluta. Os primeiros tempos foram difíceis. Os sogros ajudavam. Nunca fora muito hábil em negócios, mas sua honestidade acabara por torná-lo um homem digno de confiança. Era respeitado na agência, e até elogios dos diretores-gerais ele já tivera o prazer de ouvir. Todos gostavam dele no trabalho. — Por que estou me lembrando disso tudo? — pensou, lavando o rosto na água fria e apressando-se para o café.
Vestiu-se, demorando a achar a gravata listrada que estava na gaveta das meias da mulher. Terno, camisa, sapatos engraxados, nada estava no lugar. — Regina anda cada vez menos atenta às minhas roupas! — Coitada, devia ser a coluna, — desculpou-se quase automaticamente, antes que lhe ocorresse a palavra relaxada para qualificar a esposa. — Coitada, — disse, tentando evitar as palavras que lhe vinham à mente: gorda, relaxada, azeda. — Pobre Regina! — disse em voz alta. Começou a cantarolar, fugindo aos pensamentos obsessivos, mas as palavras gorda, relaxada, azeda insistiam. Ele cantava. Não queria pensar nisso. Não queria pensar, mas pensava. Gorda, relaxada, azeda, fedorenta, baleia! Queria gritar tudo isso para Regina, mas limitou-se a cantar mais alto. Trocou de sapatos. Mordeu os lábios. Suas mãos estavam encharcadas de suor. Ele não tinha o direito de pensar isso da coitada da mulher. Logo ele, que não era grande coisa. Escolheu outra música. Há tempos essa era a fórmula secreta utilizada por ele, para reprimir a hostilidade que emergia cada vez que sentia vontade de mudar, de reagir, de pensar, de reclamar. Como queria não ser Marcos Silas — pensou. Como desejava ser outro...
Na cozinha, o café. Forte demais como sempre, a pressão ia subir. Regina era fascinada por comida. Nada podia faltar na geladeiranem na dispensa. A mulher mantinha estoques que conferia diariamente, anotando tudo o que fora consumido com a obstinação de um faminto. As compras começavam nas manhãs de sábado. Cada um empurrava um carrinho. Regina comandava a inspeção, ávida, atenta, comprando tudo em embalagens gigantes. Um dia ele tentara argumentar sobre um pouco mais de saladas e grelhados, quem sabe. Nunca mais tocou no assunto. Ela, literalmente, fuzilou-o com o olhar, acusando-o de querer fazer com que a família passasse fome. Nunca mais tocaram no assunto. Marcos Silas resignou-se.
No fundo, ele acreditava que devia isso a Regina, coitada. Afinal, nunca fora grande coisa como marido e, para dizer a verdade, nunca fora grande coisa como homem também. Ficava nervoso, tenso, ansioso. Tinha vergonha de aparecer nu na frente da mulher. Quando se conheceram, ela já havia sido noiva de um rapaz que sumira, depois de iludi-la com uma promessa de casamento. O moço era referido em família como o cafajeste que fizera mal à pobre da Regininha. O assunto era sempre evitado. Sexo? Apenas com respeito.
Marcos comia, enquanto pensava no que era sua vida. Estava gordo. Não era alto. Tinha um ar jovial, e seus cabelos ainda se mantinham firmes na cabeça arredondada que parecia emendar-se à gravata, por causa do pescoço curto e da papada que já aparecia e prejudicava um pouco sua respiração. Precisava lembrar-se de aumentar a medida dos colarinhos na próxima compra de camisas sociais. Não podia ficar se desabotoando no banco. Com o calor, tornava-se vermelho. Suava demais.
Enquanto comia e pensava, procurava não prestar atenção aos resmungos da mulher e às reivindicações de Raulzinho Mais um croissant aberto ao meio e recheado de nata. Mais café, com bastante açúcar. Depois queijos. Comia por comer, sem saborear a comida. Ia arrotar enquanto dirigia. Precisava ficar à vontade e estar bem antes de chegar ao banco. Lá, ele colocava máscara, contemplando a placa: Marcos Silas — Gerente.
Regina também comia. Suspirava e falava sobre as qualidades marcantes da geleia de frutas vermelhas importada que devorou em poucos minutos. Ele nem quis provar, revoltado com o preço do produto que ela insistiu em colocar em um dos carrinhos de compras no último sábado, apesar do saldo devedor do cartão de crédito. — Renegocie, ora. Afinal, você é o gerente daquele tal banco pra quê? — rosnou ela agressiva e em voz alta, de modo que os outros clientes do supermercado que estavam por perto chegaram a voltar-se para ver cena que prometia desenvolver-se a seguir. Achou melhor levar a geleia e sair o quanto antes do setor de importados, de cabeça baixa, com medo de ser reconhecido por algum eventual frequentador do banco. Não provou a geleia importada de frutas de vermelhas. Ficou olhando Regina lamber os dedos que aprofundava no vidro como se fossem limpadores de para-brisas e depois levava à boca que sobressaia do queixo lustroso de gordura. — Como era feia! — pensou — feia, desengonçada, estúpida. A seguir, num jogo de pecado e penitência, pensou: — Coitada, coitada da Regina.
Raulzinho reclamava do horário da escola.
— Está bem, filho. Dê tchau para sua mãe. Como vai o colégio? — disse ele, tentado fazer o papel de pai interessado.
O garoto olhou-o com indiferença, como se lesse seus pensamentos e sua insegurança. No fundo, achava que Raulzinho o desprezava. O menino era insolente, sarcástico. Achou melhor não procurar diálogo. Era a adolescência, talvez por isso escondesse revistas pornográficas embaixo da cama.
Marcos Silas encontrou-as por acaso, ao entrar no quarto do filho para desligar o som que o garoto deixara ligado a todo volume. Não sabendo como lidar com o aparelho cheio de botões, abaixou-se para alcançar a tomada que ficava atrás da cama. Ali estavam as revistas que folheou devagar, observando atentamente as cenas. Então, repentinamente, imaginou que a mulher poderia entrar ali e flagrá-lo. Isso foi bastante para que, nervoso e culpado, se apressasse em deixar tudo exatamente como estava. Teve vergonha de si próprio, de sua incapacidade em lidar com o filho, e mesmo com a própria imaginação. Sempre que se lembrava disso, angustiava-se, como agora. O café esfriara na xícara.
Olhou para Raulzinho que o observava com ar debochado. Tentou sorrir, fazer-lhe um carinho, mas o menino esquivou-se ao perceber suas intenções. Saíram em silêncio até a garagem do prédio. O carro financiado não oferecia muito conforto, mas era quase novo. Deixou o filho no colégio e seguiu até o estacionamento que ficava próximo ao trabalho. Hora de chegar à agência.
Atravessando a porta de entrada, a máscara. Hora da máscara. Muita delicadeza e simpatia. Não se esquecer de cumprimentar ninguém. A máscara: bem sucedido, controlado, seguro de si, atencioso. Ele sabia como representar o papel. Fazia isso há anos. Às vezes sentia pena dos titulares de contas que era obrigado a encerrar, dos cheques que devia de devolver, dos juros que tinha de cobrar, dos seguros que precisava vender. Aí, devia ser duro, frio, empurrar os produtos. Não gostava de parar para pensar nisso. Não gostava de ser o que era, mas nunca fora capaz de ser outro.
Outro... — pensou. Alguém realmente importante, seguro de si, alguém que pudesse ser olhado com inveja, alguém que detivesse alguma espécie de poder, que fosse influente, rico, realizado, que pudesse decidir, e não fingir que decidia, como um mero porta-voz dos regulamentos do banco. Ter uma mulher bonita. Fazer aquelascoisas que apareciam nas revistas Raulzinho... Deixou-se divagar então. Sonhava acordado e sorria sozinho da ousadia de suas façanhas, até que o telefone tocou e, sobressaltado, ele voltou a ser apenas Marcos Silas.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


LOTE
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Lote era judia. E assim será lembrada, embora não parecesse observante dos ritos e embora, brincando, me dissesse baixinho e sorrindo, numa tarde de sábado, que era difícil resistir a uma fatia de presunto, porque presunto, afinal, já nem era mais porco... Ainda assim, nunca soube que ela houvesse violado esta norma. Ela nasceu na Alemanha em 1919 e teria permanecido por lá, não fosse a guerra. ― Não entendo, não entendo... Ter de fugir? ― dizia ela.



― Só compreendi que não nos queriam mais lá, a nós judeus, depois na Noite dos Cristais.
Mas eu era alemã! Minha cultura era alemã, minha língua era a língua alemã e meu pai lutou como oficial do exército alemão, pela Alemanha, na Primeira Guerra Mundial! Mas depois da Noite dos Cristais, tivemos de fugir, ― disse-me ela um dia, quando conversávamos lanchando na confeitaria que ainda funciona na loja térrea do prédio onde moro.
Era comum que nos encontrássemos aos sábados. Depois de lanchar, ela disfarçava, e dava uma desculpa, dizendo estar sem óculos. Estendia a carteira e dizia que pegassem o dinheiro e colocassem lá dentro o troco. Sorríamos uma para outra diante desse seu gesto, pois apenas eu sabia que ela agia assim, porque estava observando o Shabat. Não tocava em dinheiro no sábado. Piscava para mim, pois, embora me considerasse gentia, sabia de minha avó marrana e de meu quarto de sangue hebreu. Ela estranhava que eu soubesse tanto dos costumes, criada como gentia, batizada ― embora nunca crismada ― e tendo frequentando um tradicional colégio de freiras de Porto Alegre. Depois, perto das duas da tarde, ela ia para o salão de beleza das “Gurias”. Toda semana era assim.
Já perto dos 80 anos, ela continuava com aquele porte inconfundível. Lote fora atleta na Alemanha. Era alta, magra, loura, muito esguia e elegante, tinha lindos olhos azuis e porte de rainha. Vestia-se bem. Adorava jeans e blusas brancas. Usava tênis e nunca aparentou a idade que tinha. Era culta. Falava e escrevia em diversos idiomas. Lote tinha um irmão. Na fuga, desencontraram-se, e ela só soube dele anos depois. Era um homem alto, andava sempre curvado. Bem mais velho que ela, vestia-se de preto fosse inverno ou verão, carregando um guarda-chuva. Falava sozinho. Nunca sorria. Não suportava barulhos fortes. Era um homem muito culto que amava intensamente a música, tanto que ficou conhecido em Porto Alegre quando, no teatro, em algum concerto, se ele por caso ouvisse conversas na plateia, levantava-se, erguia o guarda-chuva e gritava sssilêeeeencio, indignado com a falta de sensibilidade do público.
Lote chegou ao Brasil, em Porto Alegre, em tempos em que não era comum uma mulher trabalhar, ser solteira, culta e independente. Isso a tornava notada pela vizinhança. Ela se destacava em tudo que fazia. Era voluntariosa, irreverente e, sempre que necessário, reagia com vigor. Gostava de dizer que não levava desaforo para casa. Nunca fez o tipo meigo ou singelo. Era uma mulher forte,admirável, alegre, em que pese haver perdido toda a família em campos de concentração.
Morava com esse irmão que um dia, porém, já bastante idoso, decidiu casar-se. Foi pouco antes de ele morrer, supostamente, de desgosto. Ele se apaixonou por uma pianista, segundo Lote, uma mulher que o seduziu com a voz, pois além de exímia pianista também cantava. Ele se casou, alegando que queria ser feliz. Não foi. Lote rompeu com ele e passou a viver só, detestando a cunhada, uma mulher alta, elegante, fria e solene que eu conheci apenas de vista.
Um dia falamos de amores. Ela me contou que teve um amor, mas que ele era cristão. Entendi o que isso significava para ela. Não daria certo ― comentou. Contou-me da Mezuzah que fora de seu pai antes de ser dela. Estava na porta de seu apartamento, pregada à altura dos olhos, inclinada no mesmo grau do ponteiro do relógio quando marca 11 horas. Nenhum dos vizinhos sabia o que era. Eles estranham, mas não perguntam  ― disse-me um dia sorrindo. Ganhei dela uma lindaMagen David banhada a ouro que tenho comigo até hoje. Lote dava presentes a todas as pessoas de quem gostava. Dizia que era para que se lembrassem dela. Mas eu sei que era bem mais que isso. Como judia, tinha consciência de que não teve família. Não teria, pois, quem dissesse o Kadish por ela, a oração dos mortos.
Ela tinha uma alegria intensa, um entusiasmo pela vida, uma força incomum. Contei-lhe um dia que dificilmente comia Matzá, pois no bairro não havia onde comprar.  O tempo passou. Num sábado ― lembro muito bem do sai ― acordei angustiada. Um desses dias em que a gente acorda e se sente triste. Estava numa fase ruim, sem saber o que fazer, e pensava comigo que precisava de algum sinal, de alguma coisa que me fizesse acreditar que tudo ficaria bem. Então, minha mãe entrou no meu quarto e disse que havia algo estranho na porta. Era uma sacola. Lote havia dado um jeito de descobrir a minha porta e de deixar ali uma sacola com matzote um abridor de garrafa com um símbolo de Israel. Eu sabia que fora ela. O que ela não sabia foi que naquela mesma manhã eu pedira para receber um sinal qualquer que me fizesse ir em frente.
E assim o tempo passava. Nos víamos, conversávamos. Eu me perguntava sempre como uma mulher como ela não tinha encontrado um grande ou mesmo um pequeno amor na vida. Sabia que namorou bastante nos idos de 50, 60, mas que era uma moça tida como independente demais e por isso não casara, tudo conforme, é claro, o juízo pequeno e estreito que vigorava naqueles tempos, e em nossos tempos ainda, não poucas vezes. Sabia que amara o tal cristão, mas que era um amor sem possibilidades, pois ele não entenderia jamais a sua alma judaica. Alma judaica existe. Não é uma impressão nem um modo de falar, mas um jeito de sentir o mundo e a vida. Nem Freud escapou disso e, mesmo a contragosto, admitiu-o.
Nossa diferença de idade era de exatamente 40 anos. A cada aniversário, nos telefonávamos. Fazíamos ambas no mês de julho: ela no dia 12 e eu no dia 15. Quando fiz 40 e ela 80, nos encontramos para um abraço. A vida seguiu seu rumo, com certa rotina. Ela sempre salão de beleza das Gurias, antigo no bairro, aliás, desde que as gurias eram mesmo gurias. Acho que um ano ou dois depois ela começou a ter problemas de saúde. Era diabética e vivia abusando. Fazia de conta que não era doente. Adorava comer doces. Amava viver. Um dia estava almoçando num restaurante de amigos comuns. Não sentiu as pernas. Gritou. Chamou por socorro. Foi posta num táxi e internada. Teve uma trombose que lhe custou uma perna. Gritava no hospital. Gritava e chorava em desespero. Não aceitava nem aceitou o que lhe aconteceu.
As Gurias foram vê-la. Eu não pude. Não quis ser testemunha de seu desespero, embora todo dia procurasse saber dela. Não quis vê-la, porque eu não saberia consolá-la e menos ainda dizer que se conformasse. Entendia-lhe o desespero. Não teria condições de testemunhar seus gritos nem sua raiva. Não fui ao Hospital de Clínicas visitar a minha querida amiga. Não havia nada que eu me sentisse capaz de fazer ali. Ela morreu dias depois. Recebi a notícia com alívio. Eu confesso que não queria ver Lote desesperada,mutilada e vivendo numa cadeira de rodas presa no asilo da comunidade. Foi uma atitude de gentia a minha. De goin mesmo, negar-lhe minha presença ao seu lado na pior das horas. Acabei com esta culpa me roendo talvez mais do que sofreria se a visse gritar sem poder fazer nada por ela. Não teria como lhe devolver o que vida que tirou. Ela sofreu demais. Não era mulher de se conformar, de aceitar, de adaptar-se a uma limitação desse porte. Se cedesse a algo assim, conformando-se, não seria mais a Lote.
Informei-me da Mezuzah. Soube que foi levada por gente da comunidade, e me fez bem saber que não caiu em mãos erradas. Durante todo o ano que se seguiu à morte de Lote, eu frequentei todos os sábados, o salão das Gurias. Ia lá e fazia qualquer coisa: cabelo, manicure, o que fosse... E, sem dizer por qual motivo, eu dava um jeito e falava em Lote, como que para fazê-la presente. Não vi sentido em rezar o Kadish em casa por ela. De que valeria uma oração pronunciada fora do rito? E de que valeria o rito fora do contexto? Não era isso. Eu preferi fazer diferente, observando o ano depois da morte a cada shabat. E fiz desse jeito, lembrando sempre cada detalhe junto a pessoas que ela conhecia bem, lembrando cada sorriso, os presentes, as alegrias que ela prodigalizava a todos.
E foi lá, com as Gurias, cabeleireiras da Lote, que eu soube de algo muito especial sobre minha amiga. Disseram-me elas que, antes de adoecer, ela andava muito triste, muito triste e abatida mesmo. Todavia, não contava a ninguém o que era. Passou-se algum tempo, e então ela apareceu alegre no salão. Feliz mesmo, de uma hora para outra. Sorrindo, como se estivesse aliviada, como quem reencontrasse algo precioso. Então, ela fez uma confidência. Contou, um pouco constrangida, que conhecera um homem bem mais jovem, que ele se mostrou apaixonado por ela, e ela por ele. Ele morava em São Paulo, parece. Escreviam cartas um para o outro, porque não se encontravam sempre. Depois, repentinamente, as cartas cessaram. Ela então parou de escrever e ficou triste, achando que se enganara. Foi uma época em que ficou melancólica e silenciosa, fechada, pensativa, porque não queria admitir a quem quer que fosse que vivera uma história de amor falsa.
Acontece que, naquele mesmo em dia em que apareceu alegre no salão, ela havia recebido notícias de seu amor. Soube que ele morrera. E soube isso por intermédio da mãe dele, que era bastante idosa, mas que descobriu, entre as coisas do filho, as cartas escritas por Lote, resolvendo escrever e contar o que acontecera. Ele deveria ter perto de sessenta anos quando faleceu repentinamente do coração. Enfim, na carta, a mãe do último amor de minha amiga assegurou a ela que este amor não fora uma ilusão.
Lote contou que estava triste pela morte dele, mas feliz pelo resgate dos seus sentimentos.
Talvez duas semanas depois disso, ela passou mal e morreu.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

FRAGMENTOS...
domingo, 5 de agosto de 2012
Dezembro, dia 2. Desprendimento. Calor. Estranho tanto esse meu desprendimento. Não é como se fosse — finalmente — o fim, mas percebo um adeus que me acena de algum lugar impreciso, produto desse desgaste que vai corroendo, todos os dias, parte do chão firme onde eu pensava estar contigo. São pequenas frações que se desprendem. Quase que não se sente a falta, porque é como a supressão de um reflexo, e não propriamente de uma parte certa das coisas sentidas.
ÚLTIMOS FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE REBECA
Dezembro, dia 2. Desprendimento. Calor. Estranho tanto esse meudesprendimento. Não é como se fosse — finalmente — o fim, mas percebo um adeus que me acena de algum lugar impreciso, produto desse desgaste que vai corroendo, todos os dias, parte do chão firme onde eu pensava estar contigo.  São pequenas frações que se desprendem. Quase que não se sente a falta, porque é como a supressão de um reflexo, e não propriamente de uma parte certa das coisas sentidas.
É como uma sombra que sumisse. Procuro sempre conferir se nossas sombras andam juntas, assim como, disfarçadamente, confiro nosso reflexo nas vidraças, nas vitrines, nos espelhos.  Por vezes acho que nossas sombras e nossos reflexos foram devorados por essa erosão emocional que deixa tudo muito inteiro, mas que aniquila o inútil, o superficial, a melhor parte das coisas.
Eu bem sei do valor do que a gente pode medir, avaliar, classificar e referir com propriedade. Disso nós temos, porque somos adultos, constantes, comprometidos, etc. Eu falo das outras coisas. Das coisas invisíveis, virtuais, metafóricas, sem nenhuma concretude, coisas cujo sentido é impossível apreender. Coisas feitas de silêncios cúmplices, de olhares significativos, de ausências percebidas como dor física de uma parte que falta. Coisas feitas daqueles medos que se sente de o outro não chegar, de não estar lá, porque se distraiu de nós. Éramos tão frágeis. Estávamos sempre com medo de nos perdermos, e nos assegurávamos, magicamente, a toda hora, de nossa presença. Nem que fosse escrevendo o nome um do outro, olhando as letras, juntando-as, pronunciando depois a palavra com gosto, com uma ponta de vaidade. Sonhávamos com o porto seguro que talvez tenhamos atingido agora. Sentimos doces e salgados com a mesma intensidade, temos amores semelhantes por livros e bichos. Combinamos até nas diferenças que nos tornam complementares. Disso tudo eu sei. E sei sabendo, sabidamente. Ainda assim, esse desprendimento me estranha.
Eu sabia a todos os perfumes, a fragilidades imodestas, e me alterava a qualquer instante. Tudo era muito incerto, quando só tínhamos o agora. O que nos levou a trocar uma coisa pela outra? Envelhecemos talvez. Ou o fogo arrefeceu, e hoje nos aquecemos em volta de um braseiro, contemplando as cinzas que vão se despendendo. A cada sopro, acentua-se o vermelho incandescente que, no entanto, acelera ainda mais a queima.
Contemplo o cenário do qual faço parte, mas vejo ali meu personagem que age porque conhece o script. Por vezes, temo parecer até mesmo respeitável, num contexto burguês de Casa & Jardim. Não me falta sequer a saia comportada e o blazer bem talhado, a armação dos óculos conferindo a tudo um toque de seriedade. É patético ser assim. Abandonar-se a rotinas e dar-se ao trabalho de construir planos. Eu até nem ia contar, mas daquela vez ¬ — que feio ― você me puxou o cobertor para se enrolar nele sozinho, bem no frio. Não reclamei para não te acordar, certa de que não era comigo que sonhavas. Tampouco teus olhos brilham para mim. Será mesmo preciso ir vivendo essa coisa absorvente que consiste no tecido da vida? Esse algo rotineiro que nos cobra tempo, que nos consome tão preciosa seiva.
Encontro serenidade no fundo de minha inquietude, porque me movimento incessantemente, percebendo coisas, instantes, cores. Escrevo como se cumprisse um mandamento, ciente de que ninguém mais faria isso exatamente desse jeito. Era assim que me via em ti, sabe? Como se somente eu, e apenas eu, pudesse estar ali naquele instante, sob medida.  Só que hoje, me desprendendo, olho para mim aqui do alto dessa literatura, e temo estar bem próxima do que é redundante, como personagem da rotina existencial da novela das oito, das ave-marias, dos terços e dos sonetos murmurados. Bem que podias inventar para mim algum outro sentido, fora este, tão sério, tão denso. Ou acabo desprendida, com outro nome, desfeita em letras inseridas no escuro desta página que se fecha.
Dezembro, 23. Ritos de Final de Ano. Que dizer? Eis aí uma coisa que chega como se fosse maré alta. Sufocante. Por toda a parte os ritos. A quem dar o quê? Onde? O que comer? O que vestir? A medida dos significados, as disputas, as competições. Abster-se é uma impossibilidade. Querendo ou não os ritos nos deslocam da indiferença que a custo afetamos, porque, afinal, somos adultos, e já deveríamos saber perfeitamente bem que Papai Noel é, acima de tudo, um político.
Dezembro, 25. Natal? E me virás como? Singular ou todo cheio de plurais, a desafiar-me as mágoas, como quem espreita minha intimidade? Não sei. Apenas estarei lá, fugindo ao óbvio que nos ameaça, recomeçando o final, desde o princípio, quando éramos apenas o verbo. Este, uma vez carne, conheceu então a dor e o silêncio.
Dezembro, 26. Ausência. Nunca se sabe o quanto nossa falta se faz sentir, a não ser quando nos fazemos ausentes. Fazer-se ausente é arriscado, porém. É deixar-se, afinal, descobrir o quanto fazemos falta de verdade. E pode ser que nem se faça tanta falta assim. Não tanta quanto se pensava.
Há outros onipresentes a quem designamos um exílio emocional tão determinante, que jamais se fazem presentes e, ainda que estejam por perto, sua ausência é sempre absoluta. Nascem mortos ou se morrem, ou os matamos nós, dolosa ou culposamente. Outros são sempre esquecidos, porque nunca chegaram a ser lembrados, a não ser de modo fugidio e, não fossem as agendas e os lembretes, não tomavam existência nem corporeidade nunca. Até que se desejaria não os esquecer. Lembrá-los mais vezes por delicadeza ou complacência. Só que eles nos fogem, nos escapam, e nada deles deixa rastro de memória que nossa sensibilidade possa capturar, indiferentes que são.
Outros há, todavia, cuja presença é tão intensa, que já fazem parte de nós, presentificam-se em nosso interior, ficam sempre ali, de tal forma, e com tamanha persistência, que viram um pouco outros eus da gente também. No fim, nos acostumamos a suas presenças, que ausência alguma é capaz de esmorecer. Deixam de ser outro e passam a ser um pouco a gente mesmo. Ou a gente mesmo vira esse outro lá por dentro.
O que não sei dizer é se isso é assim mesmo ou só impressão minha.
Dezembro, 31. Fim de Ano. Morte, Luto. Cerimoniais de adeus. E a vida prossegue, indiferente, com toda sua pomposa irrelevância. Com prazos, compromissos e relógios. Como se tudo fosse como sempre foi sem nunca ter sido.
Janeiro, 02. Ano Novo. O tempo. Quanto mais o tempo passa, e ele passa, inexoravelmente, mais eu desconheço o que já me pareceu tão íntimo. Vão se perdendo noções, direções, o sentido das coisas. Verdades que eram tão imutáveis foram se ajustando a uma realidade que jamais correspondeu àquela que fora, talvez, produto exclusivo de meus desejos, de minha vontade de acreditar. Ficou o que é interno. Ficou a verdade que eu mesma invento, e que é minha, afinal. Uma verdade minúscula, sem grandeza, que não vive mais do que já viveu. As coisas todas mudam neste mundo, e é desperdício o lamentar-se daquilo que se perdeu da pior das perdas: aquela que acontece, não quando se perde o que se teve um dia, mas aquela que nos tira o que pensávamos ter tido alguma vez. Como uma fotografia que vai perdendo as cores, desbotando, até que a gente não atina mais onde termina a forma e começa o fundo.
PS.: Rebeca morreu, ou deixou-se morrer, no dia 05 de janeiro de 2012. As últimas anotações encontradas em seu diário foram essas.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini