terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Publicidade

"Mas não é um favor, objetam nossos filósofos, evocar as forças profundas (fosse para reintegrá-las no sistema tão pobre de garantias)? “Libertem-se da censura! Frustrem seus superegos! Tenham a coragem de seus desejos!” Logo, solicitem-se verdadeiramente essas forças profundas para permitir-lhes que se articulem em uma linguagem? Esse sistema de significações permite levar a um sentido, e a qual sentido, zonas até aqui ocultas da pessoa? Ouçamos agora Martineau: “É naturalmente preferível utilizar termos aceitáveis, estereotipados: é a própria essência da metáfora (!)... Se eu peço um cigarro ‘suave’ ou um ‘belo’ carro, ― ainda que incapaz de definir literalmente tais atributos ―, sei que eles indicam alguma coisa de desejável. O motorista mediano não sabe o que é o octano em sua gasolina, mas ele sabe vagamente que é alguma coisa favorável. Assim, pede gasolina com alto índice de octanagem, porque é esta qualidade favorável e essencial que ele reclama em um jargão ininteligível” (p. 142). Em outras palavras, o discurso publicitário não faz senão suscitar o desejo para generalizá-lo nos termos mais vagos. As “forças profundas”, reduzidas a sua mais simples expressão, são indexadas sobre um código institucional de conotações e de “escolhas” não podem, no fundo, senão chancelar o conluio entre esta ordem moral e minhas veleidades profundas: tal é a alquimia da “garantia psicológica”[1].
Essa evocação estereotipada das “forças profundas” equivale muito simplesmente a uma censura. Essa ideologia da realização pessoal, o ilogismo triunfante das pulsões desculpabilizadas, é, de fato, um gigantesco empreendimento de materialização do superego. Aquilo que é “personalizado” no objeto é, primeiro, uma censura. Os filósofos do consumo costumam falar de “forças profundas” como de possibilidades imediatas de felicidade que é o bastante liberar. Todo inconsciente é conflitante e, na medida em que a publicidade o mobiliza, ela o mobiliza como conflito. Ela não libera as pulsões, ela, antes, mobiliza os fantasmas que bloqueiam essas pulsões. Daí a ambiguidade do objeto, daí a pessoa jamais se superar, podendo apenas recolher-se contraditoriamente: nos desejos e nas forças que o censuram. Encontramos aí um esquema global de gratificação/frustração analisada mais acima: o objeto veicula sempre, sob uma resolução formal de tensões, sob uma regressão nunca exitosa, a recondução perpétua dos conflitos. Estaria aí talvez uma definição da forma específica da alienação contemporânea: os próprios conflitos interiores, as “forças profundas” são mobilizadas como o é a força de trabalho nos processos de produção.
Nada mudou, ou antes, se : as restrições à realização pessoal não se exercem mais através de leis repressivas, de normas de obediência : a censura se exerce através das condutas “livres” (compra, escolha, consumo), através de um investimento espontâneo, ela se interioriza de qualquer sorte no próprio gozo."

BAUDRILLARD, Jean. Le sistème des objets. Paris: Gallimard, 1968, p. 269-270.




[1] De fato, é fazer muita honra à publicidade compará-la a uma magia: o léxico nominalista dos alquimistas tem, ele, algo de uma verdadeira linguagem, estruturada por uma práxis de procura e de decifração. O nominalismo da “marca”, ele, é puramente imanente e fixado pelo imperativo econômico.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

A Cidade



'Mas a «cidade de cultura» em breve se expande. Desdobra-se em arrabaldes que, pouco a pouco, vão absorvendo os meios rurais circundantes. A relação com a natureza deixa de ser dialéctica para passar a ser esterilizante. O mundo rural é esvaziado, sem que tenha tempo de se renovar. Paralelamente, a gestão da cidade torna-se cada vez mais pesada e burocrática. Formas geométricas e cristalizadas substituem-se às formas orgânicas. O anonimato é a regra, encontrando-se o indivíduo desprovido de meios para se situar, de forma perdurável, em relação ao seu próprio meio. É assim que surge a «cidade mundial», submetida, segundo as épocas, ao poder dos tecnocratas ou dos funcionários imperiais. A sua aparição, diz-nos Spengler, corresponde ao estádio da «petrificação» das culturas. «Estas cidades gigantescas e pouco numerosas», escreve, «banem e matam, em todas as civilizaçãos, sob o conceito de província, e por inteiro, a paisagem que foi a mãe da sua cultura (...). Elas transformam-se na história petrificada de um organismo».' 

BENOIST, Alain de. A Cidade in "Nova Direita Nova Cultura – Antologia crítica das ideias contemporâneas", Lisboa, Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, 1981. 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Etiqueta


"E não confundamos educação com etiqueta, pois a etiqueta pode não ser originada por esse perfeito sentimento, como impulso instantâneo, mas imposta por conveniências mercantis. A etiqueta, nestes casos, é o instrumento do disfarce, a dissimulação aplicada, e a arma da hipocrisia".

domingo, 8 de fevereiro de 2015

A PANÓPTICA


As sociedades ocidentais da atualidade dispõem de meios de vigilância e de controle com os quais os antigos regimes totalitários teriam apenas sonhado. E atualmente eles são empregados cada dia um pouco mais. A essa vigilância soma-se o “politicamente correto”, que procura normatizar a opinião pelo emprego de palavras impostas a todos, ao estilo do “pensamento único”. Substitui-se o debate pelo sermão, de um higienismo invasivo, que visa modelar comportamentos em nome do bem, conformando preferências e dileções. Isso vai diretamente de encontro à liberdade de expressão, à propaganda, enfim, que se denomina hoje publicidade.

A segurança tornou-se, nos últimos anos, uma preocupação política essencial. Satisfazer a esta preocupação sem atingir as liberdades é um problema que não vem de ontem. No seio das “sociedade do risco”, a insegurança real ou presumida engendra um clima de incerteza e de medo apropriado a fazer nascer todos os fantasmas. O aparelho securitário faz uso desse clima para colocar a sociedade sob controle. Os totalitarismos clássicos desaparecem. São assim outras lógicas, mais sutis, de servidão e de dominação que aparecem. Elas tomam a forma de uma engrenagem complexa de proibições e de regulamentações que se legitimam pelas ameaças onipresentes. Os pretextos são sempre excelentes: trata-se de lutar contra a delinquência, de vigiar nossa saúde, de aumentar a segurança, de melhor controlar a imigração ilegal, de proteger a juventude, de lutar contra a “cybercriminalidade”, etc. A experiência mostra, porém, que as medidas adotadas no início apenas em relação a um pequeno número são a seguir sempre estendidas ao conjunto dos cidadãos. Uma vez o princípio admitido, resta apenas generalizá-lo.

“Desde alguns anos, tentam ― escreve o filósofo Giorgio Agambem ―, nos convencer a aceitar como dimensões humanas e normais de nossa existência práticas de controle que sempre foram consideradas como excepcionais e propriamente desumanas”. O problema é que, para se assegurarem de sua segurança, os homens têm, em todos os tempos, se mostrado prontos a abandonar suas liberdades. A “luta contra o terrorismo” é, desse ponto de vista, exemplar. Ela permite instaurar, em escala planetária, um estado de exceção permanente. Nos Estados Unidos, os atentados de setembro de 2001 tiveram como consequência direta enormes restrições das liberdades públicas. Esse modelo está a caminho de se generalizar. Do fato de sua onipresença virtual, o terrorismo provoca medos eminentemente rentáveis e exploráveis. Contra o inimigo invisível, a mobilização só pode ser total, pois em tais circunstâncias todos são infalivelmente suspeitos. A luta contra o terrorismo permite aos poderes públicos que se imponham frente à sua própria sociedade civil, tanto quanto frente aos seus inimigos designados. Além dessa realidade imediata, o terrorismo pode assim se definir como fenômeno gerador de um terror convertível em capital político, que aproveita menos aos seus autores do que àqueles que dele se servem como repositório, para condicionar e amordaçar seus próprios cidadãos.

Hostis a toda opacidade social, as democracias liberais se dão um ideal de “transparência” que só pode se realizar pelo esquadrinhamento social.  A sociedade transforma-se então em um bunker protegido por distintivos, códigos de acesso, câmeras de vigilância. A multiplicação de espaços privativos, sempre com a finalidade de segurança, subtrai tais espaços ao fluxo social e termina por fazer desaparecer a própria noção de espaço comum, que é aquela da cidadania. Assim se dá lugar a uma Panóptica, de outro modo mais temível do que aquela prevista por Jeremy Bentham, mas cuja função é a mesma: tudo ver, tudo entender, tudo controlar. No interior de uma sociedade de assistência generalizada, ― na qual os problemas sociais dependem apenas da “célula de assistência psicológica” e onde a obsessão ingênua do “diálogo” dá a entender que, pela discussão, tudo é negociável e pode encontrar uma solução ―, a conformidade ou “monocromia” (Xavier Raufer) se faz do mesmo jeito que se opera, em informática, a formatação de um disco rígido, de maneira que aceite apenas uma única categoria de softwares ou de programas. Compreende-se melhor, a partir daí, que a ideologia dominante fale mais naturalmente de direitos que de liberdades, pois a instauração de um novo direito se complementa, inevitavelmente, de um controle ilimitado de sua aplicação.

A figura que a sociedade de mercado procura promover é aquela do eterno adolescente refém de uma permanente adição ao consumo: a mercadoria como droga. Economia compulsiva, onde a energia é convertida em pura agitação, em simples capacidade de se distrair. Essa distração, no sentido pascaliano da palavra, aproxima-se de uma diversão. Ela desvia do essencial e contribui assim para um desapossamento de si. Provocar medo de um lado, divertir de outro, ou seja, desviar-se do essencial, impedir que se possa refletir, dar prova de espírito crítico. Tudo fazer para que as pessoas produzam e consumam, sem se interrogar sobre algo além de suas preocupações e desejos imediatos, sem jamais se engajarem em um projeto coletivo que as possa tornar mais autônomas. A sociedade assim docilizada se torna essa “tropa de animais tímidos e industriosos” dos quais falava Tocqueville. Eis o ideal da criação de aves em confinamento.

O fato mais marcante é a correlação que se observa entre a perda de autoridade e a obsolescência política do Estado-nação e o reforço de seu aparelho repressivo. Então, mesmo quando se distancia cada vez mais do domínio econômico e social, o Estado legifera e controla mais e mais seus cidadãos. A vantagem para ele é que, em matéria de segurança, não tem obrigação de resultado. Melhor ainda: seu interesse é de não obtê-lo, porque assim pode justificar a perenização de suas políticas de controle e de segurança. “Não se reelege um governo promotor da segurança total porque ele teria conseguido reduzir a insegurança. Ele é reeleito porque a insegurança persiste” (Percy Kemp). O verdadeiro objetivo não é, pois, tanto o de suprimir a insegurança, que é dádiva para aqueles que dela se aproveitam, mas o de mantê-la, de modo a tornar possível a manutenção de uma vigilância cada vez mais generalizada.

Trata-se, afinal e contas, de criar um caos latente que, sem ultrapassar certo patamar, seja suficiente para inibir qualquer tentativa de reação coletiva. A mesma tática foi observada no passado contra as “classes perigosas”, com o objetivo inconfessável de eliminar os desviantes, os portadores de uma palavra discordante. Hoje, são os próprios povos que, aos olhos da Forma-Capital e das oligarquias reinantes são globalmente transformadas em “classe perigosa”. É aos povos que é preciso domesticar. Para impedi-los de elaborar projetos coletivos de emancipação e de autonomia, é bastante inspirar-lhes medo. É para isso que serve a Panóptica. “Quando não existe o martírio físico, dizia Péguy, são as almas que não conseguem mais respirar”.

Robert de Herte, L'Panoptique. Éléments n°117, 2005, disponível em http://grece-fr.com/?p=3788



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