sábado, 22 de setembro de 2012

Os meios de transporte e seus públicos: o trem e seus usuários


Fala-se muito em transporte público, contrapondo-o ao transporte particular, uma vez que o espaço que ocupam é o mesmo: o espaço urbano. Daí, fatalmente, a disputa a que se assiste todos os dias. Não há quem não saiba que os carros particulares há muito já complicam o trânsito nas cidades, e vão continuar complicando até um provável colapso, segundo os menos otimistas.  Eu observo as campanhas de conscientização, mas cada vez mais me convenço de que nada vai acontecer sem que, antes, mude o comportamento das pessoas em relação ao automóvel e em relação ao transporte público. E estou cada vez mais convencida disso, especialmente quando penso em termos de usuários e de públicos em relação aos modais dos quais se utilizam.

Sigo São Paulo TREM Jeito desde a primeira postagem nesse blog dedicado à campanha em prol do trem como solução à crise do transporte de passageiros. Observo que nunca se falou tanto em mobilidade urbana. Todos parecem estar para lá de conscientes de que alguma coisa precisa ser feita, de que há cada vez mais automóveis entrando em circulação, e de que mal se termina a construção de um viaduto, surge necessidade de outro. São óbvias as vantagens do trem, de um óbvio rodriguiano, e, ainda assim, ele continua a ser visto como um transporte de segunda classe.

Por quê? Porque trem não tem público. Trem possui apenas usuários, gente tratada como massa, como número, como quantidade. Público tem o metrô. Público têm as companhias aéreas. Público tem o automóvel. Público terá o trem bala, se acontecer. Se você pensar na população como um todo, os usuários de trem são predominantemente os excluídos de outros meios de transporte.  São massa, e por aí são concebidos, pensados e tratados, de sorte que não se tem, para trens, uma agencia reguladora exclusiva, agindo com eficiência e tendo destaque na imprensa, como, por exemplo, tem a Infraero relativamente às companhias aéreas. Muitas vezes, este papel de mediação entre público e transportador passa a ser desempenhado pelos sindicatos de empregados, uma vez que estes últimos constituem a interface que permeia usuário e trem, espécie de marisco entre o mar e rochedo. A Campanha São Paulo TREM Jeito, por exemplo, é apoiada por um sindicato. Na falta de políticas públicas mais eficientes, o sindicato faz o que pode, como pode, a partir de campanhas e até mesmo ― quem sabe ― tomando iniciativas para que se criem leis mais efetivas. Mesmo greves, por vezes, revelam mais problemas do que podem momentaneamente criar.

Massificação oprime. A massificação que oprime o usuário do trem, por enquanto, só tem um antídoto. Pensar em não precisar mais andar de trem, sonhar com o carro, cada um com a sua placa, o que remete à designação de uma individualidade, de um alguém que se resgata da massa e que assume uma identidade. O carro torna-se assim um sonho a realizar, um ideal a alcançar, uma tábua de salvação que resgata alguém do anonimato a que é reduzido na hora de escoar por uma plataforma ou sofrer na pele a sensação de viajar literalmente prensado. O automóvel simboliza um ideal, uma meta, um objetivo, e basta prestar um pouco de atenção às campanhas publicitárias que nos cercam para entender isso. A relação entre o automóvel e seu dono é uma relação de poder negada ao usuário do trem, que aceita passivamente as condições que lhe são impostas. Ele não tem escolha.

Alguma coisa vem acontecendo, é verdade. Há muitos discursos. Há, por exemplo, as bicicletas. Timidamente, elas vêm surgindo, novas e modernas, pilotadas por gente de classe média que veste roupas e usa equipamentos de grife. Nisso é evidente um comportamento que também tem tudo a ver com consumo: uma consciência Cult, digamos, de quem diz não ao carro sem deixar de aderir a uma condição da qual pretende auferir tanto ou mais status. As lindas bicicletas pilotadas por elegantes ciclistas equipados com roupas de grife, além de proporcionarem um belo espetáculo nas cidades, promovem o surgimento de uma nova tribo, não sem reflexos na política, fora o apoio que daí resulta a partir da adesão de outras tribos: os verdes, por exemplo, pessoas que podem pagar por produtos orgânicos enquanto desdenham os transgênicos, consumidos, é claro, pelos mais pobres. Há ainda os praticantes do tal despojamento, que procuram uma vida mais simples, vivida em menor espaço e com menos coisas.

É interessante notar que a relação entre transporte público e particular não é apenas uma questão de conscientização dos problemas envolvidos. Conscientes estamos todos de que há problemas, e isso não muda nada. No entanto, quando a coisa passa da consciência à sensibilidade, começam a se esboçar algumas mudanças. Não é sem razão que, timidamente, aparecem bicicletas, por exemplo, assim como pessoas que optam por mudanças radicais de vida, com reflexos em sua alimentação ― os verdes, por exemplo ― e em sua maneira de viver, ― os despojados.

Que mecanismo é esse, capaz de moldar sensibilidades, de alterar comportamentos? Acredito que seja a imitação, algo que leva alguém a aderir a uma campanha, alterar um hábito, mudar uma crença. Todo mundo imita, e imita o que adota como modelo, daí se dizer que a imitação vem de cima para baixo, parte-se do que não se tem, do que se almeja, do que se observa no outro.

Um automóvel de luxo representa hoje, no imaginário das pessoas, o que um casaco de vison já representou nos ombros de uma pin-up há alguns anos atrás. Todavia, não creio que hoje alguém se orgulhe de esfolar bichos para não passar frio, porque, finalmente, se sabe que um casaco de vison só é mesmo indispensável para o próprio vison. Talvez algum dia o sujeito que “vista” uma Ferrari vermelha seja tão ironizado quanto a pin-up que hoje se atrevesse a desfilar por aí coberta de peles.

Ora, pouco a pouco talvez essa sensibilização aconteça. As bicicletas chiques são um bom começo. Elas sinalizam uma pequena mudança que parte de pessoas que, em sua maioria, embora tenham acesso ao automóvel, aprenderam a dizer não a ele. São pessoas que, mesmo com plenas condições de possuir um automóvel, dizem não, e saem de bicicleta, ainda que não sem abrir mão do status que essa opção lhes confere a partir de uma “atitude” que desfruta de um bom grau de aprovação social. Não é por menos que atualmente já existe, embora ainda de forma tímida, a possibilidade de se alugarem bicicletas públicas. É a imitação funcionando.

Sem dúvida, o automóvel preserva nossa individualidade. Ninguém nega que há certo glamour envolvido em andar de avião, e até de metrô, com suas fascinantes estações subterrâneas, quando não são majestosas como a recentemente inaugurada na linha amarela. Não há como o usuário não se sentir valorizado quando se vê num lugar limpo, bonito, iluminado.  São estações que recepcionam bem o seu público e geram bem-estar. Aeroportos são assim também, tornando-se pontos de socialização inclusive. Mas e os trens?

Os trens já tiveram seu passado glorioso. No tempo em que visavam atender a um público. Testemunho disso nos dá a Estação da Luz, a Júlio Prestes, por exemplo, para ficar em São Paulo. No geral, contudo, atualmente, as estações são feias, pesadas e oprimem a quem quer que por ali passe. Se levarmos em conta, de um lado, o grande número de pessoas que transitam por uma estação de trens, e, de outro, o pouco ou nenhum apelo social, cultural ou comercial empreendido na grande maioria dessas estações, está aí uma relação que só confirma que os usuários de trens não são considerados como público, mas vistos e tratados como massa, como dado bruto do qual se extraem estatísticas.

São sem identidade. Fossem considerados como público, e não faltariam apelos comerciais e culturais que sempre visam a um alvo determinado. A massa não é alvo de nada. É temida e deve ser contida, dirigida, manobrada. A massa é reputada como tendo força, e não opinião. Ela responde a apelos emocionais e não a argumentos racionais. Se lhe nega a individualidade com que se distinguem os públicos. Estes, ao contrário das massas, possuem opinião e se comportam como consumidores, tornando-se um alvo a conquistar. As janelas dos trens nos mostram paisagens urbanas periféricas, as estações das quais se parte ou nas quais se chega não nos convidam a ficar um pouco mais. São vias de passagem, de escoamento, de circulação. O barulho e o apito dos trens, que outrora despertava nossa imaginação, hoje é associado à poluição sonora, e do próprio trem diz-se que produz as muito pouco desejáveis externalidades.

Parece que apenas românticos e passadistas ainda procuram encontrar nos trens um pouco de glamour, e essa ideia preocupa, porque aí reside uma tentativa de desqualificar os defensores desse meio de transporte, de todos, o que tem a oferecer as soluções mais eficientes, ao menos do ponto de vista custo-benefício, coisa que já está para lá de provada. Por que então essa resistência em investir em trens de passageiros? Como justificar a desativação de linhas? Difícil não encontrar aí um sinal de aparente descaso para com o usuário desse meio de transporte.

Conferir identidade a essa massa de usuários de trens me parece ser um bom começo, começo que passa, certamente, pelo investimento em estações por onde circulam milhares de pessoas que, embora não disponham do mesmo poder aquisitivo dos usuários de outros modais, nem por isso são menos representativas na hora de fazer valer, ao menos, seu número, seja votando, seja aderindo a campanhas ou mesmo mobilizando-se em função de algum bom projeto legislativo. Humanizar estações de trem pode ser um bom começo. Quem não gostaria de encontrar ali exposições, cafeterias, livrarias, música ao vivo, teatro? Certamente, isso mudaria o perfil desse usuário sofrido, que deveria ser valorizado tanto quanto o público afeito a outros modais. Enquanto isso não acontece, contudo, o jeito é sonhar com a Ferrari vermelha e com a pin-up, só que esta última já usando apenas couro ecológico, para felicidade do vison.

Maristela Bleggi Tomasini - Advogada em Porto Alegre (RS)
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