terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Nota de Silvio Venturi

 

A Opinião de um Médico Alienista[1]

 

Nota de Silvio Venturi

 

A propósito da discussão entre Sighele e Ferri a respeito da inteligência da multidão, tenho a dizer que, em certo sentido, estou de acordo com um e com outro (mais com Sighele que com Ferri), mas eu quero dizer também que considero a coisa de um ponto de vista diferente.

Vou explicar-me.

O orador que fala a uma multidão encontra nesta multidão o eco exato de suas próprias palavras, quando ele não faz senão exprimir — e eu poderia dizer resumir e evocar — ideias e sentimentos que a multidão já possuía mais ou menos confusos ou inconscientes. Nesse caso, a coletividade encontra no orador, como no foco de um espelho, o ponto onde sua opinião se reflete e de onde ela se propaga com uma intensidade multiplicada.

Se, ao contrário, o orador manifesta ideias ou sentimentos que vão de encontro à opinião pública, ele não é aplaudido nem mesmo compreendido.

Quero lembrar, a propósito, a discussão que Mausdley fez entre os homens de gênio: existem, de um lado, aqueles que farejam e exprimem as tendências intelectuais e morais do momento histórico no qual eles vivem; existem, de outro, os precursores, aqueles que pensam com uma novidade e uma ousadia que chocam os hábitos comuns. Os primeiros podem obter a glória durante sua vida, mas esta glória não irá além de sua morte, porque eles são os homens de seu tempo e eles passam com ele. Os segundos terão uma glória de além-túmulo, quando se houver chegado a compreender o homem que havia previsto o amanhã.

Entre essas duas categorias de homens de gênio, existe aquela dos utopistas, ou seja, a dos homens que, ainda que tenham talento, tem tido a infelicidade de expor ideias às quais o progresso humano não aquiesce e que, em conseqüência, permanecem fora da celebridade.

Todos os dias nós assistimos a demonstração prática daquilo que acabo de dizer. Nas assembleias (sobretudo nas assembleias políticas) os oradores mais estimados e que dominam como déspotas o seu público são aqueles que, no fundo, não dizem nada de novo, mas que sabem se aproveitar das paixões e manejar as ideias fundamentais e comuns[2]. Ao contrário, os verdadeiros inovadores, os pensadores profundos e originais encontram, necessariamente, a hostilidade e a ironia.

Eis, pois, segundo penso, o erro da polêmica entre Ferri e Sighele. Este último, reconhecendo que os sentimentos podem se propagar e se adicionar numa multidão, parece não perceber que isso é devido ao fato de que os sentimentos são um patrimônio comum, e que o orador não os cria, mas tão-só os evoca. Em outras palavras, Sighele parece esquecer que, se o orador arrasta atrás dele o seu público, é porque ele diz... aquilo que o público já pensava.

Ferri, de seu lado, reconhecendo que não apenas os sentimentos, mas também as ideias se adicionam e se reforçam numa multidão, é, em minha opinião, — se ele se limita a constatar que as ideias dos indivíduos que formam o público se ampliam pela sugestão de um orador de talento, — porque eles consideram um problema qualquer de um modo menos unilateral e com muito mais de amplidão e de objetividade.

Após cada discussão pública, podem-se constatar dois fatos inegáveis: antes de tudo, que a ideia exposta pelo orador será modificada, e, em segundo lugar, que ela será modificada na opinião de cada um, no sentido de que não mais será uma ideia extrema e ousada, mas bem uma maneira mais exata e mais positiva, ainda que menos geral, de ver as coisas. Ela terá ganhado em extensão, quer dizer, em difusão, aquilo que perdeu em altura, ou seja, em genialidade.

Eis por que, — eu repito, — Sighele tem razão, quando diz que, em relação aos produtos intelectuais, a troca de idéias diminui a intensidade da ideia inicial; e, de outra parte, Ferri também tem razão, porque a discussão, eliminando o perigo das utopias, eleva e mesmo corrige a ideia inicial.

Após isso, eu penso que toda discussão entre sentimentos e idéias, — distinção feita por Sighele e aceita em parte por Ferri, — é inútil. Tudo depende do grau de cultura e de moralidade do público ou da multidão à qual o orador se endereça. Segundo esse grau, um sentimento ou uma ideia podem ser compreendidos ou não, podem criar o entusiasmo ou deixar os ouvintes indiferentes. Para limitar-me ao exemplo relatado por Sighele e Ferri, é evidente que Garibaldi pôde arrastar atrás dele seus compatriotas com a palavra mágica da “unidade da Itália”, porque, em 1859, essa idéia da unidade de nosso país tornara-se um sentimento comum. Alguns séculos antes, por exemplo, na época de Dante, e mesmo algumas dezenas de anos mais cedo, por exemplo, na época napoleônica, essa idéia não era senão o sonho de algumas individualidades geniais, e não teria conseguido inflamar o público.

A propósito, para melhor esclarecer meu pensamento, quero lembrar aqui a teoria do gênio que formulei alhures. O gênio, segundo penso, é um novo ramo que, de tempos em tempos, se desprende da árvore colossal da atividade humana. Do mesmo modo, cada variedade biológica provém de uma espécie preexistente e pode ser considerada como o ponto de partida de uma outra espécie que irá se desenvolvendo e que se afirmará no amanhã. É por isso que as idéias do gênio não podem ter um sucesso imediato, da mesma maneira que a variedade que se anuncia na ordem zoológica ou vegetal não pode ter imediatamente a honra de ser classificada como uma espécie[3].

Hoje ninguém saberia entusiasmar uma tribo de hindus com a palavra igualdade. Esta mesma palavra encontrou muitos obstáculos, quando foi pronunciada pelos primeiros cristãos e, ao contrário, ela sublevou o mundo, quando foi proclamada pela Revolução Francesa; todavia, ela era o símbolo de uma ideia, assim como hoje. Mas, anteriormente, era a ideia de alguns precursores, ideia estranha e mesmo desconhecida do público; a seguir, esta ideia tornou-se comum e mais: a ideia foi transformada em sentimento.

Sílvio Venturi.



[1] SÍLVIO VENTURINI, o distinto médico alienista italiano, acreditou, quando da polêmica entre SIGHELE, TARDE e FERRI, dever intervir no debate por um artigo publicado na Critica Sociale de 1º de dezembro de 1894. SIGHELE resumiu esse artigo que contém novos apanhados.

[2] Ver a respeito SIGHELE, Psychologie des sectes, Giard et Brière, Paris, 1898, p. 195 e seg.

[3] VENTURI, a seguir, desenvolveu essa idéia em seu livro Le mostruosità dello spirito, Milão, 1899.­­