sábado, 5 de março de 2022

INGREDIENTES DA HISTÓRIA: TEMPO, NARRATIVA E PAISAGEM (Recorte de pesquisa)


Mas então, eram outros os tempos e outros os cenários. Para apreciá-los adequadamente, contudo, é preciso ter presente que o tempo histórico não é simultâneo nem obedece à mecânica prosaica de um antes seguido de um depois. O tempo histórico, cujo caráter narrativo é eminentemente temporal, é tão complexo quanto o tempo dos homens. Ele pode tanto lançar-se às vanguardas como petrificar-se sobre o que passou, o que explica a simultaneidade de ideias em atrito que antecedem à formação de concepções, de conceitos e de categorias como tais, tanto quanto das verdades que lhes vão servir de alicerce.

Além disso, história e escrita acontecem simultaneamente, portanto, na temporalidade. Assim, com razão Jean Kaempfer & Raphaël Micheli (2005) que, para estudar a temporalidade narrativa, exploraram nossa noção de tempo, dividindo-a em cinco categorias. Haveria um tempo apriorístico, conceitual, filosófico, portanto. Haveria um tempo fenomenológico, o tempo de nossas emoções, fonte do passado memorável que guarda lembranças e recordações. Haveria um tempo antropológico, substrato rítmico que se alterna entre o sono e a vigília, organicamente obediente ao corpo e a ele condicionado. Haveria um tempo objetivo, medido por relógios e calendários e sinalado pelos antes e depois. Finalmente, um tempo linguístico, fundamento de um não-presente que tem por pressuposto um passado constituído, um momento de enunciação e uma posteridade situada além da escrita. Dessa sorte, a temporalidade seria uma dimensão fundamental da conduta narrativa, — da trama da história, observe-se —, conferindo à experiência humana um caráter temporal.

E não há também um tempo das paisagens? Um tempo das metrópoles, célere, apressado; um tempo das províncias, lento, resistente, de sorte que as datações, embora certas, porque impregnadas da objetividade dos números, é incerta e inconfiável sempre que servir de marco histórico.

E é diante desses ingredientes coletados in natura em discursos e retratos que se quer descobrir uma psicologia coletiva ainda nascente, embalada no berço, inconsciente de suas origens, sem dúvida, jurídicas, mas ainda e, sobretudo, psicológicas, sociológicas, biológicas e, consequentemente, políticas.

Seja como for, fato é que o XIX foi marcado pelo poder do saber, que superara o poder da crença, derrotando a fé, ao menos na prática. A razão, enfim, exultava. O mundo mudara sua face. A máquina mecanizava também o espírito e recriava as cidades. A velocidade encurtava as distâncias e, depois dos rios, as ferrovias exerceram também a missão civilizadora. A produção aumentava e, com ela, o consumo. Os homens se deslocavam. Arrancados aos lugares onde, por gerações, estiveram fixados, passam a habitar as periferias das cidades que se hipertrofiam. Mentalidades tornam-se outras. O próprio tempo se altera quando o apito das fábricas regula rotinas antes pautadas pelos sinos dos campanários. Escravos de Jó exercitam o zigue zigue zá na urbs, expostos não mais às forças da natureza, mas às econômicas, novas regentes dos poderes políticos que, cada vez mais, passam a sujeitar os homens, os reinos, os estados em suas novas bases. Porque as antigas fizeram-se saudosamente românticas, ao sabor de Rousseaus e de Beccarias já distantes. Era preciso repensar o mundo, destituindo-o — não sem grandes resistências — de todos os resquícios metafísicos herdados da velha escolástica. Era preciso expulsá-los das almas para poder-se apropriar dos corpos.

Insista-se nesse cenário. Ele é nossa introdução. É nosso fundo, ou o palco no qual vai entrar em cena essa psicologia que nos interessa estudar. É preciso fazê-lo sem perder vista que ela aparece no mundo suscitada pela emergência de multidões que assumiam um caráter ameaçador diante daqueles que detinham não apenas a oportunidade de observá-las, mas ainda a de descrevê-las e de analisá-las, como de fato o fizeram, deixando-nos um valioso legado documental, tesouro que nos mostra o nascimento de uma ciência para cuja formação contribuíram jornalistas e literatos, além de historiadores e cientistas, simplesmente porque o assunto interessava a todos.


Kaempfer J. & Micheli, R. (2005). La temporalité narrative. Lausanne: Université de Lausanne. Recuperado de https://www.unige.ch/lettres/framo/enseignements/methodes/tnarrative/tnintegr.html#tnsommar em 05/05/2019.