A VIDA PODE ESPERAR
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Empilhando papéis e anotando coisas que ficaram para o dia seguinte, Marcos Silas sentiu que não tinha fome. Pediu água gelada que tomou devagar. Olhava a rua, pessoas indo e vindo, casais de namorados. Anoitecia devagar. Final de tarde luminoso, sem aquele calor sufocante que castigava. O comércio continuaria aberto até mais tarde. Semana de compras, início de mês. Sorriu ao ver a fila junto à carrocinha de pipocas. Gente com fome, que comia qualquer coisa. Alguém chamou sua atenção.
Estava na fila, pacientemente aguardando a vez de comprar as tais pipocas. Marcos observou com cuidado. A noite vinha chegando, mas o vulto ainda era perceptível. Elegante, a mulher usava um conjunto preto, casaco e calças compridas, de onde sobressaia um lenço discretamente colorido. Comprou as pipocas e sorriu para o pipoqueiro que, respeitoso, cumprimentou-a curvando o corpo, e levando a mão até junto à testa, como quem presta uma continência. — É Rebeca! Só pode ser! Está ficando escuro, mas...
Marcos Silas aproximou-se da janela a tempo de ver Rebeca afastar-se dali, muito devagar, distraída com as pipocas. — Onde será que ela vai? — perguntou-se, atento à direção tomada pela namorada de Klaus, um dos melhores clientes do banco. Decidido, arrumou a gravata, vestiu o paletó, empurrou alguns papéis para dentro da pasta, fechando-a de qualquer jeito. Saiu como um tufão, alegando urgência e encarregando o subgerente do fechamento.
Fora do banco, Marcos Silas precisou tomar fôlego. Seu coração batia depressa demais. Acalmar a respiração, pensar no que estava fazendo. — Por que saí assim? Por que quero ir atrás dela? Para onde ela foi? — pensava, enquanto seguia na direção que vira Rebeca tomar depois de comprar as pipocas. Caminhou pela praça movimentada, mas não conseguiu encontrar o que procurava. Fez mais uma volta, olhando para dentro das lojas, dos cafés. Nada. Buscava com os olhos a imagem de uma mulher de preto. Várias silhuetas poderiam enquadrar o modelo, mas eram desmentidas logo depois. Pessoas iam a vinham. Marcos detinha-se naquelas que poderiam, de longe, dar a impressão de serem Rebecas.
Parado no meio da praça, viu-se como um tolo. Algumas pessoas, irritadas, passavam por ele depressa, empurrando-o como fariam com alguma coisa que entravasse o seu caminho. Marcos Silas continuou parado. Não sabia para onde ir. Desistiu de procurar Rebeca, mas não quis voltar para o banco. — Paciência! Bobagem minha tentar encontrá-la “por acaso”, — pensou. Resolveu seguir a esmo, devagar, em direção a um prédio que lhe pareceu bonito. Era o museu de arte. Nunca entrara ali. — Que vergonha, — pensou, — trabalhando tão perto. — Consultou o relógio. Ainda era cedo. Quando viu, estava lá dentro. Estranhou que não cobrassem ingresso. O porteiro foi gentil ao esclarecer o detalhe, mas não se mostrou surpreso com a ignorância de Marcos Silas. Na certa, havia muitas pessoas como ele, que moravam ou trabalhavam na cidade, mas que nunca entraram naquele museu.
Marcos foi percorrendo as salas uma a uma. Olhava para tudo sem entender, mas olhava assim mesmo. De alguns quadros ele gostou; de outros, não. Não havia muita coisa. Um segurança, atencioso, alertou-o para que não ultrapasse a faixa amarela no chão, que limitava a meio metro a distância entre o espectador e a obra. Envergonhado, ele recuou. O mesmo homem observou que havia mais obras no segundo andar. Poucas pessoas circulavam, falando baixinho, como se estivessem dentro de um templo. Resolveu subir mais um lance de escadas. O prédio, por dentro, também era bonito, e não se podia dizer que não estivesse bem cuidado. Foi percorrendo os quadros um a um, distraído com o efeito que as pinturas lhe causavam. — O que é que eu estou fazendo aqui? Com tanta coisa que fazer, com tanta coisa importante para decidir... — pensou Marcos Silas, sorrindo de si mesmo. — Vamos lá, agora vou ver tudo mesmo, — concluiu, usando de permissividade para consigo mesmo.
Caminhando devagar, sentiu que seu coração batia tranquilo agora. Entretinha-se com as paisagens, intrigava-se com os rostos, divertia-se imaginando quem eram, o que pensavam. Parou em frente a um quadro onde aparecia menino pobre, cego de um olho, mas sentiu-se mal com a cena, afastando-se dali, com medo da emoção que a obra lhe provocara. Não tinha qualquer razão para agir como agiu, saindo do banco daquela maneira, procurando encontrar Rebeca “por acaso”. Nada o ligava àquelas imagens, àqueles quadros, àquele ambiente e àquelas pessoas desconhecidas que caminhavam por ali, certamente, sabendo por que estavam ali. Ele não sabia. À revelia disso, sem sentir, continuava a percorrer o prédio, que lembrava um labirinto, com recintos diferentes uns dos outros. Até uma sala escura havia, iluminada de maneira a permitir apenas a visão das obras colocadas sobre paredes negras e felpudas, absorventes, como se nada mais importasse ou existisse além das imagens, o que lhe provocou uma sensação de irrealidade. Saiu dali.
Súbito, uma surpresa, quase um susto. Viu-se diante da entrada de mais uma sala, mas ali havia alguma coisa especial. Seus olhos encontraram um quadro grande que — francamente, aquilo sim, era alguma coisa! — pensou. Estava frente a uma mulher vestida de branco, apoiada numa sombrinha, de chapéu, sorrindo para o mundo. Marcos Silas, sem saber por que, sorriu para o quadro e começou a sentir alguma coisa especial. Era como se a mulher estivesse viva, saída de outros tempos. Era luminosa. A roupa branca, pintada com maestria, revelava discretamente um corpo bem feito. O rosto não era bonito, mas havia tanta harmonia ali, tanta vida.
Marcos Silas pensou, brincando, que a mulher fosse descer do quadro, caminhar pelo museu. Imaginou o ruído do pano, o barulho dos saltos dos sapatos, imaginou-a abrindo a sombrinha, cujo cabo devia girar em seus dedos, causando um estranho e inesperado efeito, feliz com alguma coisa. — E se ela descesse da parede e caminhasse por aqui? Meu Deus! Será que isso é arte? Eu nunca me dei conta... mas é tão... Tão óbvio! — Marcos Silas sorria, experimentava algo que não podia e, na verdade, sequer desejava identificar. Era como se aquele quadro estivesse ali especialmente para ele. Começou a buscar algo no rosto da personagem que não era bonito. Deteve-se nas mãos, na elegância dos gestos, no movimento que podia sentir, sem ver. Vontade de cumprimentá-la. Ousou. Estava só naquela sala, e não resistiu à tentação de dizer em voz baixa, porém audível:
— É um grande prazer conhecê-la, madame!
Divertido com a própria ousadia, continuou a fitar a desconhecida, que não se dignara a apresentar-se a ele ou a responder ao seu cumprimento. Entretanto — coisa estranha — deu-se conta de que havia um leve perfume por ali. Fechou os olhos e concentrou-se na sensação. Voltou a abri-los. A dama de branco continuava no mesmo lugar. O perfume persistia, agora, numa nota mais densa. Era capaz de percebê-lo nitidamente. Já o sentira antes, mas não lembrava aonde. Muito suave, tinha uma nota que lembrava vivamente o perfume de rosas. Impossível que a pintura tivesse cheiro! Mas estava sentindo, sentindo. Havia mais alguém ali, além dele e da mulher do quadro. Virou-se devagar.
— Vejo que o senhor acaba de conhecer a misteriosa dama de branco, senhor Marcos Silas. Boa noite! É um prazer e uma surpresa encontrá-lo aqui, — disse Rebeca, sorrindo e estendo a mão.
— Rebeca! — disse ele, retribuindo o gesto, — que coincidência!
Marcos sentiu o coração bater mais forte. Estava feliz em vê-la, mas não quis demonstrar o quanto a presença de Rebeca o afetava.
— Não esperava encontrá-lo em um museu! Espero não tê-lo perturbado, mas cometi a indiscrição de observar o encontro entre vocês dois. Não é sempre que se vê alguém capaz de entregar-se sinceramente à emoção — disse Rebeca, que parecia mesmo surpresa e até satisfeita com o encontro.
— Será que foi isso o que eu fiz? — pilheriou Marcos Silas, tentando parecer à vontade diante da namorada de Klaus.
— Certamente, nossa dama de branco também sentiu “prazer em conhecê-lo, cavalheiro”, — disse ela sorrindo.
— Você ouviu? Que vergonha, Rebeca! Você me flagrou falando sozinho! Mas eu não resisti. E falei baixinho! — riu ele.
— Jamais sinta vergonha de uma emoção verdadeira. Emoções verdadeiras só nos valorizam, jamais nos diminuem, — disse Rebeca casualmente, admirando o quadro.
Marcos quis continuar. Pensou um pouco sobre o que acabara de ouvir:
— Mas como posso saber se uma emoção é verdadeira? — perguntou, sem olhar para ela, fixando o quadro.
— Não sei... Penso que não há fórmulas para isso. Mas a emoção verdadeira não costuma partir do cálculo nem da imitação.
— Como assim, Rebeca?
— Eu diria que o senhor encontrou algo que não procurava, deixou-se experimentar um momento único, abrindo-se para a emoção. Se algum dia voltar aqui, para vê-la novamente, vai encontrá-la com outro olhar.
— Você também já sentiu isso? Sabe o que é, Rebeca?
— Sim, eu sei. Este quadro é o meu favorito do museu. Também gosto de outros, mas este é especial.
— O que é que esse quadro tem afinal? O que você viu nele que a deixou impressionada? — perguntou Marcos Silas, agora curioso.
― Ora, senhor Marcos Silas, veja por si mesmo. Ela acabou de seduzi-lo! É tão simples! O senhor admirou este quadro exatamente por isso. Eu, por outro lado, desde que o vi pela primeira vez, quis saber como seria ser assim. Eu quis ser como ela, desfrutar dessa espécie de poder. Um poder, na realidade, tentador. Uma mulher que, mesmo não sendo uma deusa, é capaz de seduzir apenas através de sua imagem. Estranho, mas não temos a impressão de conhecê-la? Eu acho que eu a invejo...
Ambos continuavam ali, olhando o quadro, lado a lado, em silêncio. Marcos pensou no que acabara de ouvir. Olhou para Rebeca. Era dela que vinha o perfume de rosas. Notou o lenço de seda que sobressaia na roupa preta. Ela era pequena, mas elegante. Educada, mostrava-se quase sempre reservada e discreta. Marcos Silas começou a achá-la bonita. Pensou em convidá-la para jantar, mas imaginou que ela poderia pensar que se tratasse de uma cantada. — E se ela pensasse que era uma cantada e topasse? Não, nada disso. E se... Se Klaus descobrisse que eu saí com Rebeca? Que confusão! — pensou. — Rebeca é tão... Ela faz com que eu me sinta assim... — Marcos não sabia explicar. Era uma sensação indefinível. Sabia, contudo, que gostava de estar perto dela.
— O senhor aceitaria acompanhar-me num café? — perguntou Rebeca com simplicidade.
Marcos Silas assustou-se com a pergunta. Pensou em dar uma desculpa, em sair dali correndo. Pensou na mulher, em Klaus. Mas deu-se conta de que, por alguma estranha manobra do destino, naquele instante, ele estava livre de todas as coisas que o atormentavam. Era como se ela pudesse fazer com que ele fosse outra pessoa.
Sem dizer nada, Rebeca sorriu para ele e tomou a direção porta. Marcos simplesmente a seguiu. Naquele momento, iria com ela onde quer que fosse, e depois pensaria em Klaus, na mulher, na casa, no banco, no filho, nas contas... A vida, afinal, podia esperar.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini