Lembrar
parece algo natural. É inerente ao ser humano cultivar lembranças, porque
talvez sejam elas o próprio tecido do qual nossa vida é feita. Não digo nossa
vida biológica, que esta possui seus tecidos feitos de carne, ossos, sangue;
falo da outra vida, daquela do sabermos quem somos, daquela de nos pensarmos
como alguém. Alguém que não é você, que não é outro, mas que sou eu.
Complicado?
Nem tanto. Pare um pouco e pense: você sabe quem é você na medida quase exata
de suas lembranças. Assim é com tudo. Somos uma história, uma sucessão de
eventos acontecidos no espaço e no tempo. Pense nisso, nesse acontecer que é
você, e me diga se não somos, afinal, muito lembrança, muito memória, muito
tudo isso que resiste ao tempo.
Não
creio que seja preciso mais para lhe fazer ver o quão valioso é o tesouro da
memória. Esquecer e lembrar são verbos paradoxais em sua complementaridade.
Pessoas, coisas, instituições, famílias, empresas, bairros, cidades e mesmo
animais possuem uma história. Recompor esta história, desenhar esta memória,
fixá-la em um suporte a partir do qual ela possa ser compartilhada, não é
apenas uma técnica, mas uma arte. É algo que o homem vem fazendo desde que se
deu conta de sua finitude e pretendeu transcendê-la. Memória é, pois, transcendência,
na medida em que, resistindo às forças que promovem o esquecimento, eternizam
seu objeto.
Fazer
memória é participar dessa transcendência, é atrever-se ao destino, criando
futuros através dos registros passados que promovem o presente. É, com efeito,
construir edifícios que darão abrigo ao que vai persistir, resistindo ao tempo,
esse mestre do esquecimento que, todavia, não se atreve contra o que sabe
persistir, conservar-se e durar.
Nesses
tempos pós-modernos, onde o espaço e tempo se contraem velozmente, somos
desafiados pelo efêmero que se perpetua em movimentos febris. Tudo é hoje, aqui
e agora, porque a mecanização nos transformou em repetidores de atitudes que se
expandem via contágio do prêt-à-porter ao prêt-à-penser. Em
sua genialidade, Salvador Dali pintou relógios que se derretiam sobre pedras em
plena luz do dia, insistindo na persistência, não da matéria, mas da memória.
Bergson não foi menos feliz quando escolheu para intitular talvez a mais
imortal de todas as suas obras as palavras Matéria e Memória.
Buscar um eixo de estabilidade hoje é o desafio que nos garantirá, não a mítica
saída do labirinto, mas o acesso àquele fio condutor capaz de dar sentido a um
passado que o tempo devora e a um futuro que esse mesmo tempo ameaça. Memória é
estabilidade, e estabilidade é o grande atributo, quase místico, com qual o
homem honra a todas as coisas que lhe são sagradas.
Lembre-se
de não esquecer. Sua memória também é você.