quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Por que lembrar?


Lembrar parece algo natural. É inerente ao ser humano cultivar lembranças, porque talvez sejam elas o próprio tecido do qual nossa vida é feita. Não digo nossa vida biológica, que esta possui seus tecidos feitos de carne, ossos, sangue; falo da outra vida, daquela do sabermos quem somos, daquela de nos pensarmos como alguém. Alguém que não é você, que não é outro, mas que sou eu.
Complicado? Nem tanto. Pare um pouco e pense: você sabe quem é você na medida quase exata de suas lembranças. Assim é com tudo. Somos uma história, uma sucessão de eventos acontecidos no espaço e no tempo. Pense nisso, nesse acontecer que é você, e me diga se não somos, afinal, muito lembrança, muito memória, muito tudo isso que resiste ao tempo.
Não creio que seja preciso mais para lhe fazer ver o quão valioso é o tesouro da memória. Esquecer e lembrar são verbos paradoxais em sua complementaridade. Pessoas, coisas, instituições, famílias, empresas, bairros, cidades e mesmo animais possuem uma história. Recompor esta história, desenhar esta memória, fixá-la em um suporte a partir do qual ela possa ser compartilhada, não é apenas uma técnica, mas uma arte. É algo que o homem vem fazendo desde que se deu conta de sua finitude e pretendeu transcendê-la. Memória é, pois, transcendência, na medida em que, resistindo às forças que promovem o esquecimento, eternizam seu objeto.
Fazer memória é participar dessa transcendência, é atrever-se ao destino, criando futuros através dos registros passados que promovem o presente. É, com efeito, construir edifícios que darão abrigo ao que vai persistir, resistindo ao tempo, esse mestre do esquecimento que, todavia, não se atreve contra o que sabe persistir, conservar-se e durar.
Nesses tempos pós-modernos, onde o espaço e tempo se contraem velozmente, somos desafiados pelo efêmero que se perpetua em movimentos febris. Tudo é hoje, aqui e agora, porque a mecanização nos transformou em repetidores de atitudes que se expandem via contágio do prêt-à-porter ao prêt-à-penser. Em sua genialidade, Salvador Dali pintou relógios que se derretiam sobre pedras em plena luz do dia, insistindo na persistência, não da matéria, mas da memória. Bergson não foi menos feliz quando escolheu para intitular talvez a mais imortal de todas as suas obras as palavras Matéria e Memória. Buscar um eixo de estabilidade hoje é o desafio que nos garantirá, não a mítica saída do labirinto, mas o acesso àquele fio condutor capaz de dar sentido a um passado que o tempo devora e a um futuro que esse mesmo tempo ameaça. Memória é estabilidade, e estabilidade é o grande atributo, quase místico, com qual o homem honra a todas as coisas que lhe são sagradas.
Lembre-se de não esquecer. Sua memória também é você.