segunda-feira, 17 de setembro de 2012
Desde que descobri a fotografia, tornei-me viciada em fazer uso de câmeras. Comecei usando o celular que tenho até hoje, e a partir dele fui aprendendo a lidar com imagens. Hoje, além do celular, possuo outras três câmeras, nada de muito sofisticado, mas cada uma com a sua própria personalidade. Como sou compulsiva também em relação a fotos, acabei por me deixar encantar pela prática e, sempre que dá, ando por aí fotografando as coisas extraordinárias que descubro em meu cotidiano.
Explico. A princípio, pensa-se que a fotografia deva ter, como a escrita, certa lógica, alguma coisa que permita, a quem olha a foto, reconhecer nela alguma coisa, algum possível, identificando-a. A maioria das pessoas permanece convicta de que uma imagem deve corresponder a alguma verdade, reproduzir algo real e, portanto, gozar de uma assertividade que a pintura ou o desenho, por exemplo, não possuem, salvo um realismo impositivo e arbitrário. Em passeios por cidades, então, nem se fala! É bem simples explicar o que acontece a partir dos tais cartões postais. Ali estão consignados os símbolos mais representativos de uma determinada cidade. Porto Alegre com Guaíba ou Paris com a Torre Eiffel, Rio com Corcovado, Bondinho, Cristo. E por aí vai. No máximo, o bom fotógrafo irá ― não sem algum esforço, além de considerável investimento em equipamento ― conseguir igualar, em qualidade e criatividade, um bom cartão postal entre tantos que já existem à venda, todos consagrando os tais ícones representativos de tal ou qual lugar.
Ah, sei que é meio humilhante dar-se conta disso, mas é a mais pura verdade. Andar por aí armado de uma boa câmera, a cata de uma excelente luminosidade e ainda de um ângulo feliz, tudo para fazer outra vez alguma coisa já feita centenas, senão milhares de vezes antes. Não digo que isso não pode ser divertido a princípio, mas certamente não demora a cansar. Salvo teimosias inauditas, como a minha em relação ao edifício do Banespa em São Paulo, que não me canso de contemplar através de diferentes lentes e ângulos. Na verdade, não cansei jamais de olhar para ele, como para o Edifício Copan, que me encanta desde criança. São para mim inesgotáveis símbolos de uma São Paulo que acredito pertencer-me inteiramente.
A partir dessa percepção, dei-me conta de que não era exatamente da cidade padrão que eu gostava. Não exatamente. Não se tratava de São Paulo, de Porto Alegre, do Rio de Janeiro, para ficar nas mais pontuadas. Dei-me conta de que queria saber mesmo era de mim em tal ou qual cidade, impregnar-me do efeito que mergulhar em seu cenário me causava. É claro que os ícones representativos de determinados lugares são importantes e, obviamente, queremos ter deles algumas fotos, ainda que medíocres diante dos tais cartões institucionais que, afinal, são o que existe de mais identitário em relação às cidades. A partir de então, quase que sem sentir, fui atrás de uma cidade particular à minha percepção, ainda que ela nada tivesse a ver com a cidade social plasmada no imaginário de seus habitantes.
Minha Porto Alegre também tem Guaíba e Redenção, mas não fica só nisso. É composta de macros, de céus, de fragmentos, de recortes e, sobretudo, de reflexos. Acho que prefiro minha foto da chaminé da Usina do Gasômetro refletida em uma poça d’água que a melhor foto que já fiz daquele famoso símbolo. O mesmo com a torre do Memorial. Foi assim que começou meu desapego: com a percepção de mim mesma em dado espaço e tempo, o que vejo, o que sinto, a partir de quais elementos e até que ponto estes elementos são resgatáveis como memória fixada em suporte. Resultou daí uma grande surpresa: muitas das minhas fotos prediletas não passam de uma vista de vão de janela, ou mesmo de uma parede riscada, quando não se resumem a luzes abstratas tomadas ao movimento do carro, de passagem. O universo das imagens vai muito além dos limites que uma lógica limitadora nos impõe. Escapar ao modelo, todavia, não foi fácil.
Com muita resistência interna, autocensura, etc., decidi fotografar por fotografar. Dei adeus aos enquadramentos e às composições e comecei a usar, descaradamente, o modo automático, explorar os recursos mais simples das minhas câmeras e... brincar! Pronto, falei. Eu simplesmente deixei de tentar levar a sério a fotografia e passei a me divertir com ela, mais ou menos como me permito, às vezes, brincar com palavras e textos. Foi a melhor coisa que me aconteceu, até porque nem a mim mesma levo muito a sério.
Não apenas comecei a gostar mais das fotos que passei a tirar, como ainda acabei descobrindo que, intuitivamente, eu acabava produzindo um ótimo enquadramento, com bom equilíbrio entre os elementos da composição. De certa forma, por já haver desenhado e pintado muito, tenho boa percepção de espaço, e meus olhos, de algum modo, são felizes quando enxergam. Uma felicidade, contudo, que não se restringe a reconhecer o que já é sabido, mas que se faz quando descobre ou redescobre paisagens escondidas em toda parte. E assim, com a maior tranquilidade, passei a usar a câmera como um olho extra, que enxerga coisas inauditas, que fotografa o chão, por exemplo, cantinhos, janelas e, principalmente, pedaços de céu caídos na calçada, sempre que chove e que o sol brilha por sobre umresto de água empoçada no chão da rua. Descobri assim, não cidades, mas fragmentos de cidades, lembranças perdidas, bichos, e até cheiros, percepções das mais inesperadas que me ampliaram os sentidos e que me dão intenso prazer.
De ruim minha incompetência e preguiça em buscar aprender mais sobre fotografia. Por mais que eu cultive este espírito libertário, jamais desdenhei do saber teórico e técnico, até porque acredito que a melhor prática, sem uma boa teoria, acaba caindo na mediocridade. Fico um pouco constrangida em dizer isso, mas o que faço é por acaso mesmo. Acho que, se tentasse fazer uma boa foto, tecnicamente falando, me atrapalharia tanto com abertura e velocidade quando me atrapalho com esquerda e direita até hoje, quando preciso parar para pensar, afinal, de que lado estão falando. Tem horas que, vaidosa de algum bom resultado, morro de vontade de dizer que fiz aquilo porque entendia do riscado. Confesso que tenho inveja de quem consegue assimilar esses comandos todos que eu, só com o manual do lado, consigo fazer de conta que entendo. Da última vez que tentei mexer no tal ISO, travei uma de minhas câmeras e quase precisei recorrer à assistência técnica para voltar ao padrão dito normal, o tal modo P ou A... Sei lá! Só olhando o manual, coisa a que às vezes me obrigo, como quem se impõe uma lição de casa.
Em todo caso, para não dizer que sou metade burrice, metade estupidez, descobri um jeito de me comunicar com as minhas câmeras. Não sei como funciona isso, mas de tanto insistir com elas, acabei percebendo, no premir do botão, um tempo entre foco e disparo que muito me agrada, pois consigo, de algum modo, deslocar o foco e ressaltar vários planos. Claro que muita gente até pensa que isso é obra de minha Inteligência, mas é simplesmente resultado da minha proverbial teimosia.
Com o tempo, ― e por que não dizer, ― sob a pressão (inspiração?) de Rogério Centofanti, passei a dominar alguns termos, descobrindo que o que funciona em fotografia não são os tais pixels nem a tal da resolução. O grande segredo são as lentes. Quanto mais alemãs e menos japonesas, melhores, segundo Rogério, que chega ao cúmulo de possuir, assim como que casualmente, uma tal de Hasselblad, ou seja, nada menos do que a melhor objetiva do mundo. Nas minhas mãos, infelizmente, a Hasselblad faz fotos piores que a pobre câmera de meu velho celular. Confesso meu despeito e frustração. A imagem obtida é de pura luz ou de pura escuridão. Não sai mais nada. Simplesmente também não consigo fotografar com nenhuma das outras maravilhosas objetivas do Rogério, que faz pouco, abertamente, da minha Nikon D5000, metida a profissional, embora elogie bastante a Leica da Panasonic que era dele, e da qual eu descaradamente me apropriei. Tudo culpa do poderoso zoom que me permitiu fazer um notável close da cabeça de uma tartaruga que descansava no meio do lago do Parque da Redenção, a muitos metros de distância da gente. Uma foto inacreditável. Quem vê, diz até que é coisa de profissional.
Seja como for, Rogério é o grande entendedor de lentes, abertura, velocidade, ISO, etc. e isso desde os tempos da fotografia analógica. Só sei que nada sei, e me limito a premir o botão do disparador, não sem certo cerimonial de toques que pressinto e intuo bem mais do que compreendo. De bom é que tanto ele quanto eu nos entregamos a esse divertimento, que ele francamente leva mais a sério. Resulta disso uma boa série complementar de imagens de excelente qualidade. Ele foca no que interessa; eu, em qualquer coisa que me atraia. Como resultado, sempre que nos encontramos, a fotografia se torna fundamental, de sorte que temos praticamente cinco anos de imagens arquivadas em nossos respectivos computadores.
Creio que essa coletânea, notadamente fixada em imagens, acabou por refinar nossa percepção, a ponto de superarmos vários modelos. Não fotografamos mais como fotografávamos há alguns anos atrás. Olhando as pastas, comparado as datas, creio que atravessamos fases bem marcadas. Hoje eu, particularmente, ando me permitindo compor imagens e textos bastante casuais, fragmentados, mas associados. Fotografo qualquer coisa, literalmente qualquer coisa, não necessariamente concreta, e crio uma escrita para aquilo. Um pequeno texto, que componho na hora, sem compromisso algum com qualquer fato historicamente concreto. Com isso, me sinto mais rica, e minha percepção dos lugares que eventualmente visito ou que frequento tornou-se mais atilada, ampliando em muito, não apenas a paisagem dada, a cidade memorável propriamente dita, mas a minha própria percepção desses lugares, intuída e elaborada com toda a subjetividade. Com a fotografia, posso dizer, não são lugares o que conheço melhor, mas a mim mesma, autorreferenciada em cada imagem, em cada fração de segundo eternizada como memória.
Depois da escrita, talvez seja a fotografia aquilo a que me entrego mais livremente.