sexta-feira, 27 de julho de 2012

Complicado

Tem horas que penso que tudo é linguagem, porque tudo, enfim, se interpreta, ainda que o meramente descritivo. Ando pela cidade e fotografo coisas, macros, segmentos que depois se revelam parte de mim, quando, através deles, alcanço significados e atribuo sentidos a pensamentos e sentimentos que adquirem assim alguma nitidez, algum inesperado brilho, surpresa, susto...

quinta-feira, 26 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

PROVÍNCIAS & METRÓPOLES
sexta-feira, 3 de agosto de 2012
O migrante às avessas está se preparando para reconhecer a si mesmo. Vai mudar de cidade. Sofrerá o doloroso processo de internalizar uma nova paisagem, e terá de ser hermeneuta de um simbolismo com o qual apenas sonhara de passagem. Espaços reduzidos nos tornam muito mais visíveis aos outros, como nos fazem também muito mais visíveis a nós mesmos. A província é assim, toda feita de casas de vidro, de transparências, de percepções marcadas pelo que é quase imperceptível.

“As pequenas cidades possuem uma realidade constrangedora que não é feita para pensar nem sentir, porque simplesmente é.”
As sensibilidades são atiladas, e nada passa despercebido, porque em tudo se põe reparo. Haverá discussões sobre o banheiro, e por certo a ousadia de mudar a forma do lavatório será assunto. A tal namorada do sul, que vai e vem, vem e volta, que não mora junto, que etc. Especula-se. Cogita-se. A província é toda curiosidade.
A casa é refeita. Portas, janelas, detalhes. Ousadias. Um computador. Um homem só, que não se sente só, porque sua solidão é iluminada. É bonito, desenvolto, alto e de um falar firme que sabe ser manso e carinhoso. Ele tem mãos bonitas e quentes. Tem olhos muito azuis que já viram tudo e que mediram os horizontes de terras e mares. Chegou com mania de alterar as pequenas coisas, logo estas, que são dentre todas as mais sagradas, porque as grandes não mudam nunca.
O homem que se passeia por aí de vez em quando, e que olha a cidade para onde vai, a casa, as pessoas, as coisas, a grande pedra. Vem de longe e olha. Estranha os hábitos, inquieta-se com as manias. Interioriza-se, assimilando o ambiente. Ele fala outra língua, sem dobras, sem ais, sem erres dobrados, sem singelezas, com letras pronunciadas uma por uma. Assim as roupas, os modos, as esquisitices. Assim ele próprio. Bem assim.
Ele tem dessa simplicidade ensaiada contraída como doença no viver por aí, se encontrando e se despedindo de tudo e de todos. O homem que construiu muitas casas imensas, mas que, de seu, só teve mesmo foram quartos de hotel e lembranças, memórias de coisas idas e de encontros desencontrados, porque as esquinas do mundo nunca se repetem, e tudo durou pouco, ainda o que durasse muito, demais.
E assim o migrante partiu sempre. Se foi. Agora se vem. Está chegando e parece que sente que nunca saiu.  O migrante se vê às avessas, porque as pequenas cidades têm a grandeza daquilo que é paradoxal. É a diferença de São Paulo, imensa, onde a gente se dilui completamente e desfruta do sentimento maravilhoso de ser ninguém. E pode-se sempre, quando se quer, tornar-se alguém, para quem se escolhe aparecer, com a urgência de tudo o que tem a eternidade do instante que não se repete, e que cicatriza a dor de qualquer separação.
O sentir-se desnecessário e inútil é a maior das realizações, porque gera a liberdade que se pensa conhecer muito bem, mas que é apenas interior e teórica. São Paulo é despedir-se de si, dos outros, de tudo. São Paulo tem o adeus dos grandes encontros de até nunca mais. Mas as cidadezinhas pequenas, estas são para sempre, e nelas não existe adeus, nem morte, porque os mortos apenas se
“A casa é refeita. Portas, janelas, detalhes. Ousadias. Um computador. Um homem só, que não se sente só, porque sua solidão é iluminada.”
mudam para bem perto, para logo ali, no cemitério onde cada família já tem reservado o seu terreno, a parte que lhe cabe naquele lugar onde a vida transcorreu com a regularidade das coisas previstas que absorvem todos os imponderáveis, tragados pelo cotidiano. No mais, continuam vivendo nos filhos, nos netos, nos negócios começados há décadas e mais décadas. Ninguém tem fim. Ninguém faz falta. Ninguém morre. É proibido, é pecado afrontar a eternidade.
Só as cidades grandes matam e deixam morrer. São esquecimento. Esquece-se o que se comeu pela manhã, e também se esquece a paixão louca e devoradora da noite, que apaga da mente o nome daquele que desperta ao lado, e que, constrangido, veste-se e vai embora. A vida lá é sempre nova a cada amanhecer. Sempre outra. E não se tem compromisso algum com o minuto que acabou. Há relógios que marcam o fim de todas as coisas. Nas pequenas cidades não há relógios, há sinos que embalam o sono do qual não se deve despertar.
Só os grandes centros têm também daquelas manadas que explodem por um triz, que aparecem na TV, incendiando ônibus, jogando pedras, uivando. Depois sossegam. Ordeiros, vão para casa e viram gente comum. Só as grandes cidades têm loucos varridos. Nas pequenas, só há os mansos, os loucos integrados, medicados pelo próprio ambiente que assimila tudo. Não há adeus. Só até logo, melhor: inté. Inté ali, que tudo é feito de esquinas e cruzamentos. Dá-se a volta ao mundo contornando a praça, e até os cães têm por lá uma solenidade envolvente, uma insolência conquistada no ocupar todo o espaço das calçadas estreitas, para onde as janelas e as portas se abrem. Onde não há passos silenciosos, porque todos fazem eco.
Nos grandes centros somos o que queremos ser. Nas pequenas cidades somos o que é feito de nós, uma referência, um nexo causal associado a qualquer coisa que faça parte daquela existência, e nos tornamos, no máximo, parte da paisagem, pois só como parte da paisagem, inseridos na rotina e na regularidade das coisas e dos acontecimentos, é que nos integramos.
Tudo ali na província toma uma importância e uma dimensão à qual aquele vem de longe não está acostumado. As pequenas cidades possuem uma realidade constrangedora que não é feita para pensar nem sentir, porque simplesmente é. Mesmo a linguagem dos monumentos é desnecessária, uma vez que a pedra grande já é bela e grande que chegue. Muita coisa é desnecessária por lá. Espaço principalmente, porque lá se troca espaço por tempo, que se tem demais. E cabe-se em nós. Cada um morando em si, que é justamente para onde o migrante vai migrar. Às avessas.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini

domingo, 22 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL


▼ MATÉRIAS
OS GRANDES HOMENS
segunda-feira, 23 de julho de 2012
Nessa multidão servil, cega, ignorante, que foi a humanidade do passado e que é a humanidade do presente, às vezes algumas inteligências têm aparecido, serenas e audaciosas, antecipando o amanhã, descobrindo verdades novas, amando a justiça, vagos clarões esparsos que lançam alguma luz nas trevas de uma noite profunda. Esses benfeitores, grandes pela audácia e pelo gênio, têm sido, sem dúvida, recompensados pelos seus irmãos humanos? Vejamos o que nos diz a história.

Sócrates, o sábio dos sábios, ousou, em pleno paganismo, sustentar que as superstições mitológicas eram tradições ridículas; que se devia conhecer a si mesmo e não ter outra regra de conduta que a consciência e, como regra de crença, a razão. Mas ele foi vaiado pelas multidões. Aristófanes ridicularizou-o ultrajosamente no teatro. Pretensos juízes acusaram-no de corromper a juventude, e ele foi condenado à morte. A cicuta propiciou-lhe uma morte bastante suave, mas era a morte, de qualquer forma.
Jesus Cristo, alma terna e mística, inacessível ao ódio, pregou o perdão das injúrias, a piedade para com os infelizes e os pobres, a igualdade dos míseros humanos diante do Pai Celeste. Doutrinas novas que teriam devido mudar a face do mundo. Muito bem! Jesus Cristo foi condenado a uma morte ignominiosa e dolorosa. Muito jovem ainda, esse ser quase divino foi crucificado, metade como rebelde, metade como demente, sob os aplausos de uma multidão bárbara.
Cristóvão Colombo, sozinho contra todos, concebeu uma grande coisa. Em torno dele, todo mundo acreditava que a Terra era chata como um prato de sopa. Mas ele, ele compreendeu... Provido de alguns miseráveis navios, ele ousou aventurar-se a mares desconhecidos. Sua equipagem revoltou-se, mas ele se manteve firme frente aos motins e, ainda que parecesse ceder, obstinou-se em seu pensamento fecundo. Abordou, enfim, uma nova terra. Um Novo Mundo foi adquirido para a velha humanidade... E, como recompensa, ao seu retorno à Europa, ele foi acorrentado, colocado na prisão, ameaçado de morte. Por milagre, escapou aos suplícios. De qualquer sorte, morreu pobre, injuriado, exilado, vilipendiado, traído.
Galileu concebeu e executou coisas maravilhosas. Ele inventou o termômetro. Ele inventou o telescópio que lhe permitiu ver mundos imensos até então insuspeitos, e compreender que ínfimo lugar tem nosso planeta terrestre no vasto universo. Mas os homens têm um santo horror à verdade. Galileu foi obrigado a ajoelhar-se diante da estupidez triunfante, e ele arrastou ― cego ― os seus últimos dias numa prisão.
Gutenberg, que inventou a imprensa; Palissy, que criou a paleontologia e a cerâmica; Jenner, que descobriu a vacina; Harvey, o primeiro a realizar a verdadeira fisiologia experimental, tiveram todos as suas existências envenenadas pelas proscrições, as perseguições, os processos, as zombarias e a pobreza.
Michel Servet que, sem apoio, sem mestre, compreendeu que o sangue circula para ir do coração direito ao esquerdo, passando pelo pulmão, Michel Servet foi queimado.
Savonarola foi queimado. Queimado também o admirável Jean Huss. Ambos tiveram a audácia de pregar uma moral pura a corruptos.
Lavoisier que, sozinho, fez nascer as duas mais belas ciências abordáveis pelos mortais, toda a química e toda a fisiologia, Lavoisier, cujo nome deveria ser considerado como o maior nome da ciência, Lavoisier foi guilhotinado em praça pública em Paris.
Denis Papin viu sua embarcação incendiada e feita em pedaços pelos barqueiros do Reno.
Descartes que, como Sócrates, ousou falar dos direitos da razão humana, teve de fugir de sua pátria e morrer no estrangeiro. Espinosa, um genial e ousado pensador, foi vítima de perseguidores cruéis. O mais maravilhoso escritor francês, Victor Hugo, viveu vinte anos no exílio. O sublime escritor espanhol, Cervantes, passou a metade de sua vida no cárcere e nas prisões de forçados. O corpo de Molière foi jogado no lixo.
Um dos mais encantadores poetas latinos, Ovídio, foi condenado a um longo exílio entre os bárbaros. Como Eurípides, André Chénier pereceu no cadafalso, Chatterton morreu de fome. Voltaire, Sílvio Pellico, Mickieviez conheceram, eles também, as prisões e o exílio. Sêneca foi obrigado a matar-se. Um soldado bêbado matou Arquimedes.
Demóstenes e Cícero, ou seja, os maiores oradores de todos os tempos foram assassinados pela soldadesca.
E está é apenas uma enumeração incompleta.
Tais são as recompensas que os homens reservam aos mais nobres representantes da espécie humana.
Quanto mais a multidão é medíocre e estúpida, mais ela persegue com seu ódio aqueles que, ingenuamente, procuram atenuar sua mediocridade e sua estupidez.








Da obra O Homem Estúpido ― L’homme stupide, Ernest Flammarion Éditeur, Paris, 1919. Tradução : Maristela Bleggi Tomasini.

Autor: Charles Richet-Tradução : Maristela Bleggi Tomasini 

terça-feira, 17 de julho de 2012

Raridade

Pouca gente sabe que a filha de César Lombroso, Paola, escreveu um livro sobre os sinais reveladores da personalidade. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

O DIA DA MORTE DE REBECA 
quarta-feira, 18 de julho de 2012
Rebeca ia morrer. Ela ainda não sabia, mas não tinha mais que algumas horas de vida. Naquele instante pensava apenas em pegar suas coisas e deixar o apartamento de Klaus o mais rápido possível, antes que ele chegasse e a encontrasse naquele estado. Rebeca sofria. Era orgulhosa, porém, e silenciava.Sua fuga era o diário, onde consumia páginas e mais paginas com a letra regular, entremeando o texto com desenhos. Sentia a presença da outra como um espectro, reinando do exílio.

Rainha deposta, se não perde a cabeça, permanece coroada.
Até que alguém lhe mostrou a foto: Klaus ao lado da outra, muito alta, decotada, segurando um ramalhete de rosas vermelhas, como se houvesse sido homenageada. Aquilo feriu Rebeca profundamente. Ela decidiu que era o fim. Deixou a foto sob o travesseiro dele e continuou a buscar por suas coisas.
Lembrava-se bem de como tudo começara. De como se deixara encantar por Klaus, por sua persistência, por seus galanteios, ferozmente empenhado em conquistá-la. E quando Rebeca estava mais fragilizada, foi nele que encontrou a serenidade que desconhecia. Percebeu então que era capaz de uma ternura sem limites por aquela estranha criatura que a fizera repensar sua vida, esta mesma vida da qual se sentia por vezes tão cansada e apática. Com ele, dava-se ao luxo de deixar-se levar por suas inconsequências e impulsos. Entregava-se aos sentidos e percebia o mundo com intensidade. Com ele, podia virar criança, fazer-se irresponsável, atirar-se ao ato de gostar por gostar. Podia pisar em falso e afrontar o abismo, pois sabia que ele não a deixaria jamais sofrer os efeitos dessa queda. Podia desejar com aquele desejo primário que descobriu que ocultava em alguma instância misteriosa de sua alma ou de seu útero. Diante dele, levava seus pensamentos e desejos ao absurdo. Ele a escutava, ora interessado, ora encantado em alguma coisa que não era exatamente nem sua voz, nem suas palavras, mas ela mesma. Klaus adivinhava cada pequeno desejo seu, que satisfazia antes mesmo que ela pensasse em mencioná-lo.
Rebeca, que já cansara de reinventar-se, e que poucos encantos encontrava na tarefa de existir, não tinha motivo algum para impedir-se de viver o que ele lhe propunha. E vivia isso minuto a minuto, deixando-se impregnar pelo intenso misticismo dele. Eram um par insólito. Ela, pequena, frágil, delicada de formas, pulsos muito finos, mãos e péspequenos; ele, imenso, grotesco em sua obesidade, mãos e pés enormes. Mais forte do que gordo, era de uma carnadura sólida. Coberto de pelos, lembrava, à meia-luz, uma figura mítica, sensual, capaz de um erotismo inaudito, que deliciava Rebeca, tornando-a cada vez mais atraída por essas instâncias ocultas de Klaus, das quais se tornara extremamente possessiva e ciumenta. Descobriu que o desejava como seu, e agia como proprietária, como dona absoluta daquele corpo sobre o qual imperava. Isso a fez desejar ser o que ele queria que ela fosse, tornando-se inteiramente dele, carne de sua carne e osso de seus ossos.
Fizeram-se espírito e matéria, num estranho paradigma alquímico. Ela deixou de ser quem era para entregar-se à experiência de tornar-se todo o mundo dele. A brutal diferença física que existia entre ambos fazia deles uma espécie nova de par, onde masculino e feminino contrapunham-se com meridiana clareza. Ele a tratava como sua Grande Obra. O misticismo de Klaus não permitia que sua paixão tivesse lugar num cenário restrito ao meramente existencial. Era uma presença sempre atenta, intensa, pulsante, que impressionava Rebeca profundamente. Ele era sagaz e determinado, mas dava lugar à fantasia e à imaginação. De Rebeca, desejava a alma e, pressentindo que ela, agnóstica, se recusava a ter uma, sentia-se cada vez mais instigado a buscar suas instâncias mais ocultas e obscuras. Atraídos mais pelas diferenças do que por alguma eventual identidade, viram-se vítimas do que Rebeca pensava ser, afinal, aquilo a que todos chamavam paixão.  Não hesitou em mudar-se para o apartamento de Klaus, levando algumas de suas coisas para lá, na maioria, livros. Fez uma exigência, todavia. Não queria saber de Derlene por perto. Foi clara:
 — Não quero vê-la cruzar o meu caminho ― dissera.         ― Rebeca, eu quero você. Não preciso de outras mulheres.

Preciso de uma que 
contenha todas as outras, mas que não se assemelhe a nenhuma delas. E esta, minha cara, é você. Inclusiva e excludente, santa e prostituta, iniciada e profana. Eu prometo viver para você, Rebeca. Sempre quis isso, sempre quis dar um sentido mágico à minha existência, e homem algum existe sem o seu oposto. A natureza repudia os solitários. O simbólico é a verdade intuída em sua essência mais profunda. Prometo-lhe que não haverá nenhuma outra mulher além de você.
 ― Não minta para mim, Klaus. Nunca ― disse-lhe Rebeca.
        
― A verdade tem muitas faces, para que possa ser o que é.

Se formos capazes de 
olhar apenas um para o outro, nada será capaz de romper nossa unidade. Olhe sempre para mim, porque você não será capaz de me reconhecer através das máscaras que emprego para lidar com o mundo. Para você, Rebeca, eu prometo ser quem sou.
 ― Você é poético. Em certos momentos, me encanta.
             Em outros, me assusta 
― disse ela.
 Eram diferentes, sim, de naturezas singularmente opostas. Juntos, contudo, assimilavam-se, formando um casal olhado com espanto e desdém. De algum modo misterioso, ela sabia quem ele era, conseguia penetrar-lhe a natureza bem além da fachada de bizarria mística, e encontrava aí um homem capaz de intensas paixões.
Por algum tempo, permaneceram absorvidos pelo que lhes sucedeu na noite em que Rebeca foi para cama com ele, descobrindo outro homem dentro de Klaus. Teve, contudo, de enfrentar também a descoberta de outra Rebeca dentro dela. Uma mulher lúbrica, inquieta, tão desejosa quanto desejada. Rompeu-se uma barreira e, para surpresa de ambos, eram reféns de algo que os empurrava um para o outro, como se fosse uma terceira vontade, irresistível. Rebeca não queria admitir, a princípio, mas ele a atraía mais que qualquer outro homem que conhecera.
Até que as coisas começaram a mudar. Não se via mais refletida nos olhos dele, como antes. Foi aos poucos, lentamente. E agora...
Há lugares que não nos pertencem, assim como há histórias que não são a nossa. É preciso retirar-se, enfiar-se por dentro da pele, secar os olhos e gelar o sangue. Não ia disputar um homem a tapas, embora pudesse arrancar com as unhas os olhos melosos e lacrimejantes da outra, seus cabelos ressecados e vermelhos, apagando daquele rosto macilento o ar de beatitude cristã que simulava quando queria. Ele não se desligaria daquela mulher nem que quisesse. E ele sequer queria.
 — Chega! ― disse ela em voz alta.
 Hora do adeus. Ia embora dali, para sempre, agora mesmo. Pegou seus livros, o diário, as poucas roupas que trouxera. Arrumou tudo às pressas numa sacola. Lembrou-se então de seus objetos pessoais no banheiro do quarto do casal. Lembrou-se dos banhos quentes que ele lhe dava, tratando-a com delicadeza e carinho, chamando-a de sua femeazinha, protestando quando não se secava direito. Corria atrás dela com toalhas quentes e levava-a para cama, toda enrolada, protegendo-a de um frio imaginário. Mimava-a como uma criança, enquanto sorria e brincava que, descabelada, sem maquilagem e com os cabelos molhados, ela era muito mais Rebeca.

― Talvez faça isso também com aquela outra
― pensou, magoada. Os objetos eram-lhe todos familiares.

Tocou no sabonete e na colônia de rosas Gallet, no batom rosado que deixava ali.
Sentiu raiva então. Um ciúme profundo, e muita raiva. Teve vontade de riscar o espelho ao olhar-se. Estava lívida, os lábios contraídos, com olheiras marcadas, profundas e escuras. Não queria chorar mais, não queria. Pegou o batom e escreveu no espelho, com letras enormes um palavrão e uma citação obscena. Depois, consternada e envergonhada, esmurrou com toda força o próprio reflexo, como que punindo a si mesma, lambuzando as mãos de batom e chorando como chorava quando era criança. Soluçava, sem conseguir respirar direito, sacudida por espasmos. Estava patética. O nariz corria, e depressa ela procurou consolar-se, apagando com toda força, cada vez mais, o palavrão e as obscenidades. Cortou-se assim no pesado espelho trincado que se quebrou em parte, despencando de um lado.
sangue foi aparecendo, abundante, brotando dos cortes nos braços e pulsos de Rebeca. Ela lambeu-se. Sentiu o gosto de ferro e o ponto do sal. Olhava-se sangrar, como que absorta na cor vermelha, intensa, que sabia a paixão. Abriu as torneiras e depressa lavou o rosto e os braços que não paravam de sangrar. Chorava. Lavou mais, cada vez mais, até sentir o bem que a água lhe fazia. Pensou então em todos os líquidos que dissolvem todas as coisas. Pensou em alquimia, em senhas, em sinas, em magias, em tudo aquilo em que ela nunca acreditara. Pensou no mar, em todas as águas do mundo, lembrou-se das praias, de como era bom deixar-se levar pela correnteza. Flutuava em pensamento, e daí quis chorar tudo aquilo até o fim. Ritualizou todas as águas que conhecia, quase quebrando as torneiras a custa de abri-las cada vez mais, enquanto procurava fazer-se sarar da dor e dos cortes. Sangrou até o fim, misturando o seu sangue na água. Sangrou até a última gota de seu orgulho, e voltou a olhar-se no espelho.  Sui caederes. Só viu a parede e a porta que ficavam atrás dela, do outro lado de onde estivera seu corpo. Não entendeu. Olhou novamente. Ela não estava mais lá nem em parte alguma. Só havia o espelho quebrado pela metade. De Rebeca restou apenas a dor.
Autor: Maristela Bleggi Tomasini

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os Sistemas Orgânicos de Produção e a Legislação


Sistemas orgânicos de produção animal e vegetal são regulamentados pela legislação. Isso significa que um produto, para que seja considerado orgânico e como tal fazer jus à certificação, deve ser produzido segundo regras recentemente editadas pelo Ministério da Agricultura:  a Instrução Normativa n° 46 de 6 de outubro de 2011.
Quando se pensa em produtos orgânicos, o que nos ocorre é alguma coisa produzida sem o uso de agrotóxicos, que tanta polêmica geram pelos efeitos maléficos que sabidamente podem causar. Entretanto, fertilizantes podem ser usados na produção orgânica, desde que se insiram na categoria de agentes biológicos ou sejam produto de um sistema de compostagem.
A conformidade orgânica deve ser avaliada a cada etapa da produção, e os sistemas devem buscar sempre preservação ambiental, atenuação de seus efeitos sobre os ecossistemas, sejam eles naturais ou modificados, o uso racional dos recursos naturais, o incremento da biodiversidade e a regeneração das áreas degradadas. Do ponto de vista econômico, os sistemas orgânicos devem buscar melhorias genéticas, a manutenção das variedades, sejam elas locais, tradicionais ou crioulas, que se encontrem sob ameaça de erosão genética, promovendo a sanidade das espécies animais e vegetais e valorizando aspectos culturais, especialmente no que concerne à regionalização dos produtos. Do ponto de vista social, são valorizadas as relações de trabalho, sempre com vistas à melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, com sua capacitação continuada dos agentes envolvidos em cada etapa da produção.
Há exigência de registro de todos os procedimentos inerentes às etapas de produção, e que devem permanecer disponíveis por no mínimo cinco anos. Além disso, deve existir um plano de manejo que contemple o histórico de utilização da área, manutenção da biodiversidade, manejo de resíduos, conservação do solo e da água.
De fato, não é fácil cumprir com todas as exigências impostas pela legislação, observando ainda uma série de proibições e restrições, como por exemplo o uso praticamente exclusivo de sementes também oriundas de sistemas orgânicos, a proibição de utilização de organismos geneticamente modificados, de agrotóxicos sintéticos. O manejo das pragas, nos sistemas orgânicos, é bastante complexo. A limpeza dos locais só pode ser efetivada mediante o emprego de determinados produtos, sempre biodegradáveis. Da mesma forma, a prevenção e tratamento de enfermidades sofre restrições, bem como o tipo de alimentação destinada aos animais. Por exemplo, para tratamento de doenças, são priorizados preparados homeopáticos ou fitoterápicos; a alimentação dos animais é natural, com uso de melado, farinha de algas — para redução do teor de iodo — pós e extratos de plantas.
Enfim, não é simples produzir dentro do sistema, e os produtos, sejam eles de origem animal ou vegetal, obtidos a partir de tal prática possuem um diferencial que os torna, ao menos em tese, senão mais saudáveis, por certo menos nocivos à saúde. A certificação depende dessa conformidade, e quem se propõe a alcançá-la deve cumprir rigorosas exigências. Ao menos é isso que o consumidor, certamente, espera quando confia que o produto que adquire, pagando inclusive mais por ele, seja, de fato, orgânico. 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

REVISTA VIDA BRASIL

ROQUE
segunda-feira, 9 de julho de 2012
Sempre duvidei da razão e das pessoas que conseguem viver de forma equilibrada. Eu acho que até consigo afetar certa normalidade e manter-me dentro das regras, inclusive gramaticais, muito embora deslize pelo português eventualmente, isso quando não troco letras, nomes de coisas, pessoas, autores. É embaraçoso, mas preciso me esforçar para parecer uma pessoa centrada e assertiva, sem muito sucesso, contudo. No fundo, faço de conta que sou normal; acho que os outros fazem de conta que acreditam!


É bem diferente, porém, quando me vejo frente a frente com gente maluca. Na mesma hora, numa fração de segundos, tudo muda. Coisa engraçada! É um alívio poder sentir-se à vontade. Sabe-se que o outro nos entende, que percebe nossa forma de sentir e de estar no mundo. Assim foi conhecer o Roque pessoalmente. De ouvir falar, já sabia dele. Era o louco que vivia numa pequena cidade do interior de São Paulo.
Não é difícil imaginar uma cidadezinha de mil habitantes, com ruas estreitas, calçadas que mal dão passagem a duas pessoas caminhando lado a lado, fachadas a um metro do meio fio, com portas e janelas que se abrem direto para a rua. Casas pequenas, coloridas, coladas uma na outra, que desenham a paisagem em subidas íngremes seguidas de descidas abruptas, mais uma pracinha com bancos brancos, árvores, uma imagem de santa, uma igreja, banheiros públicos, lojinhas, muitos cachorros que andam soltos por ali, coçando-se, e que nos olham como a mesma pasmaceira que plasma as coisas da província: lenta, muito lenta, vagarosa, densa. Os falares são cantados, e as frases terminam assim, sem ponto. Forte. Todos falam muito alto, e a voz das mulheres é estridente e cantada como a fala das maritacas. Os homens são rouquenhos. Tudo é muito respeitável, como deve ser. Tudo é muito óbvio, menos o Roque.
Roque fala de si na terceira pessoa. Bebe muito. Como louco que vive em liberdade — espécie de bode expiatório — ele reclama e detém a prerrogativa do discurso, sendo-lhe dado o direito de falar o que bem entende do jeito que bem entende. Conhece cada um dos habitantes do lugar, sua história, suas emoções, seus bens, seus males. É o senhor da memória. Sabe causos, lendas, ditos populares; sabe segredos de vivos e mortos. Nada lhe escapa. Sua relação com os habitantes locais, no entanto, é singular. Simbiótica, eu diria.  Roque ganha tudo aquilo de que necessita para viver, e recusa-se terminantemente a exercer qualquer ofício. Muitos são os que tentam reconduzi-lo aos caminhos da razão, mas Roque, muito embora compreenda perfeitamente bem o que esperam dele, continua sendo simplesmente Roque. Não aceita horários, disciplina ou tarefas. Aceita comida, dinheiro, presentes, mas não admite que isso lhe seja, de qualquer forma, cobrado. É independente, livre, e senhor de si.
Quando encontrei Roque pela primeira vez ele estava sóbrio. Na verdade, sempre está, mesmo quando bebe. Manteve-se solene na minha presença, mas notei que me observava e que analisava minhas reações. Dele eu sabia que era o louco da cidade, assim mesmo: oficialmente, como só pode acontecer na província, onde a rotina, quem sabe, já se torna por si mesma uma camisa de força mais eficiente que os medicamentos dados aos loucos metropolitanos. Ele, de mim, sabia que era Maristela, gaúcha, que viria à cidade, inclusive para conhecê-lo. As apresentações foram formalizadas. Falamos pouco. Seu aperto de mão era quente e forte. Entre os presentes, a conversa ia pelos entretantos, e eu me esforçava por parecer atenta. Percebi que Roque me olhava firme. Um olhar doce, meigo, capaz de perceber o outro a fundo. Acho que foi nesse instante que entendi a trágica loucura do Roque; como ele, por certo, minha trágica racionalidade. Ele bebe; eu escrevo. Ambas as condutas nos expõe a incontinências, e é preciso saber escapar a patrulhas, refinar-se na arte dos olhares, no requinte dos comportamentos.
Por vezes, triste, diz simplesmente que “tem dia que é noite” e, quando a gente lhe pergunta se está tudo bem, diz que “tá ruim, mas tá bom”, quando não afirma o contrário.
Terminadas as apresentações e o correto preenchimento do espaço com as palavras de praxe e as despedidas de ofício, Roque foi embora. Seguiu-se o jantar. A noite encontrou a casa sossegada, com todos se acomodando à presença da hóspede que, aos poucos, se habituava à paisagem, ao ritmo, aos sons dentre os quais se destacava o sino da igreja que assinava horas e meias horas, uma por uma, dia e noite. De repente, batidas fortes e insistentes na porta da rua anunciavam que alguém quebrava protocolos. Era o Roque.
Muitos anos podem se passar, mas nada me fará esquecer do que vi então. Ele se apresentava vestido a caráter. Por cima de calças muito largas, usava uma camisa enorme, cuja estampa era o rosto de John Lennon. Na cabeça, por baixo do chapéu de abas moles, trazia uma peruca de tranças, ao estilo rastafári, com cachos que caiam por sobre os ombros e iam até a metade das costas. Usava ainda um casaco mais curto por cima de tudo. Calçava chinelos. Nas mãos, uma mala de couro marrom, modelo antigo, de conteúdo misterioso, que ele trouxera ali para mostrar-me. Fiquei tão comovida quanto surpresa com aquela singular aparição. No mesmo instante tive a mais absoluta certeza de que me encontrava, não na presença de um louco, mas diante de O Louco, arquétipo que habita nosso imaginário desde sempre. Eis um desses raros instantes da vida onde a humilde realidade recua diante da fantasia. Fiquei olhando para aquela figura alegre, que gesticulavateatralmente na pequena sala, rodopiando, como se dançasse, antes de me explicar, com cuidado, que ali estava seu tesouro.
Ocorreu-me então que os conteúdos da loucura sempre se materializam de alguma forma. Roque caracterizou-se para visitar-me, trazendo-me o que tinha de mais seu: mistérios que cabiam dentro de uma mala. Andarilhos percorrem o mundo com sua trouxa, fragmentos de coisas, pessoas, emoções, achados. Roque viera até ali para revelar-se.
Sentei-me no chão da sala e, atenta, vi ser aberto o único fecho de pressão que ainda mantinha firme pelo menos um dos lados da tampa da pequena mala de couro marrom. Dentro dela, objetos curiosos, documentos, uma carteira de trabalho, fotos, poeira, papéis amassados guardados dentro de sacos plásticos. Tenho certeza de que cada um daqueles elementos é o elo mágico onde se prende alguma história. Fascinada, queria saber de tudo, quando meus olhos bateram em cheio numa letra bonita, desenhada com rebuscadas guirlandas muito delicadas. O traço fino denunciava uma escrita feminina. Eram cartas. Cartas de amor.
Há alguns anos, a saúde do Roque piorara de tal forma, que os moradores da cidade decidiram promover sua internação num manicômio. Longe da bebida, ainda que não recuperasse aquilo que se entende por plena lucidez, certamente daria férias ao organismo ressentido dos efeitos do álcool. Foi onde conheceu a autora das cartas. Pelo que entendi, ambos tiveram algum tipo de envolvimento sobre o qual Roque nada me falou. Limitou-se apenas a me deixar ler uma das cartas, onde ela se despedia dele, ao que parece, para sempre. Dizia que estivera disposta a amá-lo e a dedicar-se inteiramente a esse amor. Contudo, entendera que Roque não era homem de prender-se a nenhuma mulher, que ele pertencia ao mundo e à sua liberdade. Dizia ainda que ele não seria nunca capaz de ligar-se a uma pessoa, porque estava bem longe disso, entregue à sina delirante que o fazia andar pelo mundo, ainda que este mundo se encontrasse restrito às ruas da pequena cidade onde vive. Era uma carta de amor, sim; mas era, sobretudo, um tributo à loucura entendida por ela como rival, como uma concorrente que lhe roubasse toda e qualquer possibilidade de ter Roque pelo coração. Não tive mais chance de fuçar na misteriosa mala do Roque, descobrindo nela outros segredos.
Era uma carta de amor, sim; mas era, sobretudo, um tributo à loucura entendida por ela como rival, como uma concorrente que lhe roubasse toda e qualquer possibilidade de ter Roque pelo coração.
Numa de minhas idas à sua cidade, Roque foi esperar-me no aeroporto, lugar onde jamais estivera antes, ainda que Guarulhos não fique a mais de 200 km de onde mora. Em momento algum o tamanho e a imponência do lugar afetaram-lhe a serenidade. Seguia com olhos atentos e muito escuros o ir e vir das escadas rolantes, ponderando sobre as facilidades que um engenho como aquele poderia oferecer se fosse possível tê-lo no mato, lugar onde se entrega à prática de caçar peixes, como diz. Quando sentiu sede, mostrou alguma surpresa com a gratuidade da água, que podia ser sorvida diretamente dos bebedouros automáticos com que facilmente aprendeu a lidar. Na saída, observava os carros que obedeciam ao comando das sinaleiras. Perguntou se ninguém cuidava, e pareceu-lhe estranho que os motoristas fossem obedientes, ainda que ali não houvesse nenhum policial fardado, ostentando sua autoridade. Tenho para mim que Roque repudia qualquer coisa que exerça função de controle. Leva a liberdade ao extremo, e talvez não seja errado afirmar que é dela própria um refém.
Dentre as coisas das quais mais gosta está o rio e sua cachoeira, o mato e música em geral. Roque possui um refinado sentido musical. Conhece bem melodias, letras, cantores, e é capaz de improvisar e cantar com ritmo. Seu vocabulário, naturalmente, é pobre, dada sua condição social e cultural. No entanto, seu pensamento é rico, e ele produz notáveis figuras de linguagem para falar de si, dos outros, da natureza, das coisas. Da mesma forma, ele profetiza com esses seus ditos, especialmente quando exclama seu “ô lasquera!” ou mesmo quando se queixa de alguém que quer lhe “comer o talo”. Por vezes, triste, diz simplesmente que “tem dia que é noite” e, quando a gente lhe pergunta se está tudo bem, diz que “tá ruim, mas tá bom”, quando não afirma o contrário.
Roque gosta de ouvir rádio. Pediu-me um, mas deixou bem claro que o presente só seria bem vindo com garantia do fornecimento de pilhas. Ele está certo. Sem
pilhas, o presente perderia sentido. Não apreciou os chocolates de Gramado que um dia lhe dei, porque o estado de seus dentes não permite mais que coma doces sem sentir dores. Sempre que sabe que estou na cidade, procura vestir, em minha homenagem, ou a camisa do Internacional, ou a da Revolução Rio-grandense,ostentando o símbolo da República Farroupilha. Não sei como consegue ser tão cuidadoso com tais peças de roupa que lhe dei já faz tempo, e que ele conserva com todo cuidado. Roque é o verdadeiro Maluco Beleza que Raul Seixas eternizou. Merecer sua amizade, seu afeto e seu respeito é uma honra, um elogio à minha humanidade.

Autor: Maristela Bleggi Tomasini