sábado, 27 de dezembro de 2014

Conceitos

"Os conceitos são, assim, abstrações às quais os historiadores comparam a realidade, sem explicitá-la sempre. Eles, de fato, raciocinam sobre a diferença entre os modelos conceituais e as realizações concretas. Eis porque os conceitos introduzem uma dimensão comparativa, mais ou menos explícita, em toda história, referindo aí, a um mesmo modelo ideal-típico, os diferentes casos estudados. A abstração do ideal-tipo transforma e diversidade empírica em diferenças e em similitudes que fazem sentido; ela faz ressaltar, ao mesmo tempo, o específico e o geral".
PROST, Antoine. Douze leçons sur l'histoire. Paris: Seuil, 1996, p. 134.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

História e Memória

"A história dos historiadores coroados pelas academias mostra-nos só a sala de visitas dos povos. (...) Mas as memórias são a alcova, as chinelas, o penico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal (...) da humanidade." 
Monteiro Lobato em carta a Godofredo Rangel, São Paulo, 9/5/1913.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

PRONATEC

Instituto Federal do Rio Grande do Sul – Campus Osório
AULA INAUGURAL


Alunas do curso "Aplicador de Revestimentos Cerâmicos" assistem a palestra sobre valorização da mulher

A turma de mulheres do curso "Aplicador de Revestimentos Cerâmicos", ofertado em Arroio do Sal por meio "Mulheres Mil" - subprograma do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), participaram da Aula Inaugural realizada em 18 de novembro de 2014 na Sociedade dos Amigos de Arroio do Sal (Saas).
A atividade iniciou com as professora Ana Beatriz Ferreira e Marta Maria da Silva apresentando o projeto "O Viver das Águas" - documentário que resgata a história das lavadeiras no arroio que dá o nome ao município de Arroio do Sal.
O evento seguiu com as falas das autoridades presentes: coordenadora-adjunta do Pronatec no Câmpus Osório, Ana Paula da Luz; secretária de Assistência Social, Maria Margarete Teixeira; vereador Carlos Henrique Dias e a supervisora do curso, professora Nora Lucia Klingelfus. Foram ressaltadas as potencialidades da turma e a grande expectativa de empregabilidade após a realização do curso de qualificação profissional - único da região na área da construção civil.
Por fim foi apresentada a palestra "Participação feminina na sociedade brasileira", pela advogada Maristela Bleggi Tomasini. Ela ressaltou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que atuaram em momentos importantes da história do nosso país e as conquistas obtidas com muita luta. "O preço pago para termos nossos direitos atuais assegurados foi muito alto, e ainda continuamos pagando. Fico feliz em saber que o currículo de vocês conta com disciplinas focadas em tópicos de cidadania, direito e qualidade de vida, pois mentalidade só muda com educação" - concluiu.
A atividade encerrou com a exibição de um vídeo produzido em sala de aula pelo professor Hirã Soares Justo, no qual as alunas falavam sobre suas expectativas em relação ao aprendizado que será obtido com as aulas teóricas e práticas.
 Fonte: http://www.osorio.ifrs.edu.br/site/conteudo.php?cat=1&sub=1559

domingo, 2 de novembro de 2014

Minha Querida Lysia


L. tem estudado?
São Lourenço 18/05/1954.
Minha Querida Lysia.
Estamos em São Lourenço, des-
de o dia 14; vamos bem e tudo
corre bem. O Congresso realiza-
se normalmente, com bastan-
te entusiasmo, trabalho e ordem.
Recebeste o meu telegrama,
daqui? Saímos do Rio, dia 14,
às 2 horas da tarde, mais ou­
menos, num avião da F.A.B.,
mas não pudemos [sobrescrito] aterrissar
aqui, porque o piloto não em-
controu “teto” e nós voltamos
ao Rio. Sabes lá o que é isso?
Então, imagina...
Jantamos no Galeão e à tar-
dinha, rumamos novamente

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O LIVRO DOS CEM ANOS DO LABORATÓRIO DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL DA ESCOLA NORMAL SECUNDÁRIA DE SÃO PAULO






O LIVRO DOS CEM ANOS DO LABORATÓRIO DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL DA ESCOLA NORMAL SECUNDÁRIA DE SÃO PAULO é uma obra comemorativa da passagem de dez décadas que nos distanciam de um fato histórico de suma importância para a História da Psicologia do Brasil e, muito especialmente, de São Paulo. Uma história conhecida, é verdade, e, além disso, publicada até mesmo nos menores detalhes em artigos acadêmicos. Reeditar o que já havia sido escrito não seria justificável. Havia, contudo, o significativo acervo de fotografias de Rogério Centofanti, muitas delas tratadas digitalmente; havia livros, obras da época; havia ainda a facilidade de acesso a revistas e jornais disponibilizados ao público. Por que não contar essa história do ponto de vista da época? Assim, em parceria com Maristela Bleggi Tomasini, ― cujos interesses abrangem memória e história ―, teve início a coleta de materiais, uma busca que passou por centenas de notícias de jornais, leituras de revistas, imagens e obras. Tendo como ideia central o Laboratório, foram articulados quatro capítulos para explorar o tema, mas do ponto de vista da época, de OUTROS TEMPOS, portanto, na vigência de outras representações, de outras sensibilidades e sociabilidades: entre imperialistas e republicanos misturavam-se deístas, teístas e livres-pensadores; havia preclaros e insignes, normalistas que se chamavam das Dores e das Graças, todos habitando uma São Paulo que já se queria vanguardista, moderna, que ansiava pelo progresso, este fetiche que provocava o imaginário e que definia identidades. A par disso, o ocaso de um Império que ainda impregnava o espaço urbano semeado de representações, especialmente na arquitetura. A cidade era palco de disputas e tensões das quais a imprensa nos fornece testemunhos cabais. Esse esboço de cenário de outros tempos requer uma especificação, pois era preciso identificar onde o Laboratório iria acontecer, seus antecedentes, portanto: PRAÇA DA REPÚBLICA. UMA PEDRA, UM PRÉDIO, enfim, que ostentava toda força representativa de um sentir republicano, ansioso por modelos e receitas importadas do estrangeiro, inclusive O LABORATÓRIO, verdadeiro cenário onde diversos atores protagonizaram seus papéis. Foram personagens que se buscou compreender e evidenciar a partir de discursos e concepções vigentes então. Destaque, porém, a uma psicologia italiana, muito particular a São Paulo, marcando indelevelmente sua história. No palco, psicólogos, médicos, antropólogos, educadores dos mais diversos matizes e tendências disputavam nada menos que um modelo de homem, ora corpo biológico, ora alma espiritual, mistérios cuja solução o laboratório não trouxe, nem em seu auge, nem tampouco em seu DECLÍNIO, abrupto e silencioso, mas nem por isso menos memorável. Daí este livro, e esta pequena história.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Minha Querida Lysia

Pretendemos ficar aqui até o dia 10.
Breve enviar-te-ei mais noticias. Foste ao prado?
Hotel [Timbre]
QUITANDINHA, 1° de abril de 1950
Minha querida Lysia.
Escrevo-te a lápis, porque a Parcker está com
o Francis, que se encontra neste momento, na
1ª reunião preparatória do Congresso. Graças
a Deus tudo até agora tem corrido bem. Fize-
mos uma ótima viagem de avião; chegámos
ao rio, exatamente 4 horas após a nossa saída
de Porto Alegre, e encontrámos um calor, ver-
dadeiramente carioca! Calcula tu, querida, eu
de casaco de camurça, boina de veludo e ca-
pa de peles!... Hospedamo-nos no Hotel OK

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

VII Simpósio Nacional de História Cultural


Entre os dias 10 e 14 de novembro de 2014 ocorrerá, na Universidade de São Paulo (USP), a sétima edição do Simpósio Nacional de História Cultural.

O Comitê Científico do GT Nacional de História Cultural [Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos (Coordenadora), Prof. Dr. Alcides Freire Ramos, Profª. Drª. Maria Izilda Santos Matos, Prof. Dr. Antonio Herculano Lopes, Profª. Drª. Mônica Pimenta Velloso e Profª. Drª. Nádia Maria Weber Santos], deseja dar continuidade ao trabalho desenvolvido nas edições anteriores, ou seja, divulgar pesquisas originais e, ao mesmo tempo, suscitar debates em torno de temas já consagrados no âmbito da História Cultural, sempre estimulando reflexões acerca de perspectivas teóricas e metodológicas, que dão base para os campos de interlocução do historiador cultural.

Se em encontros anteriores temas como Sensibilidades, Sociabilidades, Imagens, Linguagens, Representações, Paisagens e/ou as Escritas da História foram os eixos norteadores, nessa sétima edição, o Simpósio Nacional de História Cultural, por decisão do Comitê Científico do GT, se propõe a esquadrinhar, de maneira aprofundada, uma temática de grande interessepara os historiadores, a saber: HISTÓRIA CULTURAL: ESCRITAS, CIRCULAÇÃO, LEITURAS E RECEPÇÕES.

Esse tema central permite muitas possibilidades de trabalho que poderão ser contempladas pelos proponentes e participantes dos Simpósios Temáticos, a saber: História do Livro, História da Leitura, Estética da Recepção, Livrarias e Círculos de Leitura (circulação dos livros), História de Editoras e/ou Biografias de Editores, etc. Vale à pena destacar queessa temática norteadora não está limitada a uma determinada temporalidade, ou seja, pesquisadores de História Antiga, Medieval, Moderna, contemporânea ou de História do Tempo Presente poderão ser incorporados às atividades dos Simpósios Temáticos. Por outro lado, embora os livros sejam a nossa preocupação mais importante, isso não elimina reflexões a respeito de outras formas de texto escrito ou de leitura desses textos. Em outros termos: os participantes dos Simpósios Temáticos poderão falar de suas pesquisas sobre Revistas, Jornais, Obras científicas e/ou literárias, Histórias em Quadrinhos, Folhetos de Cordel, Panfletos, etc. Por fim, até mesmo as Imagens (Pictóricas, Fotográficas, Cinematográficas, etc) fazem parte das preocupações centrais do VII Simpósio Nacional de História Cultural, na medida em que elas (as Imagens) também podem ser pensadas a partir dos eixos da circulação, leitura e recepção.

Com efeito, os problemas centrais VII Simpósio oferecem a oportunidade para refletir acerca das diferentes maneiras de produzir, fazer circular, ler, receber e apropriar-se de textos e imagens, seja no âmbito propriamente teórico, num diálogo com ideias e conceitos que tem ampliado, nas últimas décadas, os horizontes investigativos e de pesquisa do Historiador Cultural, seja em sintonia com os temas e objetos privilegiados pelos historiadores que se voltam para esse campo. Em suma: o propósito do VII Simpósio Nacional de História Cultural é o de enfrentar tanto desafios teóricos e interpretativos, quanto analisar procedimentos e práticas atinentes ao ofício do historiador que se volta para a História Cultural.

Por fim, cabe esclarecer: o VII Simpósio organiza-se, à semelhança das edições anteriores, em torno de Conferências, Mesas Redondas, Simpósios Temáticos e apresentação de painéis de Iniciação Científica. Com isso, o Comitê Científico do GT e a Comissão Organizadora Local pretendem oferecer as condições básicas para que pesquisadores diversos e em momentos diferentes de suas formações possam se encontrar e debater de maneira produtiva suas propostas e ideias.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Porto Alegre Imaginada. Cidade, Cartas de Amor e Poesia

Porto Alegre Imaginada. Cidade, Cartas de Amor e Poesia é uma coletânea iconográfica que aborda a cidade a partir do imaginário de um apaixonado. Baseada em referências contidas em cartas de amor, documentos autênticos pertencentes a um arquivo pessoal, em mapas, em fotografias e em pinturas que têm por tema a cidade, a autora construiu imagens, recriando-as a partir dessas referências. Agora editado  como livro, o trabalho foi publicado pelo IPMS - Instituto de Pesquisa em Memória Social, e disponibilizado em Literatura.

O Diário de Francisco e outros Contos e Crônicas


Amor é memória.
Daí, quando passa, a gente dizer que esqueceu.

O Diário de Francisco e outros Contos e Crônicas é uma coletânea literária que reúne textos já publicados ao longo de 2012 na Revista Vida Brasil. Agora reunidos, foram transformados em um livro virtual editado pelo IPMS - Instituto de Pesquisa em Memória Social, em Literatura.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

In Oblivium (em breve)


Cartas, cartões, bilhetes, pequenos recados, agendas, diários, vivências rascunhadas, testemunhos eloquentes de um dado fático que se fez registrar. Não raro a perda, o descarte que sobrevêm, a dispersão. Muitas vezes, esses pequenos universos de particularidades, guardados significativos acumulados por alguém ao longo do tempo, encontram quem por eles se deixe fascinar, seja pela variedade de formas que assume a imensa pluralidade dos tipos documentais, seja, às vezes, pela tentativa de compreender ou mesmo dar significado aos mais imprevistos e imprevisíveis conteúdos que tais documentos encerram. 

IN OBLIVIUM surge como um gabinete virtual destinado ao compartilhamento de pesquisas empreendidas sobre arquivos pessoais, expondo dados e resultados, e disponibilizando ainda imagens virtuais de documentos, em sua maioria pertencentes ao arquivo pessoal desta pesquisadora.

IN OBLIVIUM. No esquecimento, as lembranças. No papel onde o tempo imprimiu suas marcas, apagou palavras e inscreveu tantas manchas, a busca pela completude. Ver em cada dado de arquivo o registro de uma atividade, encontrando ali o cotidiano em sua rica ou pobre expressão, simples ou complexa, eis aí uma atividade humana, testemunho de alegrias ou dissabores, esperanças ou decepções. Arquivos vivem, não morrem. Diz-se deles que apenas se fazem inativos, encantados, — por que não? —, à espera da pergunta cuja resposta já se encontra neles de antemão inscrita.

Como pedra bruta à espera da lapidação, assim estes documentos jazem adormecidos ao crepúsculo do esquecimento a que foram arrastados. Tocar neles, estudá-los, armazená-los, percorrer suas formas, tipos e conteúdos é tarefa fascinadora, que inspira, muitas vezes, uma atividade artística. Porque tais papéis se constituem, muita vezes, em verdadeiras raridades. São únicos. São precisos em seus detalhes. E quem vier, por exemplo, a ler as cartas que Francisco escreveu para Maria saberá disso, se não porque tal aqui se afirma, certamente porque não se furtará de, por um momento, travestir-se ora em remetente, ora em destinatária.

É que nem os estudiosos se livram dessa perversão do encantamento pelos velhos papéis, mesmo nesse tempo em que as páginas amarelas assumem a forma da luz e se deixam conduzir pela World Wide Web. Seja. Talvez sem isso fosse impossível a preservação desse testemunho de hábitos passados, de práticas que rapidamente se precipitam no esquecimento.

IN OBLIVIUM. Para que a memória persista.

Maristela Bleggi Tomasini


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Palavra Poética

Considera-se comumente palavra poética aquela que, pondo numa relação absolutamente nova som e conceito, sons e palavras entre si, unindo frases de maneira incomum, comunica, juntamente com um certo significado, uma emoção inusitada; a tal ponto que a emoção surge ainda quando o significado não se faz imediatamente claro.

Umberto Eco

domingo, 11 de maio de 2014

Revista Vida Brasil

Dona Maria

terça-feira, 13 de junho de 2017

Faz tempo que não escrevo sobre coisas minhas. Escrevo muito, é verdade, mas quase sempre sobre assuntos que me tangenciam apenas, sem grandes reflexos interiores. Esse processo ― que costuma travestir-se de objetividade ― obriga-me a certo distanciamento do objeto, esta fórmula que vicia o olhar, de sorte que, passado algum tempo, somem-se as minhas crônicas, os meus contos, os meus dizeres que vêm de dentro. Não há tempo nem espaço para contemplar histórias, pensar o mundo pelo mundo. Parece que só se escreve quando não se tem nada a dizer, um nada cheio de tudo, porém, que parece certo, exato, que se refira a coisas que se deixem medir e pesar. Não há tempo a perder tentando ver o outro. 

Dona Maria



Nessa fase, os outros se tornam cada vez mais outros, afastados do eu, afastados de mim.
Dona Maria, nesse sentido, sempre foi outra.  Proximidade dela, apenas como resultado da condição de trabalho, que me levava a vê-la com frequência.  E para dizer a verdade, eu sempre evitava esses encontros, pela insistência com que ela procurava transformar o mais simples cumprimento formal de bom dia ou de boa tarde num interminável monólogo.  
Uma palavra, e Dona Maria trocava em miúdos, detalhadamente, um sem fim de doenças e sofrimentos, numa verborragia aguda que não havia como interromper, a não ser com a chegada de mais alguém que a fizesse desviar de mim e recomeçar tudo outra vez em relação ao novo alvo.  No entanto, naqueles dias em que minha paciência me permitia ouvi-la sem simular algo urgente, caso eu a deixasse levar a termo seu itinerário patológico, o segundo assunto que ela introduzia era, infalivelmente, a vida íntima dos freqüentadores do prédio que ela, melhor que qualquer detetive, conseguia descobrir, fosse observando, fosse especulando, fosse extorquindo informações do modo mais inusitado, que não excluía interrogar entregadores. Metralhava as informações enquanto eu, simulando a maior pressa, dava jeito de sair de perto, até por medo de ouvir conversas que sempre tinham algo de muito comprometedor relativamente a pessoas que eu às vezes sequer conhecia.
Por tudo isso, Dona Maria jamais teria passado de outra pessoa. Esse outro,qualquer outro, é sem identidade com a gente. Não o toleramos para além das relações formais, não o admitimos em nossa interioridade, aonde ele só adentra como corpo estranho, irritante, como alguma coisa a expelir, a expurgar. Com o tempo, desenvolvemos uma série de técnicas que nos permitem manter o isolamento. Construímos uma parede, enfim, definimos o outro como tal, como alguém que nada tem a ver com nossa vida, com nossas coisas, com nossa maneira de ser e que, além de não ter, nunca terá. Dona Maria era outra e fim. Uma indesejável a quem eu tolerava por mera polidez e pela força das circunstâncias.
Até que um dia desses, não podendo fugir à constrangedora posição de ouvinte daquele conhecido monólogo, decidi-me a observá-la. Enquanto falava, prestei atenção no porte atarracado, forte. Com menos de um metro e sessenta, sem ser gorda, era roliça. A roupa, invariavelmente saia e blusa, não deixava ver a forma de pernas e braços, mas apenas pés e mãos fortes, unhas limpas, cortadas rentes que finalizavam dedos grossos, afeitos ao serviço pesado que ela ― a par das dores e sofrimentos que proclamava aos quatro ventos ― realizava com vigor. Cabelos fartos e muito grisalhos eram cortados curtos, penteados para trás, emoldurando feições comuns. O rosto de pele branca, sem muitas rugas, não denunciava as mais de sete décadas vividas. Ela continuava a falar, e eu deixei-me observá-la, ao mesmo tempo em que pensava o que teria feito dela essa criatura de uma eloquência tão impertinente quanto inconveniente.

Ocorreu-me então que nada ali revelava o gênero, embora fosse uma mulher. Sabia dela que morava sozinha. Nunca fora vista com homem algum, tampouco mulheres, pois não era dada às tais “modernidades”.  Nem um brinco, colar, pulseira. Nem a sombra de um batom ou o ar de um perfume, a não ser o cheiro do pinho que usava nas faxinas. Jamais a flagrei usando uma peça de roupa mais ousada, um decote, um brilho sobre as unhas ou sobre os lábios finos, que só se abriam à monotonia do incansável discurso de todos os dias. Moldava-se pelas doenças e pela curiosidade voltada à vida alheia. O que a teria levado a tornar-se a pessoa que era? Lutei contra a curiosidade que me espicaçou, mas perdi a batalha. Sem sentir, olhei bem firme para Dona Maria e arrisquei uma pergunta direta:
― Você tem namorado?
A princípio ela pareceu assustada com a pergunta. Olhou-me então. Suas feições pareceram humanizar-se. Teve uma reação, confesso, contrária à que eu esperava. Pensei que fosse se ofender com a pergunta, dando-me talvez ocasião de revidar. Mas não. Ela mudou o tom de voz, a postura do corpo, pareceu relaxar e, e em outro tom de narrativa respondeu-me esboçando um tímido sorriso:
― Não quero mais saber de homem. Mas já tive um. Foi um só, mas serviu de lição. Eu era louca por ele. Ainda sou, mas nunca mais quero saber dele, nem de outros homens. Aquele eu quis. Dava tudo para ele, fazia qualquer coisa, matava-me de trabalhar em dois empregos, fazia faxinas, mas ele tinha do bom e do melhor. Camisas caras, perfumes e comida. Era bonito, elegante.
Interrompeu-se, e seu rosto entristeceu. Continuou:
― Eu sempre fui feia, mas sabia gostar dele. Ele abusou do meu amor. Me usou e me traiu. As coisas que eu lhe dava ele dava pra outra. Descobri tudo. Fui a última a saber. Deixei dele para sempre.
Silenciou. Eu, pega de surpresa, não soube o que dizer. A pergunta que eu fizera com intenções de certa forma até mesquinhas acabou por abrir uma comporta naquela outra pessoa que se humanizava diante de mim, que me surpreendia com a sinceridade arrasadora de quem ostenta uma chaga. Dona Maria mostrou-me uma ferida. Não que seus olhos se enchessem de lágrimas, nem que sua voz tremesse alguma vez. Nada disso. Sem dramas. Simplesmente o tom seco da voz, sem modulações, a constatação pura e simples da traição, do abandono.  Era corajosa. Assumia a posição de mulher desprezada.

De opaca, aquela criatura se fez visível aos meus olhos. Percebi a sua dor e respeitei-a. A decepção e a amargura desde então é que se puseram a esculpir aquela mulher mecânica, pensei, ocupada em sobreviver simplesmente. Trabalhava e conversava com todos, mas sempre sobre aquelas mesmas coisas. Pensei então que, ao falar de suas dores, de seu reumatismo, de sua ciática, de seu ombro doloroso, de seus rins e de tudo o mais que lhe doía tanto, na verdade, era de outras dores que falava. Doença inventada também é doença. E as coisas terríveis que ela dizia saber de todos nós, os outros, por certo eram também obscuras verdades que ela procurava desesperadamente descobrir, especulando se, afinal, éramos nós, os outros, também capazes de, como ela, sofrermos com tamanhas e tão severas dores.
Pedi que me contasse a sua história. Banal talvez. Todas as histórias de amor que não são a nossa história são banais, afinal, o que não faz delas menos histórias, ou do amor, menos amor. Dona Maria tão logo conheceu “seu bem” apaixonou-se pelo que julgou ser sua beleza e exuberância. Jovem, bonito, cheio de alegria de viver e também muito esperto, ele não demorou a perceber que podia lucrar com aquela paixão, fruto de um encanto que soube explorar. Deixou-se amar por ela. Um amor que ele retribuía com pequenas atenções sempre condicionadas a dias e horas marcadas.

Como todo hábil estelionatário afetivo, valorizava o produto, vendia-se caro e tinha sempre pouco tempo para ela. Mil desculpas eram articuladas: o preço da passagem, o cansaço, os dias ora frios, ora quentes, a necessidade de conforto, etc. A tudo ela provia, ou procurava prover. O quartinho onde morava ― e onde o recebia ― foi guarnecido de uma estufa, um ventilador de teto. Os carnês aumentavam. Ele gostava de comer bem, adorava cerveja gelada. Um pequeno refrigerador comprado a prestação resolveu o problema. A cerveja, os salgadinhos, os doces, os quitutes. Roupa de cama nova. Toalhas novas. Exigente, ele queria tudo muito limpo, embora o lugar ― área reservava à zeladoria ― dispusesse apenas do banheiro coletivo do prédio.
Ele pediu uma TV. Se ele tivesse uma TV podia ficar aos domingos e ver o futebol. Com cerveja, é claro. Pastéis que ela tinha de fritar na hora, na base do improviso, utilizando um botijão de gás pequeno acoplado a um fogão de duas bocas. Não havia o que não fizesse para vê-lo contente. Disse-me que gostava de provocar-lhe sorrisos, o que acontecia sempre que um dos dispendiosos caprichos dele era satisfeito. Mostrava-se então muito generoso para com ela. Abraçava-a, beijava-a, conversava sobre a qualidade do presente recebido. Pedia-lhe roupas caras, que ela sempre dava um jeito de comprar. Quando perguntei se não gastava com ela, disse-me que era feia, que roupas não adiantavam. Gastava com ele todo o dinheiro que conseguia ganhar com seu trabalho. Mimava-o, certa de que assim o teria sempre por perto.
Conseguiu. Ao menos por alguns meses moraram juntos, até que ele começou a se distanciar, ausentando-se por períodos cada vez mais longos. Cautelosa, ela nunca o interrogava quanto a essas ausências, temendo o abandono. Um dia, segundo ela, ele “veio com a conversa de que estava enjoado de ficar junto”. Quis um quartinho só dele. Podia ser alugado ali por perto mesmo, desde que ela pagasse. Era para “manter o amor”. Não ousando discordar, ela providenciou que mais este desejo dele fosse atendido.
O ventilador de teto, a estufa, as toalhas novas, os lençóis, a pequena geladeira e a TV mudaram-se com ele. Dona Maria ficou apenas com a parca mobília que tinha antes de conhecê-lo. Tudo foi levado para no novo “ninho de amor” que serviria para os dois passarem juntos os finais de semana, de sexta a domingo. Ela teve direito a ficar com uma chave. Podia entrar e sair todas as terças-feiras para limpar, pegar a roupa suja e abastecer a geladeira. Nas quartas e quintas não podia vir. Eram dias que ele queria só para ele. Assim era o combinado que ela cumpria religiosamente.
Eu ouvia tudo sem ousar interrompê-la. Procurava ler em seu rosto alguma coisa que me fizesse crer naquilo que escutava. Confesso que não consegui perceber o quanto de esforço ela fazia para conseguir ignorar tamanha humilhação, deixando que sua história fosse testemunhada por mim, que a ouvia em silêncio, incerta quanto ao que pensar, incerta quanto ao que dizer, na hora em que tivesse de dizer alguma coisa, qualquer coisa.
Sem alterar o tom de voz, e já com o olhar voltado para algum ponto situado além de nós duas, Dona Maria falou-me então do dia em que descumpriu o acordado. Não fora por mal, ― assegurou-me ela. Havia passado no supermercado e aproveitado uma oferta. Quis fazer-lhe uma surpresa. Comprara cervejas e outras coisas caras das quais ele tanto gostava. Deu-se conta de que era quinta-feira, mas os presentes que trazia ― acreditava ― iam servir para descontar a falta.
Encontrou a porta fechada por dentro.
Bateu. No quarto persistia um silêncio que lhe congelava o sangue. Se soubesse o que não queria saber saberia ela fazer o que deveria fazer? A solução veio com a vizinha de quarto, testemunha de toda história. Abriu a porta, viu Dona Maria, e disse que ela não tinha nada que fazer ali numa quinta-feira. Que era dia da outra. ― Mas que outra?! ― Dona Maria sentiu que o chão lhe fugia.
A vizinha de porta encarregou-se de sacramentar o fim daquela história de amor que ama sozinho. Falou da outra, que vinha nas quartas e quintas. Deu detalhes. Outras portas do corredor entreabriam-se. O mundo todo escutava. O mundo todo já sabia, menos ela. Riam-se de sua generosidade, de sua estupidez, de sua canhestra esperança de ser amada. Tudo fora combinado.  
Num só instante a verdade despencou, ou o outro lado da verdade, como queiram. Fez-se a luz sobre o leito de Amor e Psiqué, sem os requintes e refinamentos da lenda. A explicação de tantas coisas consumidas na geladeira, de tanta roupa de cama e toalhas para lavar. A explicação de tudo. Cansado de esconder-se, ele aparece. Por entre a porta ainda entreaberta escapa de dentro do quarto um vulto de mulher. Jovem, talvez bonita, enfeitada, sumiu-se pelo corredor, batendo os saltos altos da sandália preta e deixando atrás de si um rastro de perfume barato, cuja marca Dona Maria fez questão de revelar.
Reunindo o que lhe sobrara de orgulho, esse capital moral que nem sempre é pecado, ela saiu dali em silêncio. No dia seguinte, friamente, esperou o momento certo. De acordo com o senhorio, fez trocar as fechaduras e transportar todas as coisas que julgava suas. Roupas e objetos pessoais dele foram reunidos em sacolas plásticas que Dona Maria deixou com a vizinha de porta, a mesma que interviera no dia anterior, e que se encarregou de fazer a entrega das coisas. Não havia recado.
E ele? ― perguntei.
Disse-me que o encontrou outras vezes. Procurava-a, só que agora repentinamente apaixonado. Mandava cartas, bilhetes, chegou a implorar para voltar. Disse que a outra que estava lá era apenas uma amiga, que a mulher da vida dele era ela, Maria. Falou de tudo e mais um pouco. Humilhou-se. Insistiu muito. Depois desistiu.
Dona Maria soube que ele “arrumou outra”. Assegurou-me, porém, que menos pródiga que ela, embora talvez mais bonita.
Sim, ela ainda tem as cartas, os bilhetes, fotos, carnês, notas de presentes, coisas dele que guarda numa caixa de sapatos que pedi que ela me mostrasse um dia.
― Fico com sua caixa, Dona Maria. Se quiser me dar, eu fico. Guardo sua história então, para que ela não se perca, ― disse-lhe.
― Bobagem. Você não vai perder seu tempo com isso.
― Não será uma perda.
Ela não toca mais no assunto. Eu não insisto.
Terá se arrependido da confidência? Não sei. Penso na caixa às vezes, nesse repositório sensível de memórias e de esquecimentos. Imagino-me abrindo essa caixa junto dela, ouvindo outra vez sua história, encaixando-a em cada pista ali existente, em cada bilhete, em cada carta, em cada papel, em cada carnê de compras feitas a prestação, em cada objeto que guarda uma amargura coagulada, uma saudade, uma mágoa.
Penso então que esse ofício de Pandora pode ser cruel, mas sei que talvez a lenda se cumpra, e que no fundo de todas essas dores do mundo talvez exista, não a cura, mas ao menos algum remédio chamado esperança. Quem sabe?


Autor: Maristela Bleggi Tomasini

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Lembrança Social

"A lembrança social é de outra ordem, trata-se de memória. Diferentemente da prova jurídica, do saber administrativo, do conhecimento científico e técnico, que exigem restituição escrita, a memória tem uma função mais política e simbólica do que testemunhal. A memória é aquela fala que circula nas noites de vigília, que passeia de aldeia em aldeia de um lado a outro do reino, palavras com as quais um povo se reconhece e comunica".
DELMAS, Bruno. Arquivos para quê? Tradução de Danielle Ardaillon. São Paulo: Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2010, p. 41.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Alegoria


Revista Vida Brasil

Namoro em praia deserta

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Vamos combinar! Tem coisas que a gente não espera.Convite para ir a uma praia deserta não é conversa de todo dia. Por outro lado, como essa coisa de “praia deserta” traz consigo uma espécie de acelerador da imaginação, todo mundo pensa e “se pensa” namorando em praia deserta.Bom, tirando filmes, tirando aquelas lanchas luxuosas que quebram no meio do mar, tirando, eventualmente (nunca se sabe), a canoa que virou por causa da fulana que não soube remar... 
Pois bem, tirando tudo isso, e mais a fantasia nossa de cada dia, a questão é que todos os eleitos pensam em ir, — confesse, até você! —, mas poucos são os escolhidos que efetivamente vão para a tal praia deserta.  Ah! Claro! Falo em praia deserta para namorar! Pescar? Não! Nada a ver com pescar. O cenário é praia deserta para namorar, certo?
Você já foi? Já namorou em praia deserta? Ainda sonha com isso? Ou você faz mais o meu gênero: o de uma criatura absolutamente urbana, que ama barulho de automóveis, buzinas, multidão que leva tudo pela frente, agitação, asfalto, céu sem estrelas, muitos prédios, muita fumaça, poluição! Nenhum desses aspectos do urbano, considerados terríveis pela maioria das pessoas, me incomoda. Bem ao contrário: eu simplesmente adoro tudo isso. Tanto que não me atrai viajar, a não ser que seja para outra cidade. E, de preferência, outra cidade bem maior que a minha. Com muita gente, com muito asfalto, com muita fumaça, com muito barulho, com muito stress, com muito de tudo isso!
Mas, como diziam os antigos, a boca fala, mas não paga; o homem põe, mas deus dispõe, e outros ditados menos politicamente corretos. Não é que eu fui convidada para passar uns dias numa praia deserta? Juro! Aconteceu comigo. Até ia escrever que foi com uma amiga minha. Dane-se, agora saiu. Já escrevi que foi comigo mesmo que aconteceu essa história. E me pegou de surpresa, porque era ainda na tal fase de começo de namoro.
Vocês devem saber como é começo de namoro. Não se pode ter sinceridade grau dez nesta fase. É preciso controlar o gênio, especialmente um gênio do cão como é, francamente, o meu. Pensa-se sempre que o outro vai morrer quando souber que a gente odeia comer o que ele come, que a gente odeia aquelas músicas chatas, que a gente detesta tal ou qual criatura, que a gente não suporta aquela pessoa tão simpática, nem aquela outra tão boazinha, que a gente não leu e não gostou do livro aquele. Enfim, descobre-se que conviver com enormes diferenças não é nada! Quero ver é conviver com profundas divergências. Em início de namoro então! Mas vocês, caros leitores, vocês todos sabem bem do que estou falando.  Não sabem? Início de namoro é um pesadelo! Trocar de namorado então! Trocar de namorado, depois de algum tempo, é terrível! Dá uma canseira danada! Mas às vezes acontece. E aconteceu comigo.
Bem, justamente nessa fase de namorado novo, fase de amaciar, fase de muita delicadeza, de muita gentileza, o homem me veio com essa história de praia deserta. Gente! Eu quis morrer. Por nada deste mundo me passaria pela cabeça levar a sério um convite para namorar em praia deserta! Eis-me diante de um grande dilema. Ou decepcionava o namorado, dizendo que não queria saber de praia deserta coisa nenhuma, ou... Bem, cedi, e pensei comigo: seja o que deus quiser.
Decisão tomada, aceitei o convite e, com muito jeitinho, foi interrogando a criatura, a fim de saber o que eu deveria levar comigo para o tal lugar encantado que ele havia descoberto  para nós. E quanto mais eu arrancava dele referências sobre o tal lugar, mais me apavorava com a ideia de ir namorar no fim do mundo. Fim do mundo, sim! O sujeito queria me levar para o fim do mundo!
Eu teria de viajar mais de mil e duzentos quilômetros. Chegar de madrugada em Guarulhos e então viajar até uma cidade para lá do Trópico de Capricórnio. Depois de chegar a tal cidade e pegar a chave de uma casa de pescador — Não era barraca, então! Ave Maria! Escapei do acampamento! — teríamos de voltar para a estrada e continuar a viagem. Depois desse bom pedaço de chão, bem adiante do núcleo de civilização onde vivia o japonês, locador da tal casa de pescador, teríamos de pegar um desvio e seguir — por uma estrada de chão batido!  — tão estreita que por ela não se cruzavam dois carros, até o lugar onde havia um estacionamento.
Estacionamento? Para que estacionamento? — perguntei. — Simples, ele disse — tudo é “simples” para os homens! — a praia fica entre dois rochedos e carros não entram lá. Vamos a pé. E teremos de levar tudo. A casa fica no alto da serra do mar, em meio à mata nativa.
Ai, meu deus! O raio da casa fica bem no fim do mundo, pensei. E a tal casa “de pescador” fica no alto. Ele disse “no alto” da serra do mar e no meio do mato!  Pensei comigo que era uma sorte só existir o tal do MSN para namorar a distância. Vocês já namoraram pelo MSN? Apenas mensagens de texto trocadas entre conexões discadas. Isso parece coisa do século passado, mas nem faz tanto tempo assim, namorava-se trocando mensagens tecladas. Arcaico, não é mesmo? Mas foi uma sorte. Hoje, em tempos de Skype, eu não teria conseguido esconder todas as reservas com que recebera o convite para ir namorar numa “praia deserta”.
Reservas? Bem, as reservas viraram quase pânico quando ele me disse que eu só levasse o mínimo de bagagem. “Não se preocupe com isso. Eu cuido de tudo”. Ora, qualquer mulher entra em pânico com essa frase! De tudo? Mas como ele sabe o que é “tudo” para uma pessoa nada despojada como eu? O que mais me atrai nesta vida de cidade é justamente o fato de ela permitir que a gente não precise se despojar de certos hábitos. Tudo se tem ao alcance da mão! Tudo fica perto, e até o tempo é o nosso, pois não prevalece o dia sobre
a noite. Escolhe-se a hora de viver o tempo na cidade, e espero viver para ver o dia em que sempre será dia, por 24 horas. Lugares afastados, contudo, são moldados pela natureza, e as regras dessa natureza estão em toda parte, sem artificialismos. É tudo muito solene, muito formal, muito obediente ao clima. Na cidade, posso ficar em casa sem nem mesmo olhar pela janela, apenas lendo, escrevendo, estudando, bebendo café, eu e meus livros. Ninguém vem sem ser convidado. A cidade impõe uma reserva natural até mesmo aos abusados que gostam de puxar assunto ou fazer visitas. A cidade, e só ela, pode nos isolar mais do que qualquer praia ou ilha deserta. Para quem ama solidão, nada melhor que se esconder numa grande cidade.
Mas voltemos à praia deserta.
Bem, a decisão estava tomada. Eu já sabia para onde ia e o que levaria comigo: apenas o mínimo de coisas. Não tive coragem de dizer que não iria. Era melhor dar um crédito ao namorado novo que me contrariava, mas, afinal, garantia que eu ia gostar do lugar.  Claro, ele garantia. Eu não. Já me via comida viva por mosquitos, imaginava os bichos, talvez até cobras, sapos, insetos, grilos a noite toda, talvez chovesse, talvez não houvesse chuveiro quente... Ai, meu deus! Será que eu sobreviveria?
Bem, para variar, eu estava completamente errada. E ele, como sempre, tinha toda razão.
A começar pelo começo. 

Cheguei de madrugada no aeroporto, e o namorado já estava lá desde cedo.  Não só estava lá, como ainda lembrou-se de me levar direto para tomar café, pois sabe que eu não fico sem café, nem sem coca-zero, nem sem uma série de outros venenos urbanos. Ponto para ele.
No estacionamento, carro abastecido e todo revisado. — O diabo do homem não esquece nada, pensei. — Tudo preparado para viajar sem surpresas. Eu ia observando e anotando esses detalhes mentalmente. Naturalmente ele não se esquecera da câmera fotográfica que passou às minhas mãos. A cidade não ficava muito longe, e precisávamos chegar lá em horário comercial. Para evitar canseiras, pernoitamos pelo caminho, com direito a um jantar caprichado. A coisa ia bem, pensei. Ao chegarmos à cidade, ele não demorou a orientar-se e achar o tal senhor japonês, com o qual pegou a chave da “casa de pescador”. Depois fomos a um supermercado, e ele lembrou-se de tudo, como sempre. Seguimos viagem. A paisagem ia mudando rapidamente. Em alguns trechos era possível ver um mar calmo, que parecia um rio;  outros eram simplesmente soberbos. 
Então ele me mostrou uma placa não muito grande. Creio que pouca gente enxerga. Ela indicava um caminho que nem mesmo se podia chamar de estrada. 
Entramos por ali, e a paisagem tornou-se deslumbrante. A mata nativa era cheia de flores, samambaias, plantas de uma beleza espantosa que se combinavam entre si, de sorte a fazer pensar num projeto de jardinagem. O caminho era estreito e parecia estreitar-se mais ainda na medida em que avançávamos. Paramos num mirante. A vista inesquecível de um mar escandalosamente azul me deixou quase sem fôlego.  Achei que não havia lente capaz de registrar tudo aquilo. Muito devagar, fomos percorrendo os treze quilômetros que nos levaram até o estacionamento.
No porta-malas do Possante (nome do carro do namorado, comprado para tornar possível esta viagem, aliás) outra surpresa: uma grande mala com tudo o que se possa imaginar para facilitar a vida. O homem não se esqueceu de nada! Levou roupa de cama, mesa e banho, até produtos de higiene pessoal, e não deixou de lado nem repelente de mosquitos, nem filtro solar. Pensou em tudo. Inclusive em fósforos e velas. Meu café, coca, guloseimas, fora as compras que fizéramos no supermercado da cidade. Deixamos o Possante no tal estacionamento e tomamos a trilha que levava até a praia. O lugar era mesmo tudo aquilo. Difícil imaginar mais cores, mais luz e paisagem mais bela. 
Entramos em um pedaço de praia com não mais de dez metros de largura. Esta estreita faixa de areia, contudo, também não tinha nem cem metros de comprimento. A areia dourada fazia uma curva de 180 graus em direção ao mar, ou melhor, de uma água verde azulada, transparente, sem ondas, que brilhava como cristal, e que se limitava à esquerda e à direita por dois enormes rochedos, parte da própria serra que, naquele ponto, entrava mar adentro. Em frente ao mar, a serra coberta de mata.
Havia algumas casas escondidas por ali. Uma, porém, bem ao alto, da qual se podia ver apenas a varanda, chamava a atenção de quem olhasse para cima. Era preciso subir. Uma subida que não foi difícil, contudo, pois havia degraus de pedra ao longo da mata,  esforço compensado pela exuberante beleza do lugar.
Essa casa foi outra surpresa. Se era mesmo uma casa de pescador eu não sei. Sei que era bem mobiliada, tinha uma suíte, um quarto e banheiro extra, sala, cozinha, televisão, geladeira, fogão e até micro-ondas. Havia copos, pratos, panelas e talheres. Claro que havia luz elétrica e chuveiro quente. E isso sem contar a varanda com vistas para o mar, com direito a nascer do sol, a entardecer, com direito a luar e, ainda por cima, com direito ao namorado, um sujeito cujo passatempo favorito é me contrariar o tempo todo.
Aliás, ele continua me contrariando. Até hoje!

Autor: Maristela Bleggi Tomasini