quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Lettre de Josephine a Napoleon, 1809

Lettre de Josephine a Napoleon, 1809.
Avec la permission de notre auguste et cher époux, je dois déclarer que ne conservant aucun espoir d'avoir des enfants qui puissent satisfaire les besoins de sa politique et l'intérêt de la France, je me plais à lui donner la plus grande preuve d'attachement et de dévouement qui ait jamais été donnée sur la terre. Je tiens tout de ses bontés ; c'est sa main qui m'a couronnée, et du haut de ce trône, je n'ai reçu que des témoignages d'affection et d'amour du peuple français.
Je crois reconnaître tous ces sentiments en consentant à la dissolution d'un mariage qui désormais est un obstacle au bien de la France, qui la prive du bonheur d'être un jour gouvernée par les descendants d'un grand homme si évidemment suscité par la Providence pour effacer les maux d'une terrible révolution et rétablir l'autel, le trône, et l'ordre social. Mais la dissolution de mon mariage ne changera rien aux sentiments de mon coeur : l'empereur aura toujours en moi sa meilleure amie. Je sais combien cet acte commandé par la politique et par de si grands intérêts a froissé son coeur ; mais l'un et l'autre nous sommes glorieux du sacrifice que nous faisons au bien de la patrie.
JOSEPHINE, le 15 décembre 1809.

La lettre d’amour

Jean-Honoré Fragonard (1732–1806) . La lettre d’amour, 1770.

Isidore Ducasse

 Photo-carte de visite représentant Isidore Ducasse (1847-1870), portrait exécuté à Tarbes en 1867 par le studio Blanchard, place Maubourguet. Ce document a été retrouvé par Jean-Jacques Lefrère à Bagnères-de-Bigorre en 1977 chez des descendant de la famille de Georges Dazet (1852-1920), fils de Jean Dazet, le tuteur de Ducasse. Il a été publié une première fois chez l'éditeur Pierre Horay en noir et blanc. Ce document, unique, a été vendu par l'étude Alde (Paris) le 20 octobre 2009, avec une estimation de 40/50 000 euros, et reproduit par scanner dans le catalogue de vente publique disponible en ligne en format PDF.
Fonte: Wikimedia Commons

Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont)

Huile sur toile sur le thème "Beau comme la rencontre fortuite sur une table de dissection d'une machine à coudre et d'un parapluie!" Chants de Maldoror (Chant VI-§1) Isidore Ducasse (1846-1870). Auteur de la Toile et reproduction Photo, J-C G - 2006.

Fonte: Wikimedia Commons

sábado, 20 de agosto de 2016

Sobre espécies e tipos documentais

"Para introduzir os estudos tipológicos é preciso relembrar, uma vez mais, que a espécie documental é a configuração que o documento assume de acordo com a disposição e a natureza de sua informação (e é objeto da diplomática), bem como que o tipo documental é a espécie documental, não mais como 'fórmula' e sim já imbuído da atividade que o gerou (e é objeto da tipologia). Assim é possível estabelecer dois pontos de partida para a análise tipológica: o da diplomática ou o da arquivística."

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Diplomática e tipologia documental em arquivos. Brasília: Briquet de Lemos, 2008.

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Espécie documental 
Divisão de gênero documental que reúne tipos documentais por seu  formato. São exemplos de espécies documentais: ata, carta, decreto, disco, filme, folheto, fotografia,memorando, ofício, planta, relatório.
ARQUIVO NACIONAL(Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 85.

Tipo documental Divisão de espécie documental que reúne documentos por suas características comuns no que diz respeito à fórmula diplomática, natureza de conteúdo ou técnica do registro. São exemplos de tipos documentais: cartas precatórias, cartas régias, cartas-patentes, decretos sem número, decretos-leis, decretos legislativos, daguerreótipos, litogravuras, serigrafias, xilogravuras.
Equivalente em espanhol: tipo documental; francês: typologie documentaire; em inglês, record type, em português, tipologia documental.
Idem, p. 163.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A propósito do descarte



 Do próprio fato de se tratar de material descartado poder-se-ia deduzir que se está diante de algo inaproveitável, pois a utilidade (proveito) dos arquivos deveria ser encontrada, de regra, quase sempre à luz do prestigio de seus protagonistas, titulares ou sujeitos. Não sendo este o caso, consequentemente, as cartas de Francisco, ― bem como todo o resto do arquivo de Lysia ―, nada representariam, ao menos do ponto de vista da História Social. Isso é paradoxal. De um lado vê-se desaparecerem as hierarquias. Cada vez mais as diferenças são eliminadas e a igualdade se torna uma espécie de exigência política em termos de correção. Se todos são importantes, então tudo que lhes diz respeito é, da mesma forma, importante. À parte essa discussão a propósito do que é ou não relevante em matéria de arquivos pessoais, verdade é que muita coisa vem sendo acumulada, guardada com avidez, sob o pretexto de servir à memória.

 

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Coleção Thereza Christinha Maria

Estação ferroviária de Nova Friburgo, Biblioteca Nacional do Brasil,1875.

Imagem pertencente à Coleção Thereza Christina Maria, composta por 21.742 fotografias reunidas pelo Imperador Pedro II ao longo de sua vida e por ele doadas à Biblioteca Nacional do Brasil. A coleção abrange uma ampla variedade de temas. Documenta as conquistas do Brasil e do povo brasileiro no século XIX, e também inclui muitas fotografias da Europa, África e da América do Norte. Esta fotografia mostra a estação ferroviária em Nova Friburgo, a qual era parte da Ferrovia Cantagalo, que ligava o distrito de Porto das Caixas, no município de Itaboraí, com o distrito de Cordeiro. A Estação de Nova Friburgo foi construída em estilo suíço, entre 1860 e 1873. A estação foi fechada em maio de 1967 para dar espaço a uma nova prefeitura, conhecida como Palácio Barão de Nova Friburgo. A fotografia é de Francisco Benque, que era sócio de Alberto Henschel na firma Henschel & Benque, que operava um estúdio no Rio de Janeiro na década de 1870.
Fonte:  Wikimedia Commons

sábado, 13 de agosto de 2016

Sobre o Pragmatismo em Willian James

Verdade e Realidade[1] 

Como falar do pragmatismo depois de William James? E o que poderíamos dizer sobre isso que já não se encontre dito, e bem melhor dito, no livro surpreendente e encantador do qual temos a tradução fiel? Nós evitaríamos tomar a palavra, se o pensamento de James não fosse o mais freqüentemente diminuído, ou alterado, ou falseado pelas interpretações que lhe são dadas. Muitas idéias circulam que arriscam a se interpor entre o leitor e o livro, e a difundir uma obscuridade artificial sobre uma obra que é a própria claridade.
Compreender-se-ia mal o pragmatismo de James, se não se começasse por modificar a idéia que se faz, de modo corrente, da realidade em geral. Fala-se do “mundo” ou do “cosmos”, e essas palavras, de acordo com sua origem, designam alguma coisa de simples ou, ao menos, de bem composto. Diz-se “o universo”, e a palavra faz pensar em uma unificação possível das coisas. Pode-se ser espiritualista, materialista, panteísta, como se pode ser indiferente à filosofia e satisfeito com o senso comum: sempre se concebe um ou muitos princípios simples pelos quais se explicaria o conjunto das coisas materiais e morais.
É que nossa inteligência é apaixonada pela simplicidade. Ela economiza o esforço, e quer que a natureza seja arranjada de modo a reclamar de nós, para ser pensada, apenas a menor soma possível de trabalho. Ela dá como justo o que é necessário em matéria de elementos ou de princípios para recompor com eles a série indefinida de objetos e de eventos.
Mas se, em lugar de reconstruir idealmente as coisas para maior satisfação de nossa razão, nós nos ativéssemos pura e simplesmente àquilo que a experiência nos dá, pensaríamos e nos exprimiríamos de maneira inteiramente diferente. Enquanto nossa inteligência, com seus hábitos de economia, concebe os efeitos como estritamente proporcionais às suas causas, a natureza, — que é pródiga —, coloca em causa muito mais do que é requerido para produzir o efeito. Enquanto nossa divisa é: “Apenas o que é preciso”, a da natureza é: “Mais do que é preciso”, — muito disso, muito daquilo, muito de tudo. — A realidade, tal como James a vê, é redundante e superabundante. Entre essa realidade e aquela que os filósofos reconstroem, eu creio que foi estabelecida a mesma relação que entre a vida que nós vivemos todos os dias e aquela que os atores nos representam, à noite, sobre o palco. No teatro, cada um diz apenas aquilo que é preciso dizer e faz apenas aquilo que é preciso fazer; há cenas bem recortadas; a peça tem um começo, um meio e um fim; e tudo está disposto da maneira mais parcimoniosa possível à vista de um desfecho que será feliz ou trágico. Mas, na vida, diz-se uma multidão de coisas inúteis, faz-se uma multidão de gestos supérfluos, não há situações nítidas; nada se passa tão simplesmente, nem tão completamente, nem tão agradavelmente quanto quereríamos; as cenas apropriam-se umas das outras; as coisas não começam nem terminam; não há desfecho inteiramente satisfatório nem gesto absolutamente decisivo, nem dessas palavras decisivas e sobre as quais se permanece: todos os efeitos são deteriorados. Assim é a vida humana. Assim é, sem dúvida também, aos olhos de James, a realidade em geral.
 Certamente, nossa experiência não é incoerente. Ao mesmo tempo em que ela nos apresenta coisas e fatos, ela nos mostra parentescos entre as coisas e relações entre os fatos: essas relações são tão reais, tão diretamente observáveis, segundo Willian James, quanto as coisas e os fatos, eles próprios. Mas as relações são flutuantes, e as coisas são fluidas. Está longe daí esse universo árido que os filósofos compõem com elementos bem recortados, bem arranjados, e onde cada parte não está mais somente ligada a uma outra parte, como nos diz a experiência, mas ainda, como quereria nossa razão, coordenada ao Todo.
O “pluralismo” de William James não significa outra coisa. A Antiguidade concebia um mundo fechado, parado, finito: é uma hipótese que responde a certas exigências de nossa razão. Os modernos pensam, de preferência, em um infinito: é outra hipótese que satisfaz outras necessidades de nossa razão. Do ponto de vista onde James se coloca, — que é aquele da experiência pura ou do “empirismo radical” —, a realidade não aparece mais como finita nem como infinita, mas simplesmente como indefinida. Ela corre, sem que nós possamos dizer se é em uma direção única, nem mesmo se é sempre e em toda parte o mesmo rio que corre.
Nossa razão está menos satisfeita. Ela se sente menos à vontade em um mundo onde ela não encontra mais, como num espelho, sua própria imagem. E, sem nenhuma dúvida, a importância da razão humana está diminuída. Mas o quanto a importância do próprio homem, ele mesmo, — do homem inteiro, vontade e sensibilidade, tanto quanto inteligência —, vai se encontrar aumentada!
O universo que nossa razão concebe é, com efeito, um universo que ultrapassa infinitamente a experiência humana, sendo próprio da razão prolongar os dados da experiência, estendê-los pela via da generalização, enfim, fazer-nos conceber muito mais coisas do que jamais perceberíamos. Em semelhante universo, o homem é considerado como fazendo pouca coisa e ocupando pouco espaço: o que ele concede à sua inteligência, ele retira de sua vontade. Sobretudo, havendo atribuído ao seu pensamento o poder de tudo abraçar, ele está obrigado a conceber todas as coisas em termos de pensamento: suas aspirações, seus desejos, seus entusiasmos, ele não pode pedir esclarecimentos sobre um mundo onde tudo aquilo que lhe é acessível foi considerado por ele, de antemão, como traduzível em idéias puras. Sua sensibilidade não saberia esclarecer sua inteligência, da qual ele faz a própria luz.
As filosofias, em sua maior parte, restringem, pois, a nossa experiência no lado sentimento e vontade, ao mesmo tempo em que a prolongam indefinidamente no lado pensamento. O que James nos pede é não mais prolongar a experiência pelas vias hipotéticas, é também não a mutilar naquilo que ela tem de sólido. Nós não estamos inteiramente seguros daquilo que a experiência nos dá; mas nós devemos aceitar a experiência integralmente, e nossos sentimentos fazem parte disso ao mesmo título que nossas percepções, ao mesmo título, por consequência, que as “coisas”. Aos olhos de Willian James, o homem inteiro conta.
Ele conta muito mesmo em um mundo que não o esmaga mais com sua imensidade. Fica-se espantado com a importância que James atribui, em um de seus livros[2], à curiosa teoria de Fechner que faz da Terra um ser independente dotado de uma alma divina. É que ele vê aí um meio cômodo de simbolizar, — talvez mesmo de exprimir —, seu próprio pensamento. As coisas e os fatos dos quais se compõe nossa experiência constituem para nós um mundo humano[3], ligado sem dúvida a outros, mas tão distanciado deles e tão perto de nós que devemos considerá-lo, na prática, como suficiente para o homem e suficiente para si mesmo. Com essas coisas e esses eventos nós fazemos corpos, — nós, quer dizer, tudo aquilo que nós temos consciência de ser, tudo aquilo que nós experimentamos. Os sentimentos poderosos que agitam a alma em certos momentos privilegiados são forças tão reais quanto aqueles das quais se ocupa o físico; o homem não as cria, não mais do que ele não cria o calor ou a luz. Banhamo-nos, de acordo com James, em uma atmosfera atravessada por grandes correntes espirituais. Se muitos dentre nós aí se obstinam, outros se deixam levar. E existem almas que se abrem inteiras ao sopro benfazejo. Estas são as almas místicas. Sabe-se com que simpatia James as estudou. Quando apareceu seu livro sobre A Experiência Religiosa, muitos aí não viram senão uma série de descrições muito vivas e de análises muito penetrantes, — uma psicologia, diziam eles, do sentimento religioso. — Quão enganados estavam sobre o pensamento do autor! A verdade é que James debruçava-se sobre a alma mística como nós saímos, em um dia de primavera, para sentir a carícia da brisa, ou como, à beira-mar, olhamos os pássaros e vemos os barcos e o inchaço de suas velas para saber de onde sopra o vento. As almas que o entusiasmo religioso preenche são verdadeiramente elevadas e transportadas: como não nos levariam elas a perceber o real, assim como numa experiência científica, a força que transporta e que eleva? Aí está, sem dúvida, a origem, aí está a idéia inspiradora do “pragmatismo” de William James. As verdades que ele mais nos induz a conhecer são, para ele, verdades que foram sentidas e vividas antes de serem pensadas[4].
Em todos os tempos diz-se que há verdades que despertam o sentimento tanto quanto a razão; e em todos os tempos também se diz que, ao lado das verdades que nós encontramos feitas, existem outras que nós ajudamos a formar, que dependem em parte de nossa vontade. Mas é preciso observar que, em James, esta idéia toma uma força e uma significação novas. Ela desabrocha, graças à concepção da realidade que é peculiar a esse filósofo numa teoria geral da verdade.
O que é um julgamento verdadeiro? Nós chamamos verdadeira a afirmação que concorda com a realidade. Mas em que pode consistir esta concordância? Nós gostamos de ver aí algo como a semelhança do retrato ao modelo: a afirmação verdadeira seria aquela que copiaria a realidade. Reflitamos sobre isso, todavia: nós veremos que é unicamente em raros casos, excepcionais, que esta definição do verdadeiro encontra sua aplicação. Aquilo que é real é tal ou qual fato determinado, acontecendo em tal ou qual ponto do espaço e do tempo, é do singular, é do inconstante. Ao contrário, a maior parte de nossas afirmações são gerais e implicam numa certa estabilidade de seu objeto. Tomemos uma verdade tão vizinha quanto possível da experiência. Esta por exemplo: “o calor dilata os corpos”. De que poderia ela ser a reprodução? É possível, em certo sentido, reproduzir a dilatação de um corpo determinado em momentos determinados, fotografando-o em suas diversas fases. Mesmo, por metáfora, eu posso ainda dizer que a afirmação “esta barra de ferro se dilata” é a reprodução daquilo que se passa quando eu assisto à dilatação da barra de ferro. Mas uma verdade que se aplica a todos os corpos, sem concernir especialmente a algum daqueles que eu vi, não copia nada, não reproduz nada. Nós queremos, todavia, que ela reproduza alguma coisa e, em todos os tempos, a filosofia procurou nos dar satisfação sobre esse ponto. Para os filósofos antigos, havia, acima do tempo e do espaço, um mundo onde tinham sede, por toda eternidade, todas as verdades possíveis. As afirmações humanas eram, para eles, tanto mais verdadeiras quanto mais fielmente copiavam essas verdades eternas. Os modernos fizeram descer a verdade do céu sobre a terra. Mas eles a vêem ainda como alguma coisa que preexistiria às nossas afirmações. A verdade estaria depositada nas coisas e nos fatos: nossa ciência iria aí procurá-la, retirando-a de seu esconderijo, trazendo-a para a luz. Uma afirmação tal como “o calor dilata os corpos” seria uma lei que governa os fatos, que reina, senão acima deles, ao menos em meio a eles, uma lei verdadeiramente contida em nossa experiência e que nós nos limitaríamos a extrair dela. Mesmo uma filosofia como aquela de Kant, — que quer que toda verdade científica seja relativa ao espírito humano —, considera as afirmações verdadeiras como dadas por antecipação na experiência humana. Uma vez esta experiência organizada pelo pensamento humano em geral, todo o trabalho da ciência consistiria em atravessar o invólucro resistente dos fatos no interior dos quais a verdade está alojada, como uma noz em sua casca.
Esta concepção da verdade é natural ao nosso espírito e natural também à filosofia, porque é natural conceber-se a realidade como um todo perfeitamente coerente e sistematizado sustentado por uma armadura lógica. Esta armadura seria a própria verdade. Nossa ciência não faria senão encontrá-la. Mas a experiência pura e simples não nos diz nada de semelhante, e James atém-se à experiência. A experiência nos apresenta um fluxo de fenômenos. Se tal ou qual afirmação relativa a um deles nos permite dominar aqueles que se seguirão, ou mesmo simplesmente prevê-los, nós dizemos desta afirmação que ela é verdadeira. Uma proposição tal como “o calor dilata os corpos”, proposição sugerida pela vista da dilatação de certo corpo, faz com que nós prevejamos como outros corpos se comportarão em presença do calor; ela nos ajuda a passar de uma experiência antiga a experiências novas, é um fio condutor, nada mais. A realidade corre, nós corremos com ela. E nós chamamos verdade a toda afirmação que, guiando-nos através da realidade móvel, nos dá domínio sobre ela e nos coloca em melhores condições para agir.
Vê-se a diferença entre esta concepção da verdade e a concepção tradicional. Nós definimos, de ordinário, a verdade por sua conformidade àquilo que já existe; James define-a por sua relação com aquilo que não existe ainda. O verdadeiro, segundo William James, não copia alguma coisa que foi ou que é: ele anuncia aquilo que será ou, de preferência, prepara nossa ação sobre aquilo que vai ser. A filosofia tem uma tendência natural a querer que a verdade olhe para trás. Para James, ela olha para frente.
Mais precisamente, as outras doutrinas fazem da verdade alguma coisa de anterior à ação bem determinada do homem que a formula pela primeira vez. Ele foi o primeiro a vê-la, dizemos nós, mas ela esperava-o, como a América esperava Cristóvão Colombo. Alguma coisa a escondia de todos os olhares e, por assim dizer, encobria-a. Ele a descobriu. Muito diferente é a concepção de William James. Ele não nega que a realidade seja independente, em grande parte ao menos, daquilo que nós dizemos ou pensamos dela; mas a verdade, que não pode ligar-se senão àquilo que nós afirmamos da realidade, parece-lhe ser criada por nossa afirmação. Nós inventamos a verdade para utilizar a realidade, como nós criamos dispositivos mecânicos para utilizar as forças da natureza. Poder-se-ia, parece-me, resumir todo o essencial da concepção pragmatista da verdade em uma fórmula tal como esta: enquanto para as outras doutrinas uma verdade nova é uma descoberta, para o pragmatismo ela é uma invenção[5].
Não se segue daí que a verdade seja arbitrária. Uma invenção mecânica vale apenas por sua utilidade prática. Do mesmo modo, uma afirmação, para ser verdadeira, deve aumentar nosso império sobre as coisas. Ela não é menos a criação de certo espírito individual, e ela não preexistia, não mais, ao esforço desse espírito, como o fonógrafo, por exemplo, não preexistia a Edison. Sem dúvida, o inventor do fonógrafo precisou estudar as propriedades do som, que é uma realidade. Mas sua invenção sobrepôs-se a esta realidade como uma coisa absolutamente nova, que não seria talvez jamais produzida, caso ele não houvesse existido. Assim, uma verdade, para ser viável, deve ter sua raiz nas realidades; mas essas realidades são apenas o terreno sobre o qual esta verdade brota, e outras flores bem poderiam brotar, se o vento para aí trouxesse outras sementes.
A verdade, de acordo com o pragmatismo, é, pois, feita pouco a pouco, graças aos aportes individuais de um grande número de inventores. Se esses inventores não houvessem existido, se outros houvessem existido em seu lugar, nós teríamos tido um corpo de verdades inteiramente diferente. A realidade foi, e evidentemente permanece, aquilo que ela é, ou quase; mas outros teriam sido os caminhos que haveríamos de traçar para a comodidade de nossa circulação. E não se tratam aqui somente de verdades científicas. Nós não podemos construir uma frase, nós não podemos mesmo hoje pronunciar uma palavra, sem aceitar certas hipóteses que foram criadas por nossos ancestrais e que poderiam ter sido diferentes daquilo que elas são. Quando eu digo: “meu lápis acaba de cair debaixo da mesa”, eu não enuncio, certamente, um fato da experiência, porque aquilo que a visão e o tato me mostram é simplesmente que minha mão se abriu e deixou escapar o que segurava. O bebê fixado em sua cadeira que vê cair o objeto com o qual brinca, não imagina, provavelmente, que este objeto continua a existir; ou, de preferência, ele não tem a idéia nítida de um “objeto”, quer dizer, de qualquer coisa que subsista, invariável e independente, através da diversidade e da mobilidade das aparências que passam. O primeiro que ousou acreditar nesta invariabilidade e nesta independência elaborou uma hipótese: é esta hipótese que nós adotamos de modo corrente todas as vezes que empregamos um substantivo, todas as vezes que falamos. Nossa gramática teria sido outra, outras teriam sido as articulações de nosso pensamento, se a humanidade, no decorrer de sua evolução, houvesse preferido adotar hipóteses de outro gênero.
A estrutura de nosso espírito é, pois, em grande parte, nossa obra ou, ao menos, a obra de alguns dentre nós. Aí está, se me parece, a tese mais importante do pragmatismo, ainda que ela não tenha sido explicitamente destacada. É por aí que o pragmatismo continua o Kantismo. Kant havia dito que a verdade depende da estrutura geral do espírito humano. O pragmatismo acrescenta, ou ao menos implica, em que a estrutura do espírito humano é o efeito da livre iniciativa de certo número de espíritos individuais.
Isso não quer dizer, ainda uma vez, que a verdade depende de cada um de nós: o mesmo equivaleria a crer que qualquer um de nós poderia inventar o fonógrafo. Mas isso quer dizer que, das diversas espécies de verdade, aquela que está mais perto de coincidir com seu objeto não é a verdade científica, nem a verdade do senso comum, nem, mais geralmente, a verdade de ordem intelectual. Toda verdade é um caminho traçado através da realidade; mas, entre esses caminhos, existem aqueles aos quais nós poderíamos dar uma direção muito diferente, caso nossa atenção fosse orientada em um sentido diferente ou se houvéssemos visado a outro gênero de utilidade; isso é o contrário de a direção ser marcada pela própria realidade: isso é o que corresponde, caso seja permitido dizer, a correntes de realidade. Sem dúvida, estas dependem ainda de nós em certa medida, porque nós somos livres para resistir à corrente ou para segui-la; e, mesmo que nós a sigamos, podemos inflecti-la diversamente, estando associados, ao mesmo tempo em que submetidos, à força que aí se manifesta. Não é menos verdade que essas correntes não são criadas por nós; elas fazem parte integrante da realidade. O pragmatismo chega assim a inverter a ordem na qual temos o costume de colocar as diversas espécies de verdade. Fora verdades que traduzem sensações brutas, seriam as verdades de sentimento que teriam, na realidade, as raízes mais profundas. Se convencionamos dizer que toda verdade é uma invenção, será preciso, eu creio, para permanecer fiel ao pensamento de William James, estabelecer entre as verdades de sentimento e as verdades científicas o mesmo gênero de diferença que entre o barco à vela, por exemplo, e o barco a vapor. Um e outro são invenções humanas, mas o primeiro dá ao artifício apenas uma fraca parte. Ele toma a direção do vento e torna sensível aos olhos a força natural que utiliza. No segundo, ao contrário, é o mecanismo artificial que predomina. Ele encobre a força que coloca em jogo e assina-lhe uma direção que escolhemos por nós mesmos.
A definição que James dá da verdade integra sua definição da realidade. Se a realidade não é esse universo econômico e sistemático que nossa lógica gosta de conceber, se ela não é sustentada por uma armadura de intelectualidade, a verdade de ordem intelectual é uma invenção humana que tem por efeito utilizar a realidade de preferência a nos introduzir nela. E, se a realidade não forma um conjunto, se ela é múltipla e móvel, feita de correntes que se entrecruzam, a verdade que nasce de uma tomada de contato com qualquer uma dessas correntes, — verdade sentida antes de ser concebida —, é mais capaz que a verdade simplesmente pensada de perceber e de armazenar a própria realidade.
É, pois, enfim, a esta teoria da realidade que deveria fixar-se primeiramente uma crítica do pragmatismo. Poder-se-á erguer objeções contra ela, e o faríamos nós mesmos, no que lhe concerne, certas reservas, mas ninguém contestará sua profundidade e originalidade. Ninguém, não mais, após haver examinado de perto a concepção da verdade que aí se correlaciona, desconhecerá sua elevação moral. Diz-se que o pragmatismo de James é apenas uma forma de ceticismo, que ele rebaixaria a verdade, que ele a subordinaria à utilidade material, que ele desaconselharia, que ele desencorajaria a pesquisa científica desinteressada. Tal interpretação não viria jamais ao espírito daqueles que leram atentamente a obra. E ela surpreenderá profundamente aqueles que tiverem a oportunidade de conhecer o homem. Ninguém amou a verdade com mais ardente amor. Ninguém a procurou com mais paixão. Uma imensa inquietude o incitava, e, de ciência em ciência, da anatomia à psicologia, da psicologia à filosofia, ele ia, atento aos grandes problemas, descuidado do resto, esquecido de si mesmo. Toda sua vida ele observou, experimentou, meditou. E, como se não houvesse feito o bastante, ele almejava ainda, embalando seu último sono, experiências extraordinárias e esforços mais que humanos pelos quais ele poderia continuar, — depois da morte —, a trabalhar conosco, para o maior bem da ciência, para a maior glória da verdade.


BERGSON, Henri. Sur le pragmatisme de William James. Vérite et réalité. La pensée et le mouvant. Essais et conférences. Paris: Presses Universitaires de France, 27ª edição, 1950, pág. 239-251.
Tradução: Maristela Bleggi Tomasini


[1] Este ensaio foi composto para servir de prefácio à obra de William JAMES sobre o Pragmatismo, tradução de E. LE BRUN (Paris, Flammarion, 1911).                                      [2] A Pluralilistic Universe, Londres, 1900. Traduzido para o francês na “Bibliothèque de Philosophie scientiphique” sob o título de Philosophie de l’Expérience.                      
[3] Muito engenhosamente, André Chaumeix sinalou semelhanças entre a personalidade de James e aquela de Sócrates (Revue des Deux Mondes, 15 outubro de 1910). O cuidado de levar o homem à consideração de coisas humanas para ele mesmo tem algo de socrático.
[4] No belo estudo que consagrou a William James, — Revue de métaphysique et de morale, novembro de 1910 —, Émile Boutroux faz ressaltar o sentido todo particular do verbo inglês to experience, que quer dizer, não constatar friamente uma coisa que se passa fora de nós, mas provar, sentir em si, viver por si mesmo tal ou qual maneira de ser.
[5] Eu não estou seguro de que James tenha empregado a palavra “invenção”, nem de que ele tenha explicitamente comparado a verdade teórica a um dispositivo mecânico; mas eu creio que essa aproximação é conforme ao espírito da doutrina, e que ela pode nos ajudar a compreender o pragmatismo.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Porto Alegre


Alain de Benoist: Digam o que disserem os liberais, a ideologia é inerente à natureza humana


Entrevista realizada por Nicolas Gauthier[1]
Exceto para você, aparentemente, o termo “ideólogo” é doravante quase um palavrão. Aquele de “doutrinador” também. Esses dois termos são sinônimos?
Na origem, quando o termo foi criado em 1798 por Destutt de Tracy, a ideologia era apenas a disciplina voltada ao estudo das ideias por si mesmas. Muito depressa, a palavra passou a designar um sistema de ideias, de normas e de valores com vistas a propor, sob uma forma coerente, e em oposição ao único conhecimento intuitivo da realidade, certo modo de se representar e compreender o mundo. A ideologia, pois, tem um alcance mais amplo que a doutrina, que procura, de preferência, fornecer um programa de ação. Necessariamente coletiva (não existe ideologia individual). Ela pode, além disso, revestir-se das mais diferentes formas: ideologias políticas, econômicas, sociais, religiosas, etc.
Aqueles que não utilizam a palavra senão que de maneira pejorativa aí encontram um prisma deformador, que engendraria, inevitavelmente, uma “falsa consciência”. Trata-se, na realidade, de um filtro. Para a espécie humana, os fatos brutos são por si mesmos desprovidos de sentido. O homem é um animal hermenêutico, ou seja, ele tem necessidade de interpretar os fatos em função de uma trama que possa lhes dar sentido. É por isso que a ideologia se revela ao mesmo tempo útil e onipresente. Bem entendido, as ideologias podem ser boas ou más, pertinentes ou errôneas, mas de um erro ideológico não se pode deduzir que todas as ideologias sejam nefastas. Qualquer um que não seja ideologicamente estruturado, que não disponha de uma concepção global do mundo, é, ao contrário, ao mesmo tempo vulnerável e impotente.
Esse papel positivo da ideologia aparece muito mais nitidamente ainda ao se tomar a palavra no sentido de sua etnologia. Um antropólogo como Clifford Geertz, por exemplo, mostrou bem que a ideologia é potencialmente fundadora da identidade dos grupos humanos. Longe de ser um fator de desconhecimento, ela desempenha um papel de integração positiva e contribui para a auto definição das sociedades, particularmente nos momentos históricos em que, como hoje, os referenciais anteriores se desagregam. Ela aparece desde então como um dado básico da vida social. Pareto pensava mesmo que ela “faz parte integrante do caráter do homem civilizado”.
É-nos regularmente dito que o último século foi aquele do advento das ideologias, mas também de sua morte. Esse diagnóstico lhe parece fundado?
No momento em que se vê eclodir a ideologia islâmica, parece-me de preferência maluco! Aqueles que, no passado, anunciaram o “fim” ou o “crepúsculo das ideologias” (esse foi o caso de Daniel Bell em 1963, de Gonzalo Fernández de la Mora em 1964) revelaram-se tão maus profetas quanto aqueles que, no dia seguinte ao colapso do sistema soviético, arriscaram-se a predizer o “fim da história” (Francis Fukuyama em 1992). Eles não viram que a ideologia é inerente à natureza humana. Mas são sobretudo os liberais que têm estigmatizado a ideologia, ainda que pretendendo, seguramente, estarem eles próprios isentos dela. Sua trajetória se situa no prolongamento desta filosofia das Luzes que pretendia fazer desaparecer as “superstições”, fundando unicamente sobre a razão uma ordem social anteriormente fundada sobre a tradição. Ela evoca também a tese de Augusto Comte, segundo a qual a humanidade se dirigiria inelutavelmente da era teológica à era científica, ou às visões de um Saint-Simon, desejoso de “substituir o governo dos homens pela administração das coisas”. O positivismo cientista não está longe. Trata-se de esquecer, não apenas que há uma ideologia liberal, mas também uma ideologia da ciência...
É nesse espírito que, junto a muitos outros, Jean-Louis Beffa, chefe de Saint-Gobain, opunha recentemente o “partido dos realistas” ao “amplo e compósito clã dos ideólogos”. As ideologias seriam apenas paixões emocionais sem valor científico, do imaginário sem relação com a realidade, da ilusão e do sectarismo. Denunciar as ideias adversas como ideologias permite, pois, desacreditá-las. Esse refrão é comumente retomado pelos tecnocratas e pelos experts, para quem os problemas políticos são, em última análise, problemas técnicos para os quais existe apenas uma única solução “racional”. O fantasma da organização científica (ou racional) da humanidade é apenas uma maneira entre outras de negar a essência do político. Opor as ideologias às “ciências positivas” não é mais inteligente.
A luta ideológica faz hoje parte da “Guerra cultural”?
Karl Marx não errou ao dizer que a ideologia dominante é sempre a ideologia da classe dominante. Enquanto ela for dominante, impregna os espíritos sem que estes se deem conta disso (vê-se mal a ideologia quando se nos identificamos com ela), tornando-os sempre mais conformes, sempre mais dispostos a admitir exigências apresentadas como tão “evidentes” quanto “insuperáveis”, o que reforça sua legitimidade. No século XIX, ela fazia assim aparecer o proveito como a remuneração natural do capital, enquanto ele é, antes, o produto do trabalho. A ideologia dominante é hoje a ideologia do mercado, fundada sobre a ideologia econômica, sobre a ideologia dos direitos do homem e sobre a ideologia do progresso. A classe dominante é a Nova classe mundializada.
Mas toda sociedade é um “campo ideológico”, como escrevia Louis Althuser, para o qual os aparelhos produtores da ideologia dominante colidem com outras ideologias que os contestam. É a relação de força entre essas diferentes ideologias que define o espírito do tempo e deixa prever suas transformações. “Não existe nada no mundo tão poderoso quanto uma ideia da qual é chegada a hora”, dizia Victor Hugo.

Émile Durkheim. Confrontation avec Tarde

"A sociologia deve continuar a ser uma especulação filosófica que abraça a vida social em uma fórmula sintética? Deve ela, ao contrário, fragmentar-se em diferentes ciências e, se ela deve especializar-se, como esta especialização se faria? A sociologia puramente filosófica repousa inteiramente sobre esta ideia de que os fenômenos sociais estão submetidos a leis necessárias. Os fatos sociais têm entre si ligações que a vontade humana não pode arbitrariamente romper. Essa verdade supunha uma mentalidade avançada e não podia ser senão o fruto de especulações filosóficas. A sociologia é a filha do pensamento filosófico, ela nasceu no seio da filosofia comtista e não é dela senão o coroamento lógico. Mas, para Comte, a sociologia não consiste na pluralidade de problemas definidos que os sábios estudam separadamente; ela atém-se a um problema único e deve abraçar, num instante indivisível, a seqüência do desenvolvimento histórico para perceber a lei que o domina em seu conjunto. Os estudos de detalhe são perigosos, dizia Comte, porque eles desviam a atenção do sociólogo do problema fundamental que é o todo da sociologia. Os fatos sociais são solidários, e não se pode estudá-los isoladamente, senão que em alterando gravemente sua natureza. Os discípulos de Comte não fazem senão reproduzir o pensamento do mestre, e as mesmas fórmulas têm sido repetidas sem que a sociologia tenha progredido. Mas por que a sociologia consistiria em um único problema? A realidade social é essencialmente complexa, não ininteligível, mas apenas refratária às formas simples. A sociologia não é uma ciência unitária e, ainda que respeitando a solidariedade e a interdependência dos fatos sociais, ela deve estudar cada categoria separadamente. Todavia, a concepção que conduz a sociologia a um só e único problema é ainda a mais geral, mesmo entre os autores contemporâneos. Trata-se sempre de descobrir a lei geral da sociedade. Todos os fatos estudados pelas ciências sociais distintas teriam um caráter comum, pois que sociais, e a sociologia teria por objeto estudar o fato social em sua abstração. Em comparando os fatos sociais, ver-se-ão quais são os elementos que se encontram em todas as espécies e destacar-se-ão os caracteres gerais da sociabilidade. Mas onde e como alcançar essa abstração? Os fatos dados são concretos, complexos; mesmo as civilizações mais inferiores são de uma extrema complexidade. Como destacar o fato elementar com seus caracteres abstratos, se não se começa por estudar os fenômenos concretos onde ele se realiza? Se, pois, a sociologia quiser viver, ela deverá renunciar ao caráter filosófico ao qual ela deve sua origem e aproximar-se das realidades concretas por meio de pesquisas especiais. Há interesse em que o público saiba que a sociologia não é puramente filosófica, e que ela pede precisão e objetividade. Mas isso não quer dizer que as disciplinas especiais não devam, — para se tornarem ciências verdadeiramente sociológicas, — senão permanecerem aquilo que elas são atualmente. Elas não têm sido ainda suficientemente penetradas pelas idéias que a filosofia social destacou. Elas têm necessidade de se transformar, de orientarem-se em um sentido expressamente sociológico. No momento atual, não se pode senão formular o problema".

Fonte: Citação extraída da edição eletrônica realizada a partir de um texto de Émile Durkheim (1903), La sociologie et les sciences sociales. Confrontation avec Tarde. Texto disponível na coleção produzida por Jean-Marie Tremblay, Professor de Sociologia em Chicoutini, Les classiques des sciences sociales. 
Foto: Wikipedia Creative Commons. 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A Ordem Moral

Robert de Herte[1]

Numerosos espíritos tristes queixam-se hoje de que "não existe mais moral". Curiosa queixa. Mais moral? Mas ela existe hoje mais do que nunca. A moral invade tudo em nossos dias. Mas não é mais a mesma.

É verdade que muitos de nossos contemporâneos se consideram libertos de toda regra moral. Aqueles que lhes fazem a lição evitam "fazer a moral". Eles se exprimem tomando a precaução de dizer que seus julgamentos não são inspirados pela moral. Ao termo "moral", que traz com ele conotações religiosas que muitos julgam envelhecidas, prefere-se, aliás, o termo "ética", que parece melhor convir a uma sociedade laica, ainda que a origem etimológica de ambas as palavras seja a mesma (mores e ethos) e ainda que, a rigor, a ética não saberia ter um alcance individual.

Não há dúvida de que a moral tradicional se perde. Mas outra a substitui. A antiga moral prescrevia regras individuais de comportamento: a sociedade se portaria melhor se os indivíduos que a compõem se comportassem bem. A nova moral quer moralizar a própria sociedade sem impor regras aos indivíduos. A antiga moral dizia às pessoas aquilo que elas deveriam fazer; a nova moral descreve aquilo que a sociedade deve se tornar. Não são mais os indivíduos que devem se conduzir de modo direito, mas é a sociedade que deve se tornar mais "justa". É que antiga moral era subordinada ao bem, enquanto a nova é subordinada ao justo. O bem realça a ética das virtudes; o justo, uma concepção de Justiça, ela mesma colorida de uma forte impregnação moral. Mesmo quando elas pretendem permanecer "neutras" quanto à escolha de valores, as sociedades modernas aderem a esta nova moral. Elas são simultaneamente ultrapermissivas e hipermorais.

O fundo das coisas é o que Max Weber chamava de a lógica do dever-ser. A Antiguidade vivia em comunhão do Ser, a modernidade nascente reclama-se a do dever ser. Em termos simples: o mundo deve se tornar uma coisa diferente daquilo que ele foi até agora. Ele deve ser transformado para se tornar "mais justo". Ele deve ser reconstruído segundo um projeto saído de uma crença antiga ou da razão moderna. A justiça e o direito não definem mais uma relação de equidade entre as pessoas, mas exprimem eles também um dever-ser. Todo social é assim reinterpretado à luz desse dever-ser, que não faz nenhum caso da natureza das coisas e dos seres.

Na base do dever-ser, encontra-se uma recusa tal e qual ele é. Essa recusa, de certa maneira é também um "não" à vida. "Mundus est imuuundus", dizia Santo Agostinho, é preciso pois transformá-lo, corrigi-lo, para satisfazer às exigências divinas dizem uns, para fazer frente à necessidade histórica pretendem outros. Esta vontade de reconstruir o mundo, ou ainda de restaurá-lo (tikkun[2]), remonta à Bíblia, que nos diz que o mundo é imperfeito, que ele é atingido por uma menos valia. Toda a ideologia do progresso, todo o utopismo das Luzes representam disso a versão profana: sob hábitos seculares (a felicidade substitui a salvação, o além cede lugar ao amanhã), é ainda e sempre a velha fé messiânica e quiliástica[3] na marcha irresistível da história em direção ao seu final (movimento calcado sobre uma auto supressão) que está em construção. O Progresso é esta lenta melhora do mundo, chamado a progredir de maneira unitária em direção a dias melhores. "Substituí a salvação cristã pela fé no progresso, diz Pierre Legendre, e obtereis o credo comercial do ocidente planetário".

A religião cristã é, desde o início, desejada como constitutiva de uma "comunhão universal real" (Pierre Manent), a república Cristã. Os teóricos das Luzes asseguram que é apoiando-se sobre suas próprias faculdades, e não observando os preceitos de Deus, que os homens asseguraram sua salvação e chegaram a criar a sociedade perfeita, ao menos a sociedade definitiva, "final". Mas a própria ideia de um movimento da história que se oriente nessa direção lhes vem de uma religião que eles acreditam haverem abolido, ainda que não percebam que ela se torna assim mais operante que nunca. Como diz John Gray após muitos outros, a começar por Karl Löwith, as Luzes se limitam a reciclar a crença segundo a qual a história é a narrativa da salvação da humanidade. Gray mostra que esta crença se encontra tanto no comunismo stalinista quanto no neoconservadorismo americano, que acredita que se pode chegar à sociedade perfeita "dando livre curso à magia do mercado". "A despeito de suas pretensões a uma racionalidade científica, o neoliberalismo tem raízes em uma interpretação teleológica da história enquanto processo com um objetivo predeterminado, e nisso, como em outras regiões, ele apresenta forte semelhança com o Marxismo" (Black Mass. Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, Allen Lane, London 2007).

Fundada sobre os direitos subjetivos que os indivíduos teriam sobre o estado da natureza, a ideologia dos direitos do homem, tornada a religião do nosso tempo, é antes de tudo uma doutrina moral. Sua principal característica, escreve Marcel Gauchet, é a de "enraizar-se naquilo que constitui efetivamente a pedra de toque do legítimo e do ilegítimo no seio de nosso mundo, a fim de extrair daí, ao mesmo tempo, uma grade de leitura e um programa para a ação coletiva [...]. A ideologia dos direitos do homem decifra a realidade social à luz daquilo que ela deveria ser [...] O único inconveniente desse imperialismo do dever-ser é que ele não favorece a compreensão dos obstáculos que encontra em seu caminho, ainda quando eles respondem manifestamente a fortes necessidades do ponto de vista da existência comum. A única coisa que ele tem a dizer é que eles não deveriam existir. Onde buscar sua finalidade? O afastamento da norma é rejeitado nas trevas exteriores como um mal cuja condenação enquanto mal supõe-se esgotar a compreensão. A ideologia dos direitos do homem traduz-se, em outros termos, por uma invasão de moralismo, um moralismo ainda mais implacável quando mobiliza as molas íntimas da afetividade” (« De la critique à l’autocritique », in Le Débat, mai-août 2008, p. 159).

A nova ordem moral é aquilo que Philippe Muray chama de o império do bem. Esse bem não é senão que um bem derivado da prioridade do justo, um bem “objeto do desejo justo”. Esse bem degenerou hoje em um novo moralismo — uma “moralina”, diria Nietzsche. Paralelamente, o mal é negado como fazendo parte intrinsecamente da natureza do homem, ainda que sendo reconhecido sob a forma extrema do “mal absoluto”, como negação radical do bem dos direitos do homem.

A direita tem frequentemente uma visão fundamentalmente ética da política, a esquerda, uma visão moral. De um lado, Excalibur; de outro, as Beatitudes. Dois universos de valores muito diferentes, mas também impolíticos (impróprios à compreensão daquilo que é a política) um quanto outro. Hoje é a visão moral que domina. E é assim que esta sociedade, que muitos julgam desprovida de toda moral, pode, em realidade, achar-se portadora de uma moral de outro gênero, de um moralismo onipresente que propagam os seus devotos, seus missionários e suas ligas da virtude. Procuram-se libertinos.

Robert de Herte, Éléments n°130, 2009.
Disponível em:  http://grece-fr.com/?p=1550





[1] Pseudônimo de Alain de Benoist quando assinava editorias da revista Éléments pour la civilisation européenne (N. da T.).

[2] Tikkun significa “correção”. Assim a chamada Tradição cabalística designa o caminho mais benéfico para nosso crescimento espiritual (N. da T.).

[3] Milenarismo. Doutrina que assegura que os predestinados ainda permaneceriam na Terra durante mil anos após o julgamento final, no gozo de todos os prazeres (N. da T.).